quinta-feira, abril 14, 2011

Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência (e a coisa revela muito sobre o estado de -in-sanidade de uma pessoa)




Freudianos, Lacanianos, psicanalistas na sombra, filósofos do tempo e do encantamento, cépticos, sonhadores, oníricos apaixonados, uni-vos.


Juan Bastardo


Esta bem poderia ser uma obra de pura ficção, dominada pelo fantástico, não tivesse eu a certeza, certezinha, de que se passou dentro da minha cabeça, sem que eu sequer assinasse o despacho diário para autorizar os homenzinhos dos sonhos a picar o ponto.

Nada lhes pago, que estes dias de vacas degenerativamente magras dão uma certa tirania patronal, mas eles insistem em trabalhar regime lay-off, trazendo-me figuras, seres, personagens e cenários de outro mundo, que não o meu, e eu até gosto que me levem para universos tão distintos.

A memória onírica é uma coisa volátil, tipo missão impossível, por isso melhor passar a vias de facto, contando-vos, antes que ela se auto-destrua em segundos. 

Mas, primeiro, enquanto despertava de um mirabolante sonho - que pode até ser uma boa ideia para uma peça de teatro de ficção científica: uma peça de teatro, dentro de outra peça de teatro, estão a ver? - ouvi, do outro lado da janela, hoje, já o sol raiava entre as frinchas, com uma luz incrível, como se alguém tivesse tido a generosidade de pôr os watts do astro-rei no máximo, um som que me fez perder uns vinte anos (credo! agora entendo os cabelos brancos), levando-me para dias em que os guarda-chuvas iam para arranjar. Cessa-se a chuva e eles saem à rua. Melhor: saíam à rua, naquele tempo.

Não estranhei o som familiar. Já ontem ele, por ali passara, mas de qualquer maneira, lá veio o cérebro acusar que algo estava desconforme. O que fazia o som do assobio do homem arranjador de guarda-chuvas, ali, na rua, logo pela manhãzinha?

Eis que o som se aproximou cada vez mais. Até se materializar num homem de casaco cinzento puído, que enquanto soprava ar para o objecto do meu encantamento, rolava uma roda onde pude perceber alguns guarda-chuvas. Pois, claro: o bom homem leva os guarda-chuvas e devolve-os, quando arranjados.

Aí está: sustentabilidade, naquele tempo, era isso. Ainda não o tinham baptizado era com o termo capitalista. Hoje, se um dos nossos se estraga, há-de o lixo encaminhá-lo para o devido cemitério, com sorte. A chuva, portanto, não mais será guardada por aquele.

E eis, então, que surge o sonho. Andei a noite toda, parece, ocupada com isto: uma peça de teatro. O encenador, cujo rosto não me lembro, mas com ares de quem me conhecia bem, reuniu a malta e propôs um desafio para o dia da apresentação.

Não ensaiaríamos nada, mas iríamos trocando umas ideias sobre o assunto. Eu iria representar uma mulher madura, cheia de energia, conselheira, nem amorosa, nem desamorosa. O jogo consistia em arranjarmos os figurinos, tentarmos perceber qual a nossa relação com os outros personagens e inventar o texto. 

Só que, a meio destes nossos encontros, apercebi-me que com o iphone poderia viajar no tempo - e que o próprio iphone assumia formas de acordo com a época (ah tá, como se o iphone existisse desde sempre, né?): tinha teclado, não tinha, linguagem html, ou outra coisa qualquer.

Mas se alguém, ao mesmo tempo que tocava na tecla chave que me fazia viajar no tempo, repetisse a mesma palavra que eu no momento da viagem, essa pessoa iria comigo. Não me lembro da palavra, claro. Sei que ainda andei por aí a viajar. Vi amigos mais novos, com outro ânimo de vida, e em momentos cruciais de viragem da vida deles: uma censura que os mudou, uma resposta mal dada, mal interpretada que mudou o rumo dos dias que depois vieram...

E, quando voltei ao tempo do sonho dentro do sonho, era o dia da estreia da tal peça. Como andei nestas viagens inter-temporais, não tive tempo nem de fazer pesquisa, nem de perceber a minha relação com os outros personagens. Bonito!

Fui ter com o encenador e pedi-lhe umas dicas: como era a personalidade da minha mulher madura e que expectativas tinha ele em relação a ela: era uma mulher vivida, sofrida, amargada pelos homens, virgem, experimentada, doce, aziaga, que momentos na vida a marcaram, qual era a missão dela ali, naquele jogo de cena. 

Ele foi dando sôfregas pistas, evasivos adjectivos, sempre com pressa, com muita pressa: o público estava a chegar. Eu não tinha mais tempo. Três pancadas secas na madeira. Luzes. Abre-se o pano e eu ali, imposta para interagir e fazer do palco uma vida, um diálogo com consistência, fazendo com que parecesse que entre nós, éramos todos amigos de longa data, diferentes, mudados por algum momento crucial na nossa vida, que nos fez pensar e repensar que rumo, afinal, queríamos dar-lhe.

Há outros pormenores deste sonho que me lembro e nada acrescentam aqui, e outros que se foram. Esta semana vi um programa na National Geographic que falava sobre o sono, os sonhos, e os distúrbios dele.  Além do tempo, sou apaixonada pelo universo cerebral, pela neurobiologia da consciência, e o poderoso mundo enigmático da massa cinzenta. Nesse documentário desmitificavam a ideia de que os nossos sonhos são baseados em histórias que nos acontecem e que hão-de acontecer - em jeito premonitório.

Ali defendia-se que, quando dormimos, o racional desliga e apenas a biologia e um pedaço de massa a que se chama hipotálamo fica ali a processar, isoladamente. Ou seja, os nossos movimentos ficam à mercê, e talvez um "random" de conceitos chave passem por ali, durante a noite.

Simplificando: imaginem um gajo que sai sozinho à noite para fazer uma rave, toma uns ácidos e faz a festa. É mais ou menos isso que acontecesse durante o sono-sonho. 

Não me posso, por isso, lembrar de muito mais do sonho, pois o racional estava de licença sem vencimento por umas horas, mas lembro-me do texto que inventei para a peça de teatro e que bem pode atestar sobre o meu grau de (in)sanidade mental nestes dias de Primavera:

Os loucos são lúcidos senhores
desprovidos dos vícios da pele desta nossa cultura
desprovidos de códigos e linguagens da bolha poluidora dos defeitos que nos fazem reagir à opressão dos outros
Os loucos são esses que andam aí, a avisar-nos dos nossos egos
São medidores de honestidade
São realistas obstinados a dizer o que ninguém quer ouvir
Os loucos são isto, senhores, bárbaros incontroláveis da nossa condição
Loucos silenciados somos todos nós

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