sábado, julho 31, 2010

Montrómetro

Estaremos mais perto de isso acontecer. E São Paulo será o primeiro lugar a tê-las. O dia tem humores frios, temperados e fervorosos. Tem suor de manhã, cabelo molhado à tarde e arrepios ao fim do dia. Other way around, ou vice-versa. Por isso se carrega sempre aquele casaco de malha na bolsa, ou um suplente que fica residente no trabalho. Imprevisível saber se o dia se mantém ameno, frio, ou chuvoso. Micro-clima, humores de tempo. Meteorologia. Aqui cientistas de previsão do tempo não ganham dinheiro. A probabilidade de errarem é maior. 

Imagino, por isso, que as montras serão, em pouco tempo, o espelho ideal para sabermos, com precisão, minutos antes, se nos entregaremos um pouco depois ao arrepio, ao suor ou a escapar das pingas. Um "montrómetro". Imagino, então, aquelas montras de roupa a mudar, automaticamente, os tecidos, as cores, as texturas, conforme o tempo que fará dali a pouco. 

Imagino que, quando começar a temperatura a subir, aquelas caras pálidas, hirtas, de não-gente a querer sê-la nas vitrines das lojas estejam de tops floridos, calções de cinta subida, ou de biquinis vermelhos e de fio dental a puxar praia. Se a pele de galinha começar a ameaçar fazer-se à derme, haverá sempre camisolas de algodão no tronco de plástico desses manequins ou, na pior das hipóteses, é provável que se cubram de casacos pesados e escuros. Impermeáveis haverá quando a garoa vier. E, se vier tudo ao mesmo tempo, acredito que esses modelos de gente fiquem nus, como se se negassem a trabalhar.  

sexta-feira, julho 30, 2010

Conversas com Hilda

Saí da rotação. Entendi o mecanismo biótico. Nós não, Hilda, explica. Como assim, não percebem? Fácil. Então o que é sair da rotação? Nem eu sei para falar verdade. Ok, mas tenta. Da outra vez estava no caos de mim, lembras-te? Oh, Hilda, és sempre tão complicada; o caos de ti. Que mania tens de intelectualizar o tu. Fala, assim, uma linguagem que se possa entender. Traduz, Hilda, traduz. Dá os sinais que tentarei entender. 

Sair da rotação é agarrar os azimutes: essas pontas descoordenadas que temos em nós, que nunca vemos e plaf, disparam em várias direcções. Se prestarmos atenção, devagarinho, sobretudo quando acordamos, percebemos os azimutes desalinhados. Agarramo-los sem que percebam, porque estão mais frágeis e visíveis quando a nossa cabeça abre os olhos e começa a pensar. Antes do exercício estou-no-mundo-outra-vez agarramo-los. Aí, podemos sair da rotação, se a houver. Mas há sempre uma rotação, e o corpo é o eixo que faz o mundo rodar, sem sairmos do lugar.

Gira, gira: os pensamentos entram-saem; outros entram e nunca chegam a sair. Há pensamentos velhos nessa rotação e nem damos conta deles. Estão lá todos misturados a contaminar os mais novos. Só que não me adiantou de nada ter saído da rotação. Se não é pela mesma, virá sempre outra. Se não é pela outra, vem sempre outro lugar intermédio que não deixa o corpo e cabeça soltos, assim agarradinhos, como se fossem almas gémeas. Mal me apercebi que saíra da elipse e flit. Deslizei no lugar-conflito. Oh, Hilda, tu és muito engraçada para encontrar palavras que, à partida, não fazem sentido algum. Disse “quase” Hilda, repara, porque sei que logo encontrarás uma resposta bem fundamentada do teu jeito.

É. Lugar-conflito. A palavra composta é essa. O vocabulário que temos à disposição não equivale necessariamente às palavras exactas que traduzem o que cá vai dentro. Há pergaminhos tão bem dobrados que desconhecemos. Há papéis soltos nas estantes dos nossos livros. Empoeirados. Novos. Sábios. Esquecidos. Que nunca leremos. Falham à catalogação. É esse mundo interior. E temos todos linguagens diferentes. O ponto de equilíbrio, raro, é só uma forma de nós não nos perdermos.


Estás a dar uma de filosofia à Woody Allen. Nada disso. O Woody é mais feliz que eu. Ri da vida, ri-se, graceja, salta, ri-se dele. Faz da vida uma comédia porque não tem outro remédio. Caso contrário estaria a ansiolíticos, preso numa camisa-de-forças. Depois, é evidente. O Woody sabe demasiado sobre a vida para se dar ao trabalho de inventar filosofias como perfeita psicanálise de si. Os filmes são a terapia de divã. Eficaz, parece.

No meu caso não há terapia que valha: nem pôr as mãos em água a correr, nem mexer em areia, nem dar gritos numa praia deserta, nem cantar no chuveiro, escrever livros, sexo, comida, plafff. Olha, nada disso. O problema é evidente e desse mal todos padecemos. Mal genético de humanidade. Ser-humano-em-efeito-de-fabrico. Aquilo que nos arrasta para a inércia é o lugar-conflito. E todos temos um lugar-conflito?

Nascemos com ele e vamos desenvolvendo-o cada vez mais. Sobretudo quanto maior for a dose  na receita da teimosia. Há diversos níveis. É preciso é saber identificá-lo. E eu percebi-o, assim que o efeito-rotação se foi. Não estou a perceber. 

Lugar-conflito, ó, é o filtro da neurose, insatisfação, plano intermédio que deixa a nossa vida em suspenso, ou na adversativa contínua, gerúndio-gerúndio em transe! Quando estamos bem, arranjamos forma de querer mais alguma coisa, quando estamos "gris" há sempre aquela masturbação mental incessante de solitários-pobres-coitados em modo vibração: eu-eu-eu. Quando acordámos de manhã, gostaríamos que ainda fosse madrugada para podermos dormir; quando estamos no WC, gostaríamos de estar na cozinha já a tomar o pequeno-almoço; quando fazemos alguma coisa de que não gostamos, gostaríamos de que o tempo se esgarçasse rápido; quando escrevemos um texto, queremos que ele termine logo; quando não escrevemos queremos muito escrever; quando nos apaixonamos gostaríamos de não nos ter apaixonado para nos apaixonarmos outra vez; quando saímos de nós queremos voltar, mas quando estamos dentro de nós, desejamos sair.

Percebes, nós somos lugar-conflito. Temos trincheiras onde nos encafuamos para lutar contra nós próprios. Precisamos de camisas de forças para nos defender. Vetamo-nos muito, quando o mais importante é saber perpetuar a adolescência como estado de transição permanente, antes que o boicote da balela da vida adulta faça das suas e torne o lugar-conflito num dínamo que dispara a cada 10 segundos. E sabes o que acontece quando lhe começas a dar ouvidos? Entras no efeito-rotação. 

sexta-feira, julho 23, 2010

domingo, julho 18, 2010

Calcinha brochante

Se há coisa que (des)aprendi no último dia, aqui em São Paulo, foi sobre a "calcinha brochante". Advirto, desde já, que o episódio pode ser impróprio para consumo. Claro que não se pode esperar muito de uma conversa com seis actores, uma jornalista e um director de cena experiente (provocador hormonal), à uma da manhã, num boteco em São Paulo, quando ainda não se jantou.

A Rua Augusta parece, porém, ser a única coerência deste episódio, micro-cidade da indústria do sexo dentro de uma grande metrópole como esta, onde se pode encontrar os mais variados exemplos das chamadas tribos urbanas. Há personagens como aquele de pele escura, que não chega a ser negra, de olhos azuis inquietantes, cabelo desgrenhado e roupa suja, com o bafo colado ao vidro, a ver, como se de uma vitrine se tratasse, algumas dessas tribos, encafuadas no boteco da esquina da Augusta com a Luís Coelho. Esse onde estávamos.

- “Você viu só, parece uma entidade. Baixou o Santo”, comentou R.

Mais uma, duas e não-sei-quantas-vezes de episódios semelhantes, num espaço de 5 minutos, seriam suficientes para fundamentar a tese. São Paulo é um lugar estranho. Habitável q.b., mas estranho. Estranho porque a vida acontece mais rápido do que a nossa capacidade de processamento. Talvez tenha encontrado, nisso, a explicação que me fundamenta as constantes tonturas que sinto ao deambular por ela. Fico sempre demasiado ansiosa, como se a taquicardia estivesse próxima. E se, naquela altura do personagem de olhos de azuis-penetrantes e perturbadores (não consegui encarar o olhar do homem, como se me estivesse a arrancar a alma, se existir), terá baixado uma divindade qualquer (o R. advertiu mesmo: “Se vocês derem a volta, vão perceber que aquele homem não está lá, é uma alma penada) também J. deixou cair a santidade que a pouca idade lhe atestava com um “odeio calcinha brochante”.

Não sei dizer, agora, por que razão o tema lhe veio à cabeça, mas acredito que tenha sido porque T. lhe perguntou que história era essa de ver “bonecos de banda desenhada” na hora do “vamo ver” com uma miúda, entre lençóis. A calcinha brochante tornou-se, pois, tema de debate à mesa melada do boteco. Saravá! Afinal, o que é isso de calcinha brochante? A fórmula sairia disparada da boca do “chaveirinho”:
- Ah, calcinha cor de pele, de cores pastéis, nem pensar. Já imaginou? É horrível. Se for para teatro, que a mulher precisa que não se note para estar em palco com a roupa, tudo bem. Agora no dia-a-dia, não. Depois tem aquelas que vocês usam que parecem shorts. Bom, para dormir é legal, agora para estar comigo não dá!
Ah, bom! Mas não estávamos, ainda, totalmente, esclarecidos.
Passou o caso para R.
Silêncio. Silêncio. Silêncio. Risos. Silêncio.
- Na minha opinião depende. A calcinha tem que ornar com a pessoa. Se for alguém muito clássico, formal, e nos surpreende com algo mais informal, ela tem que ter um corpo que segure o todo. Há mulheres em que as cores pastéis, ainda que eu não goste, pode ficar bem. Há lingerie que vista na mão, simples, sem corpo a moldá-la, parece vulgar. Mas, colocado num corpo que orne, pode-nos surpreender. Por, isso, na minha opinião, não podemos ser tão simplistas. Agora, cara, num momento de “não-rola-esta-lingerie” você pode sempre ter um ataque de fúria sexual e arrancar tudo. Só que aí tem um perigo, você pode perceber que o brochante não era a calcinha.

P.S. Eu avisei que este post era impróprio para consumo. E não estou certa de ter aprendido alguma coisa, ontem.

quinta-feira, julho 15, 2010

Vidas Secas, baseado no livro de Graciliano Ramos




Fabiano não tem estudos para pôr as palavras no justo lugar. Para explicar que não foi ele que roubou. Que foi o outro. Mas o outro tem mais estudos. Saber-se-á defender, pondo o discurso no lugar certo, com a entoação devida, adornar a retórica do balofo exímio que a arte de dizer muito sem nada dizer pode ter. As cadências. As pausas. Fabiano não tem como fazê-lo. E o corpo não fala por si. Devia falar. Nunca lemos as palavras que o corpo quer dizer sem nada falar, mesmo estando tudo lá, servindo, aliás, de paradoxo certo para carimbar os homens carcomidos pelas agruras de se respirar de maneira diferente os fôlegos. Esses mesmos que o berço pobre já talha como certos à miséria. Mesmo as mãos calejadas, a roupa rota, desfiada, as rugas rudes, vincadas de sol a esgravatar derme. 

Nem os sapatos abertos, empoeirados de terra seca que deviam falar por si a fome que passa. Boca seca, alimentada a roedores. Só pensa na sua sinhá, nos filhos nus, nas raízes estaladiças ao lume, nas preás caçadas pela cadela, ainda a pingar de sangue na boca animal e na égua que poderá, ainda montar, no meio da catinga. Pensa em como contará a mulher que não foi ele a desferir o golpe naquele homem. Atrás das grades um homem não consegue pensar nas palavras certas, mesmo que elas pairem. Não se consegue aprisioná-las.

Como ele pensa em Sinhá, com seu cachimbo preso aos dentes, sorvendo o trago amargo do tabaco de má qualidade, que é prazer de fim de tarde, no alpendre da casa velha, sem dono, e que preparou para se aquecer nas frias noites do sertão. O mesmo que é calor-assassino quando a luz vem. Fabiano atrapalha-se nas palavras que há-de dizer, pois todas lhe parecem um dizer de mentira. E dizer de mentira não convence ninguém, ainda que seja a verdade. E a verdade, sabemos, não tem peso de justiça, se não for posta com as palavras certas.

quarta-feira, julho 14, 2010

A Casa

Vovó Oneide tem vagar nas pernas e ligeireza nas palavras de tom cerimonioso. Tem a casa, os netos, as rendas, as mantas para o Círio que desempoeira do baú duas semanas antes do fervor de Outubro para saudar a santa na berlinda. Nossa Senhora da Nazaré conhece-a, respeita-a e agradece-lhe a devoção. Vovó tem, ainda, o violão no rádio. Como ela gosta do violão! Bebe o leite com tapioca ao fim da tarde no lanche que é jantar, mastigando-a lentamente para saborear melhor o seu violão. Pede silêncio quando as cordas são dedilhadas e há uma serenidade de casa sem relógios, onde o tempo já não importa mais. 

Sorri com os olhos. Conseguimos vê-lo trespassando as lentes grossas dos óculos. A voz doce, diáfana e leve, arrastada quando se enternece. Não raras vezes enternece-se, num “deixa te contar”, num prolongamento que pausa os episódios de uma vida de 90 anos. Cheios, tão cheios, que transbordam.
Houve tristezas, mas delas não se lembra. Houve alegrias, tantas, cunhadas na forma como sorri. Saem pelo brilho dos olhos a puxar as palavras, a voz, e o regozijo. “Senta-te minha filha”. E sentimo-nos filha dela, ou neta, ou um parente afastado que veio visitar a casa para logo se tornar próximo, tão próximo, pronto e atento para que ela conte, o que tem para contar. Sentemo-nos Vovó, Oneide. Sentemo-nos. Sentemo-nos nas cadeiras aristocráticas que guardas do século passado e que serviram para muito descanso de burguesia e classe alta que ia às festas. Aquelas festas. 

O bar com whiskey. Bebia-se muito whiskey? “Pois”. Os copos robustos, vindos da Europa. Os lustres finos, delicados, a brilhar para a festa. Parece que havia mais luz. A radiola tocava. Divertias-te. Afinal estavas na casa que te foi destinada. Quase a perdeste. Mas havia amor. O salário dos correios não te dava para tudo. Foi quanto baste. Deu-te para os filhos e para o teu sonho. Sabes que foi a vontade que te deu o sonho. E, quando dinheiro não havia, apareceu porque a vontade o trouxe. A casa foi a leilão. Não, não. Não havia dinheiro. Esta casa de pé direito alto, com portadas de sonho, tombadas como património de Belém, de salão fino, antessala, jardim, quartos, corredor que é uma veia da casa onde a memória acontece viva, ligando o teu violão do rádio ao silêncio da sala de jantar, onde tens as tuas santas, fechadas numa caixa de madeira. Como o vidro dela reflecte o retrato das tuas gerações, dos teus amores, da tua memória. 

Vi-me nesse vidro, também. Estavas lá tu, sentada comigo, a confidenciar-me pedaços da tua vida. Sábia. Que sábia que és. Ouço-te, com atenção. Sem saber muito bem como contar o teu tesouro. Maior que essa casa que é parte dele. O leilão, falavas do leilão. Quando os bolsos vazios não sabiam como licitar o valor final que abrisse a porta para aquelas escadas da entrada, de carpete vermelha, aveludada, inaugurando-te num sonho. Viveste-o. O teu amor foi-se. Ficaste com as felizes memórias desse grande afecto, sereno e feliz tempo que baste, para que não te lembres das mágoas. Sabes, Oneide, és património valioso, tombado pela vida. Se um dia ainda puderes, ensina-me a viver.  

segunda-feira, julho 12, 2010

O novelo

Avó, quando for como tu, se mo deixarem ser, de cabelos brancos serenos, posso passar as tardes a enrolar novelos, depois das meias que coseste para os netos, para que não tenham os pés frios de Inverno? Posso comer chocolates com queijo, depois do verde tinto do almoço, ainda que não goste muito, e as bolachas de canela que guardas para os netos? Posso comê-las todas? Posso meter-me a plantar couves com a parcimónia de as ver dar tenras e viçosas para a sopa com feijão? Ver os coelhos crescer ao lado das galinhas sem preocupações de maior, porque já criaste os filhos, viste-os ter outros filhos e ralhas-lhes como se fossem teus rebentos em construção de vida? Posso fazer tudo isso? Posso ter um novelo igual ao teu: desses chorudos e fofos cor-de-rosa? Diz-me que sim, mesmo mentindo-me e eu sabendo que não, porque arranquei demasiados fios de lã do meu, ainda ele ainda ia a meio. Quase não me resta nada e ainda falta muito para chegar aos teus cabelos brancos. Nunca terei um novelo como o teu. Disseste-me que a linha velha tinha de ser arrancada, como as coisas más da vida. Acho que que já não se fazem novelos como antigamente, nesse teu tempo. Dás-me outro? Posso recomeçar tudo de novo?

Cidade crónica-biónica

“Vai no velório? Estacione aqui”; “Cemitério da Consolação: há vagas”; duas vezes no cartão, taxímetro, tarifa dois: 12,50 reais; mp3: aula de inglês em 19 lições: “O Mundial de 2014 tá chegando, é preciso saber inglês". É preciso saber, dizer, falar, ar. Perder. Argghh: Cidade crónica, vlap: biónica. Corredores acelerados (vruummp), ônibus laranja, verde, azul em céu cinza. Hoje amarelou, ficou blue?, cidade sem filtro-polarizador. Tsssss! 

Táxi Comum-Rádio Táxi, "Banco que dá cultura é do Brasiiiuu"; Itaú, Unibanco, sem banco, no chão dormindo, cai, rebola, pés embrulhados, t-shirts largas em corpo magro, chupado. “Sai Geraldo, deixa passar”; "Cala-a-boca". Leva um estalo, chega a polícia, beijam-se: "não foi nada não". Finge que não vê, não-sabe-não-viu, desconhece, desmerece. “Pára, pegou minha bolsa, pega ela!”; "Não tem jeito, a polícia chega e não faz nada, viu, vai reclamar para quê?: eles se escondem debaixo do viaduto, não interessa". Têm pressa. Vivem por aí, no meio de fumo, no meio de poeira, bebem leite e pão. Roubam para vender. Pegam material valioso. Vai! Ámen!

“Me irrito quando falo de política, não tem como me irritar, tenho 42 anos, sou novo, imagina quando essa gente mais velha que eu o que já viu de malandragem: tá tudo ligado. O Brasil não mudou nada, nada, nada, nada, é fachada”. “Vem Geraldo, segura a sacola”. “Fome, tenho fome”. “Desculpa, pode me ouvir?”. 7961- Apiacás, via Doutor Arnaldo: Passa na Cardoso de Almeida?". "Passa não, melhor pegar na Paulista” “Vai me revista, não tenho nada não”. Sacolão das artes, teatro de rua, ensaio na calçada: A Bolha, fazemos todos parte dessa bolha, splashh, me pega. "O arroz e o feijão aumentaram de preço, como a gente vai fazer para sobreviver?". "Diz para ele que os produtos melhores vão todos para exportação e que a gente só fica com os restos, fala-fala-ahahahahahahaah! "Ele falou que todo o mundo começa comendo arroz e feijão como parte de uma dieta alimentar equilibrada, para um dia poder comer algo melhor... E, agora, que essa bolha está construída, onde a gente vai trabalhar? Fala para ele, que vai ser preciso alguém ficar bombeando no subterrâneo e que vamos pagar para ele ainda menos do que pagávamos: ahahahahaahah!" "Ele falou que o mercado está aberto a novas possibilidades de trabalho e, com o crescimento do Brasil, haverá um mundo melhor à sua espera..."

Jacarandás em cemitério, cemitério com vagas, velório com estacionamento, zlap, acelerar. Ambulância, sinfonia, bolhas, bolhas, clero, nobreza, monarquia, autocracia, consumo, insumo, desuno, agrego para desagregar, congrego, invejo, inferno, anseio, regateio, parcelo; parcelo a vida para que não se vá de um zás. “Cemitério da Consolação: há vagas”.   

domingo, julho 11, 2010

Cuidados Paliativos VII - Mergulhar na Leitura

Há quem leve a sério aquilo que, à partida, pode parecer apenas uma figura de estilo. Mergulhar num livro pode parecer uma coisa tão improvável e fantasiosa, quando possível e simples de concretizar. Tal como dizer que a última viagem que fizemos foi até ao País das Maravilhas. E, por instantes, todos nós já fomos um pouco Alice: estivemos nesse mundo fantasioso, improvável, e voltamos com recordações reais. E eu sou Alice quando mergulho num livro. E gosto de mergulhar neles, mesmo sem garrafas de oxigénio. Há que perder o fôlego para que alguma coisa nos resgate em bafos boca-a-boca, ou nos lance a bóia. Sempre acontece, ainda que naufraguemos.

Houve até alguma prosa que me tirou o sono (Saramago fazio-o como ninguém) de tão intensa e envolvente. O Raduan Nassar foi um curto mas vivo naufágio. A Hilda Hilst é uma espécie de bunker-submarino: a pressão começa a rarear o oxigénio. O Gonçalo M. Tavares é um rochedo cercado de ondas que quebram quando menos esperamos e nos arrastam para a areia. Há outros que não passam de um chapinhar na água: ainda atiramos pedras a ver se fazem ricochete, mas são águas calmas - não vale a pena forçar uma corrente que nunca virá.

É. Resgatando a metáfora: mergulho tanto, às vezes, que parece que estou lá, ali, a viver a vida dos outros. Nos becos sem saída dos personagens, nas angústias, nos sentidos proibidos das avenidas dos afectos, dos amores, desamores, nas esquinas entre a angústia e rasgos de felicidade improvável, ou até mesmo nas descoordenadas do mapa que a vida vai desenhando, sem pistas para um planeamento. Mayday!

Mergulho tanto que parece que estou lá, dependendo da riqueza da linguagem, extensível ou não à outra que é só minha, nem certa nem errada, apenas demasiadas vezes intransmissível (houve alguém que me disse, certa vez, que sou hermética). Mas é essa linguagem vívida do autor, sinestésica, ainda que seca, rude, que nos estendem os sentidos, levando-nos ao quadro da diegese que se torna real. Eles podem levar-nos a cheirar a escatologia.

Desta vez, por exemplo, estou a ver a catinga do sertão, quase a morrer de fome com Sinhá Vitória, como se fosse um de seus filhos, nas Vidas Secas de Graciliano Ramos. Houve vezes, até, em que sonhei com personagens. Ou, mesmo nesse mundo onírico, acontece frequentemente debater-me com situações, que me incomodam e me dão pouco descanso, dignas de um mundo de Kafka. Ele anda aqui na cabeça. Nada agradável.

Entretanto, ontem, na esplanada do Centro Cultural Banco do Brasil, no centro de São Paulo, enquanto mergulhava de uma outra forma nas andanças de Sinhá Vitória, apercebi-me de alguém, na mesa ao lado, sob a penumbra cinzenta do fim de dia já, ainda mais mergulhado do que eu numa outra leitura. Não consegui perceber o título do livro que demandava tamanha dedicação do rapaz que o agarrava, como se se precavesse de alguma tentativa de roubo, perda. O rapaz, de costas vergadas, inclinava-se de cotovelos apoiados na mesa de madeira, óculos fundo de garrafa, e com as páginas coladas quase a eles – posso garantir que não distava mais do que 7cm. Acho que ele tentava mergulhar, levando ao pé da letra, a figura de estilo que dá título a este longo post (como costumam ser sempre os meus, herméticos, por sinal). Acho que ele tentava, inamovível, o exercício de imersão. Aposto que também ele queria ser Alice.

quarta-feira, julho 07, 2010

sexta-feira, julho 02, 2010

Paciência, exercício de contenção; o m.q. o homem da mala, primeiro acto

Para se exercitar a paciência é preciso uma generosa e grande dose... de paciência, por ela própria. Sábia e senhora da arte de contenção, perante todo e qualquer estímulo exterior, ou interior, que se nos desarticula o pensamento, desalinha os eixos do atino, ou até mesmo das hormonas (sempre elas, tirania-da-perseguição), ela é uma mulher pesada, robusta e anafada de técnicas subtis conjugadas. 

E, hoje, parece, para se adquirir essas técnicas de estado “zen” (i.e.: sou átomo etéreo: este mundo não é real, vanessa dixit) é preciso aprender primeiro, imagine-se, com outras milenares, como o zazen, a meditação zen budista, meditação transcendental, a mímica (um mimo!) e outros universos tão ou mais “este-é-o-meu-corpo-mas-eu-aqui-não-estou-topas?”. Topo. 

Mas, nos últimos tempos, tenho-me apercebido que todas essas “técnicas”, qualquer que seja a “origem ou religião” (ou mimetismo), derivaram de uma outra técnica que, de tão óbvia, nos passa despercebida. BUFAR! Quem nunca ouviu alguém chamar-nos a atenção: “não bufes que não te adianta!” Topam? “Não bufes que não te adianta”: brilhante. Já vejo a Eva (ou lá o nome que ela tinha, se tinha) a tentar grunhir ao Adão (sou mulher, então é natural que veja as coisas por este prisma, sem qualquer senso de neutralidade), bufando, abanando-o, para que ele se acalmesse só porque não conseguiu caçar um dinossauro-bebé, porque ele é mais veloz que as pedras que ele lhe atirava).

Ou ainda, quem nunca ouviu alguém dizer: “Conta até Dez!”. Como se esse fosse a contagem necessária, algarismo-a-algarismo para dissipar e pulverizar a força da nervosidade fervilhante (linha divergente: tira-nos do sério) que têm os pólos negativos da nossa biologia. Como, certamente, nem Eva, nem Adão sabiam o que era contar (isto da quantidade devia ser algo como: há muito, ou há pouco, lá na caverna). Mas, parece óbvio: se bufarmos demasiado acelerados, quer isso dizer que perdemos as estribeiras. As nossas beiras (bochechas?) estridentes (barulhentas?).

Se bufarmos devagarinho, significa, então que até podemos assemelhar-nos a um animal espiritual, quase gurus: zen. Isto é: na técnica de bufar frouxamente, podemos esvaziar os pulmões e assim, oxigenar o cérebro e dar tempo para que ele perceba o grande pé-na-jaca que poderíamos estar prestes a pôr – como se a jaca pudesse metaforizar qualquer demonstração do ridículo, ou, simplesmente, da ténue fronteira que nos leva ao constrangimento. Fora os truques baratos do pleonasmo (paciência-precisa-de-paciência), explicamos.

Seis da tarde, praça da sé, São Paulo. Ainda lá não estive, porque ando com o mundo na cabeça, que se resume a uma sala com vista para a Av. Sumaré, motas a acelerar às quatro da manhã, autocarros com travões chiantes, enguiçados, e outras esquizofrenias a que a urbanidade obriga – ou é tudo apenas um crasso defeito de profissão. Mas há profissões mais felizes, aparentemente. Nessa mesma praça, recordo, estava um orador eloquente – qual Lula em convenção partidária – a falar sozinho.

De microfone na mão (acto performático), gesticulava, violentamente, controlando a respiração sem perder as estribeiras. Não bufava, nunca. O nirvana não morava nele, no entanto, o fôlego, à partida, descontrolado pelo verbo inflamado, reforço:loquaz, tem um pacto qualquer com aquele microfone direccional. Brada, propala, percebe-se, com inspira-expira cadenciado, a palavra do “senhor” (olhei em volta e não o encontrei) contra o diabo (o das estribeiras, talvez); e rematava que ainda havia tempo para a salvação (eu acho que não queria ser salva).

Todos os que passavam ignoravam o pobre homem que deve fazer daquilo uma profissão à séria, e seguiam, acelerados, com outra respiração. Se isto não é um exercício de paciência (ignoram-me, mas continuo bradando), não sei o que será. Lembro-me que, perto dele, dessa vez que o vi, estava um adepto dessas tais técnicas orientais (oooommmmmm), inamovível e inquebrantável perante o ruído da ambulância de sirene disparada, motas, carros, sinos a dobrar pela morte de alguém, e mais a amplificação das sonoridades que pode ter uma urbanidade a borbulhar de gente.

Mas mais impressionante, (se a paciência o trouxe até este período do post, certamente bufou, devagarinho) foi o homem da mala. Esse é o cara. Chegou calado. Tirou o casaco. Abriu a mala. Fingiu tirar de lá alguma coisa e pôs toda a gente que passava magnetizada nele: nos gestos leves, pairando, exagerados, como se os aumentasse à realidade da caricatura dos movimentos. Burlesco, quase. E fez tudo isso com o silêncio. O pobre homem arrebatado de microfone terá, então, perdido a paciência e deu um quase-bufo. Quase, porque o verdadeiro viria depois. O microfone traiu-o. Bufou. Começou a bufar cada vez mais acelerado. A população aproximava-se, mais e mais, do homem da mala, que continuava sem ter nada dentro dela. Parece que gostamos que nos enganem com o nada, fingindo. 

Ele bufou. Bufou, enraivecido. Gritou “Diabo”, pude ouvi-lo. “Diabo”, vociferou, novamente. Mesmo assim, ninguém o olhava, ninguém com ele se incomodava, como se não existisse. E esse, asseguro, é o melhor exercício de paciência e contenção que pode existir.