sábado, dezembro 27, 2014

Abafado e um leve latejar da música

Sempre sonhei em ter um leitor de vinyl, depois dos 17 anos, porque aqueles que existiam em casa dos meus pais desapareceram, ficaram fora de moda, viraram lixo e conjeturava-se que nunca mais se usaria algo tão obsoleto. Que grande equívoco! Que grande falácia! 

A primeira desilusão, confesso, foi quando descobri que aquele móvel lindo, da Philips, que já não mais existia no espólio familiar tinha sido doado a uma comunidade religiosa, no Porto, talvez a um bairro social, o meu pai não se recorda ao certo. Aquele móvel fora do meu avô, fora comprado a duras penas com um salário contado de um operário, para poder dar ao lar, nos anos 70 do século XX, a última tecnologia da época. Tinha um leitor de vinyl, rádio e espaço para guardar dezenas de discos. Fez parte da minha infância (limpei muitos vinis, troquei muitas agulhas, coloquei muitos discos para tocar e dancei muito, feliz) e tinha feito muitos planos para ele. 

Um dia, quando tivesse uma casa a que pudesse chamar de minha, arranjaria um canto de destaque para ele. Iria concorrer com o espaço para os livros, é certo, mas não falharia metro quadrado para ele. Debalde. Perdera-lhe o rasto. 

Depois, um outro pequeno móvel vertical também da Philips, e que morou uns anos no meu quarto da casa nova dos meus pais, também entrara na fase da reforma. Não me recordo como ele desapareceu do quarto. Não me recordo como muitas coisas, aliás, "desapareceram" do meu quarto. (Talvez devesse contratar um detetive para achar as coisas perdidas). 

No entanto, em 2011, quando fui a Nova York, ao abrigo de uma bolsa de jornalismo, pude concretizar o meu "sonho" e adquirir, em Williamsburgh, um leitor de vinyl portátil, da marca Crown, pequeno e prático, cujo volume pode ser sintonizável em duas frequências de rádio. Começou, então, aos poucos a recuperação do passado que fora já, outrora, o futuro, a tecnologia de última ponta. 

Devo confessar, que talvez por ter ouvidos sensíveis, de ouvir frequências sonoras que poucos ouvem, me apraz, particularmente, os vinis onde o som é abafado e onde se ouve um estalido frequente quase como um latejar da música. Por isso, quando não tenho o tocador de bolachas por perto, para ouvir a Carmen Miranda, o Django Reinhardt, o Adoniran Barbosa, o Paulinho da Viola ou a Clara Nunes, sintonizo, online, a Rádio Batuta, com o espólio musical do Instituto Moreira Salles. É o templo dos sons abafados, o elixir do latejar da música.

segunda-feira, dezembro 22, 2014

O Refúgio da Infância, expo de António Morais, Porto

É hoje. "O Refúgio da Infância". Exposição de António Morais, na Colorfoto, Rua Sá da Bandeira, 526, Porto, a partir das 17h30. Retratos pueris de crianças refugiadas Palestinianas. "De alguma forma, a infância é um certo sentido de refúgio, um lugar intemporal onde todos já estivemos e aonde todos voltamos, em algum momento, ao longo da vida, como forma de escape ou retorno àquilo que somos." Contamos convosco. https://www.facebook.com/events/737249846358469/?pnref=story


segunda-feira, dezembro 08, 2014

Caligrafia

O meu professor de Árabe tem um trauma de infância. Esqueçam os monstros, os bichos-papões, os polícias, os pais severos e a educação pelo cinto. Aprender a caligrafia arábica era o pesadelo de todas as crianças árabes. Começava com a pena a mergulhar no tinteiro e o treino diligente, primeiro, para que não se derramasse uma gota que fosse daquele líquido negro que viajava no bico do utensílio afiado que iria materializar a linguagem. Ofício para exímios, portanto. Depois, a verdadeira prova: escrever da direita para a esquerda sem borrar letra-a-letra, o que se acabava de escrever. E, nem sempre, o mata-borrão obedecia, pelo contrário, parecia fazer troça dos mais ingénuos. O melhor aluno era aquele que conseguia a proeza dos desenhos alfabéticos sem mácula no branco onde se escrevia. E tudo isto com toda a delicadeza que as letras árabes impõem. Desenhos simbólicos que parece que dançam no papel. Porém, uma coisa é a letra árabe isolada, outra é a ligação que essa letra tem com a letra seguinte para formar uma palavra, e que pode ter ou não movimentos (harakat) – mais ou menos o equivalente às vogais. Isso implica símbolos específicos em cada letra. Ufa! Eu explico: imaginem a palavra casa, que em árabe diz-se “bayt”, isto é بيت , mas se quisermos as letras isoladas teríamos B= ب Y=ي T= ت
É menos complicado do que aquilo que parece. Mais complexo era, sem dúvida, o exercício que deixou marcas na memória de Abdel, o professor. Um exercício para expor desastrados. Eu teria com certeza falhado a tarefa. Até porque, se bem me lembro, a minha perícia para escrever em cadernos de duas linhas estreitas, para treinar a caligrafia (lembram-se?), era já per si, um pesadelo a que tentava esquivar-me com técnicas avançadas: Ah! Esqueci-me! Debalde. Os complôs doméstico e escolar estavam instaurados, como conspiração de espionagem apertada. As técnicas de moralização também não eram as melhores e, entre ouvir que tinha uma caligrafia “pouco apresentável” a um “horrível” sincero de alguém, tentei, pois, ser mais diligente, surripiando a caneta de tinta permanente do meu pai. Já que tinha de escrever, que fosse com uma novidade. Achei mágico o mergulho daquela ponta afiada num frasco de tinta índigo. Fiz por isso, um admirável e competente borrão, que hoje, se o tivesse guardado, poderia expor, quiçá, numa galeria de arte. Ou até mesmo teria, eventualmente, inventado um novo e pioneiro teste de borrão psicanalítico, muito útil aos seguidores do senhor Hermman Rorschach, psiquiatra suíço dos séculos XIX e XX, que certamente analisaria nesta imagem, a hipótese projetiva da minha personalidade hiperativa, com propensão para a desobediência. Não recordo, por ora, qual o castigo que me foi aplicado pelo derrame da tinta permanente – talvez o de ter que escrever horas a fio em cadernos de duas linhas, pois desde essa época a minha caligrafia tornou-se irrepreensível. Não obstante, nas aulas de árabe escrevo a lápis e asseguro que, até ao momento, não houve quaisquer manchas desastrosas no caderno. Qualquer dia arrisco a tinta permanente.

* Crónica publicada a 26 de Novembro de 2014 no Porto24, rubrica do Bairro dos Livros, Culture Print, intercalada com os cronistas Jorge Palinhos, Rui Manuel Amaral e Rui Lage. 
 
Bio| Vanessa Ribeiro Rodrigues é jornalista, escritora, documentarista, viajante. Nasceu no Porto, morou no Brasil e na Jordânia. O que lhe importa é reinventar a cor da linguagem, caçar histórias. É autora do livro “O Barulho do Tempo” e tem vários contos e poemas publicados em revistas literárias. Escreve segundo o novo acordo ortográfico.

segunda-feira, dezembro 01, 2014

Das leituras

O meu amigo Nuno Ferraz (já lá vão quase 20 anos, companheiro), leitor diligente, seletivo e viajante atento, presenteou-me, no passado aniversário (eu sei, quase um ano depois) com este livro magnífico da Carmen Miranda, pelo cunho do jornalista brasileiro Ruy Castro. Antes desta biografia sair, no Brasil, recordo-me bem, da cantora Jiji Trujilo (nome artístico), que no reportório musical tem Carmen Miranda, me falar desta literatura e que andava, também ela, a fazer um estudo musical das influências desta cantora luso-brasileira, sua musa inspiradora. Recordo-me da nossa conversa, no meio do chorinho Paulistano, naquele que para mim é dos melhores lugares de samba de raiz, em São Paulo, o Ó do Borogodó. Mal eu sabia que, anos depois, o Nuno, lembrando-se da minha condição luso-brasileira me daria um livro há muito desejado. Como diz o Paulo M., outro amigo querido, um dos meus principais impulsionadores para que não desista nunca de criar, "isto está tudo ligado". De uma escrita direta, limpa, generosa e, concomitantemente, inteligente, Ruy Castro perscruta as várias camadas da vida de uma das maiores musas do Brasil, e, ainda, tão distante da memória portuguesa. Além isso, são as imagens a preto e branco da vida privada desta artista de alma além do seu tempo, que nos envolvem numa viagem não só ao talento, modernidade e excêntrica condição de ser livre, mas também à generosidade e humilde paixão pela música. 
 

quinta-feira, novembro 27, 2014

Outonar


Por baixo daquele tapete que parecem trapos sortidos esfiapados pela natureza outonada (em âmbar, rosa, magenta, amarelo, laranja, vermelho, castanho-terra, castanho-tronco, castanho-carvalho, rosa-velho) há sedimentos do que resta das rochas, das pedras, gravilha desfeita, que ensaiam a melodia outonal. Solfejo: graves, agudos, sussurros, sensorialidades quase invisíveis a audições viciadas em ruídos urbanos. Escuta-se o esvoaçar diáfano de folhas murchas, outras em queda livre, sensíveis à aragem, descarnando as árvores para serem bafejadas de ventos que puxam a invernia. Ontem, pude esmagar com os pés calçados, este tapete unido, abundante em andrajos que a natureza começa a desfazer-se. Pude ouvir o estalejar dos pequenos órgãos vegetais que se despedem do seu estado maduro para a iniciação a pó, a sedimento, a terra renovada, para se quedarem em infinitas partículas. Ontem, enquanto caminhava, quase deslizei numa folha mais húmida, resistente à decomposição. Hoje, contudo, o tapete já se foi, e a poeira resta por baixo, cor-de-cal-pincelado-de-cobalto. Os trapos são sempre temporários. Mesmo estes, tão secos e reais, tão vegetais e fibrosos. É preciso recolher as folhas antes que partam até ao próximo Outono. 







quarta-feira, outubro 15, 2014

O Labirinto

*Crónica publica no jornal online Porto24 a 15 de Outubro

 Tenho uma predileção por labirintos. Vejo-os nas mais diversas manifestações de vida: nos caminhos anatómicos no cérebro, nas relações humanas, no amor, nos cursos de água da Amazónia, no pensamento e, claro, na literatura. Folhear um livro, mais do que o explícito ou implícito da invisibilidade, ou perscrutar a psicologia de um escritor, é entrar-no-labirinto-além -de-entre-as-linhas.
Se sublinharmos, infinitamente, a lápis, esses corredores de letras, intercalando tal qual poetas concretistas brasileiros o rigor da palavra-após-palavra, criando efeitos gráficos, poderemos deixar-nos levar, primeiro, por uma espiral. Depois, a tentação será a de subverter o deslize, em várias direções, ao som do tssssssss da plumbagina. O grafite parece-me a forma mais sensorial de vivermos o intrincado das e nas páginas. Esse é o caminho mais evidente para chegarmos ao auto-labirinto, resgatando dos livros as palavras e os sentidos que melhor servem o enredo em que nos vamos enovelando. Paradoxalmente, quanto mais parece que nos perdemos, mais nos vamos encontrando.
Na época barroca, o labirinto era uma forma aberta de interpretação literária concedendo vários caminhos possíveis para a sua leitura. O que interessa a esta prosa, todavia, é de como, por vezes, os labirintos se bifurcam. Tal e qual como me aconteceu.
A palavra labirinto, escreveu Jorge Luis Borges no “Livro dos seres imaginários”, vem do grego lábrys (λάβρυς), ou machado de dupla lâmina, símbolo encontrado no palácio do rei Minos, na ilha de Creta, local identificado com o mítico labirinto projetado por Dédalo e habitado pelo Minotauro.
Em 2011, a propósito dos 25 anos da morte de Jorge Luis Borges, Veneza resolveu homenagear o escritor argentino, que era apaixonado pela cidade, prestigiando-o com um jardim-labirinto, que se tornou um dos maiores do mundo. Para isso, inspirou-se no conto “El jardín de los senderos que se bifurcan”. São dois quilómetros, com 3.200 plantas, informações em Braille e, visto do alto, reproduz o nome de Borges de forma intrincada. Foi projetado nos anos 80, do século XX, pelo inglês Randoll Coate e concretizado pela Fundação Cini. Quando o avistei em Abril passado, do alto do Campanário da Igreja de São Jorge, em Veneza, mesmo aos pés de um primoroso pôr-do-sol, tive a certeza que a literatura ganhara vida e fazia de mim personagem real e “bifurcada” daquele labirinto. E que as páginas de um livro que desconheço, com a minha história (procura-se paradeiro), estaria a ser sublinhado a lápis. Seria eu a perder-me e a encontrar-me no labirinto, como um general de Gabriel Garcia Marquez. Ao mesmo tempo que percorria esse borgeano labirinto de Veneza, pude imaginar que ele iria dar ao labirinto de sebes do Parque de São Roque da Lameira, no Porto, no caminho para casa. E, por isso, não precisaria de avião algum que me levasse de volta. Percebi, nesse momento, por que tenho afeto por labirintos. Eles são verdadeiros portais do tempo, territórios neutros. E nós, em algum momento, seres imaginários.
Vanessa Ribeiro RodriguesVanessa Ribeiro Rodrigues é jornalista, escritora, documentarista, viajante. Nasceu no Porto, morou no Brasil e na Jordânia. O que lhe importa é reinventar a cor da linguagem, caçar histórias. É autora do livro “O Barulho do Tempo” e tem vários contos e poemas publicados em revistas literárias. Escreve segundo o novo acordo ortográfico.

quinta-feira, setembro 25, 2014

Desapego, deve ser isto

Há momentos num percurso de vida em que temos largar as coisas (atenção: ironia). As fraldas, a chupeta, as bonecas, os carrinhos, os berlindes, as papas, as chicletes gorila, as cassetes, enfim, extensões de nós que deixam de fazer sentido, que se perdem no éter do nada, no vazio. Extensões de que perdemos o controlo. Há, realmente, extensões de nós, às quais podemos nunca mais ter acesso, embora nos pareçam imortais e eternas, naquele exato momento em que vivemos.

Tudo isto poderia não me ter acometido se não tivesse percebido que a maioria dos meus alunos deste ano tem uma conta hotmail. E isso funcionou como uma espécie de mnemónica. Aos 18 anos criei a minha primeira conta de e-mail no serviço hotmail. Achei que mais ninguém usasse hotmail. Quis voltar a ela, rever o lixo que por lá poderia andar e nada. Não me ocorreu que o ano passado a Microsoft se apoderou de todas as contas inativas e pluff. Zerou. A minha primeira conta nunca existiu, portanto, devido a um processo de extermínio. E essa conta foi tão física quanto os quilómetros de palavras e e-mails que por lá deixei. Para onde foram as palavras? Para onde foram as fotos, os vídeos, enfim, para onde foi o virtual, a lógica formulada na equação de zeros e uns que existiu? O universo cibernético é esse nada virtual que pode entrar em crise existencial. O nada pode implodir. Percebi que como já não ia a tempo mais valia esquecer o assunto.

Minutos depois, contudo, ocorreu-me que também tive um endereço eletrónico do Portugalmail. De imediato, fui confirmar, recordei-me da senha e entrei para um universo de milhares de e-mail por ler. Resolvi pôr um fim ao caos e vaticinar o fim da conta. Recebi um e-mail para confirmar a ação de carrasco implacável. Hesitei, mas segundos depois, dei luz verde. Voltei ao processo de pensamento em cadeia e recordei-me do Hi5. Não consegui entrar: o e-mail de acesso ou era o hotmail, ou o portugalmail. Confesso, não doeu. Foi uma coisa natural, como as fraldas, nem damos por nada. Desapego, deve ser isto.

quarta-feira, setembro 24, 2014

Prémio Documentário "À Flor da Terra", no Festival Internacional Filmes de Turismo Art&Tur


Agora já é oficial. "Tenho a honra de informar que o júri do VII Festival Internacional de Cinema de Turismo - ART&TUR, presidido por Elizete Kreutz, decidiu premiar o seu filme "À Flor da Terra", confirma um e-mail pela manhã. O documentário sobre o resgate de memória da Quinta de Covela, no Douro, que realizei, produzi e cujo guião escrevi, em tantas horas de insónia e mergulho em apneia, (ufa, done!), está premiado no ART & TUR - International Tourism Film Festival. Este filme documental (50 minutos) tem o cunho estético de António Morais (Direção de Fotografia), a edição dedicada de Osvaldo Pinto, (tantas horas de trabalho, companheiro), a captação de áudio de Ricardo C Gd e Gonçalo Sousa, também responsável pela pós-produção áudio; Carlos Barros de Carvalho e Osvaldo Pinto, ainda, como camara men. Muito Obrigada a todos. Sempre acreditamos no potencial deste filme, pela maravilhosa história da Quinta, seus personagens reais e pela equipa envolvida. O Festival decorre de 23 a 25 de Outubro, no Porto; o documentário "À Flor da Terra" terá a sua prémiere por lá e a premiação será no último dia. Em breve o programa ficará disponível no website e redes sociais. Saravá!

sábado, setembro 20, 2014

A vida real

E a minha crónica Bairro dos Livros deste mês é "A vida real" e está cheia de personagens invisíveis e alguém num divã a ouvir vozes. Será, doutor?



A vida real


Doutor, eu tenho um problema: ouço vozes. Vozes reais. Começam com palavras, alguns regionalismos, lógicas, divagações e logo tomam a forma absoluta de realidades paralelas.
Doutor, eu tenho um problema: ouço vozes. Vozes estridentes, graves, aflitas, felizes, regozijadas, tristes, impositivas, subservientes, dramáticas, roucas, baixas, altas, doces, suaves, grossas, abafadas, metálicas, de ninar. Confidenciam-me mistérios, coisas com e sem sentido. É um constrangimento, doutor. Eu sei, espere, não, não sou louca, não é alucinação, embora me vá dizer que padeça de alguma coisa. Sou professora universitária, madrinha de um afilhado de seis meses, fã de Cartier-Bresson e Kapuscinski, tudo convenções respeitadas, meu caro. Como vou admitir que ouço vozes?
Diga? Se essas vozes têm forma física? Ah, não, não doutor. São invisíveis. Mas sei quem são: adolescentes, mulheres, ativistas, homens do campo, contrabandistas, traficantes, operários, povo, há tanto povo nas minhas vozes, doutor. Quer dizer, eu não as conheço, mas consigo identificá-las. São aos milhares. E, passado um tempo, começo a reconhecê-los a todos. Se calhar deveria enviar postais de Natal. Bom, talvez não seja assim tão boa ideia. Seria bonito; ficaria a escrever até à próxima época natalícia, à velocidade com que ouço (schhhhhh!!!) estas vozes.
Todavia, há pior, caríssimo: eu tenho várias vidas. Infiltro-me na casa dos outros, subo escadas clandestinas, durmo com homens e mulheres que desconheço. Quer nomes? Domingos, Zé Navalha, Ludovico, Alexander, Blimunda, Francisco, Maria das Cajatas, Manoel, Belarmina… Ajude-me, doutor! É como se o corpo que habito tomasse formas humanas, de princípio camaleónico. As referências mentais são as mesmas, mas a vida é a dos outros, doutor. E não, eu juro, não me refiro ao Facebook, que me mantenho desligada por dias. Falo de vidas reais; de vozes reais. Começam com palavras, alguns regionalismos, lógicas, divagações e logo tomam a forma absoluta de realidades paralelas. Eu mergulho doutor. Ouça-me, eu integro-me e desintegro-me tal qual partícula, elemento da insondável condição Biológica, Física, Filosófica, Parapsicológica. Não sei.
A primeira vez que tal me aconteceu eu devia ter, sei lá, uns seis anos. Começou a sério, por aí, muito embora, bem antes, eu possa quase assegurar que ouvia uns ruídos. Eram apenas rumores prolongados, mas a experiência do seguimento da vida (como se chamará um presente que não o é e um futuro que seria, mas já foi: um entretanto?) diz-nos em algum momento das nossas vidas que esse bulício sonoro já são sinais. As vozes têm um significado, dizem coisas concretas, constroem narrativas, têm vida tanta vida. Às vezes relacionam-se umas com as outras. Será que deveria falar com outras pessoas que ouvem vozes? Vivem outras vidas? Será possível? Para você perceber como isto acontece: sento-me, mergulho os olhos e a alma e esqueço o mundo ao redor. Aí elas começam a falar comigo. Não raras vezes, dou por mim a responder-lhes, a falar-lhes alto e bom som. Depois acordo: fecho o livro e volto a ficar ligada à vida real, percebe-me doutor. Doutor?
Vanessa Ribeiro RodriguesVanessa Ribeiro Rodrigues é jornalista, escritora, documentarista, viajante. Nasceu no Porto, morou no Brasil e na Jordânia. O que lhe importa é reinventar a cor da linguagem, caçar histórias. É autora do livro “O Barulho do Tempo” e tem vários contos e poemas publicados em revistas literárias. Escreve segundo o novo acordo ortográfico.

quarta-feira, setembro 17, 2014

Bonfim, Anatomias


O lugar onde vivemos, há-de dizer muito sobre aquilo que somos, ou melhor sobre aquilo em que nos podemos tornar. A freguesia do Bonfim fica no Porto Nascente, tem 3,05 quilómetros quadrados, 35 mil habitantes mais um (eu, que não estou registada), uma biblioteca, duas estações de metro, uma faculdade de belas artes, um colégio de órfãos, uma Arca D’Água de Mijavelhas, habitantes sempre acelerados (salvo o homem do laço, que todos os dias lagarteia na esplanada do campo 24 de agosto), sete supermercados, dez farmácias, quinze talhos e o café do senhor Manuel. Consta ainda que tem um monumento ao Viajante Profissional de Vendas, no Largo da Moreda, um Museu Militar, uma escola de hotelaria, nove centros religiosos, entre capelas e Igrejas, sendo uma Adventista, outra Evangélica e as restantes Católicas. Já daria para fazer um encontro ecuménico, portanto. E parece que, às vezes, a Junta de Freguesia tem “Revista à Portuguesa”, no pequeno auditório, e exposições fotográficas de Tiro com Arco. (O que ando eu a perder, deus meu e os santos de férias).

A pé, o Bonfim fica a cinco minutos do centro principal portuense, mas eu creio que as coisas não seguem, exatamente, a mesma lógica do resto da cidade, por exemplo no vocabulário, esse seu jeito de falar. Tudo me leva a crer que os moradores do Bonfim são humoristas profissionais. As mulheres bonfinenses sobretudo. Quem assim não nasce, há-de tornar-se na certa, assim que aqui more. É um bairro onde as formigas têm atacado as residências com afincada dedicação que está para durar (nem a minha fotografia-macumba as demoveu de tal empreitada, mas eu prometo ser implacável), mas não admira para um lugar que cresceu em torno de um Monte chamado de "As Feiticeiras" e com uma Igreja dedicada ao Senhor do Bonfim e da Boa Morte. Tudo contradições, ou congruências, que dariam boas piadas, claro está.
Ainda hoje, por exemplo, a ajudante da florista Luz-e-Flor afiançou-me, enquanto enrolava uma gerbéria azul (coisas estranhas acontecem por aqui, experiencio) que as suas férias lá “nos Algarves” foram uma miséria.

- Ela: Mais valia ter ficado em casa, do que fazer mais de 500 quilómetros para ver chuva algarvia. E entrar no mar, menina? Aquilo era um sarrabulho de algas. Pimba e pimba, tínhamos de afinfar as pernas para cima, sabe-se se lá se o mar tinha ouriços. Era uma lonjura para ir tomar banho.

Já a dona Albertina, lampeira e pimpolha com uma cesta vazia, antiga,  em cima do balcão do café do senhor Manuel, assegura que agora já não tem de regar os tomates do marido, pois a chuva garante-lhe o serviço.

- Ela: Olhe lá, todos os dias, ter de ir lá, regar os tomates do meu marido.

E desata num riso de quem faz plateia de vinte espectadores. Mais adiante, na Farmácia Firmeza, a farmacêutica Isabel troca-me as ideias. Peço-lhe um Centrum Feminino e ela diz que não conhece.

- Ela: Não quererá antes dizer Centrum Mulher?
- Eu: Sim, claro, mas não deixa de ser feminino, pois há o masculino, que tem outros complementos vitamímicos, certo?.
- Ela: Não, não é a mesma coisa. Dizer Centrum Mulher é mais...forte, mais digno. É um Centrum com Tomates, mas para mulher!

Estão a ver que tipo de piadas vos esperam, certo?

terça-feira, setembro 16, 2014

sábado, setembro 13, 2014

Novo Curso|Crónicas e Reportagens de Viagem

... Da estrada ao online. 

Ainda há vagas (poucas) para o curso de Crónicas e Reportagens de viagem, que irei orientar em Lisboa, em Setembro: da estrada ao online. Podcasts, vídeos, galerias multimédia. Dias 22, 23, 24 e 25 de Setembro. Com novidades frescas desde o Brasil. Divulguem, a quem interessar. Muito Obrigada!

Para saber mais e inscrições seguir este link da escola Escrever, Escrever, em Lisboa.





quarta-feira, setembro 03, 2014

Sem sinal



Estar sem rede, hoje, para nós bichos urbanos, geração a partir do final dos anos 70 e 80 do século XX, no abismo da espiral sôfrega, sem tempo, intermitentemente ligados, se por um lado pode ser considerado um atraso, por outro, neste agora, é sempre um luxo. Uma raridade; a ruptura da normalidade. Uma pompa porque, para nós bichos urbanos, viciados no telemóvel (não negue, à partida, uma ciência que desconhece) e na filosofia do sempre-ligados, desligar exige mais do que auto-disciplina, auto-policiamento ativo, é a neurose da educação pelo tijolo tecnológico. Impõe-se uma capacidade espartana para não cair em tentação. Mas o luxo fica mais fácil de ser assumido, consumado, quase como uma profissão de fé, se a geografia na qual mergulhamos for dotada de duas palavras mágicas: “Sem Sinal”. No momento da constatação, o bicho urbano pode sentir, inevitavelmente, apenas duas sensações: mãos suadas, palpitações, suores frios quase Antárticos, o que denuncia pânico. Ou por outro lado, um alívio, um enorme bem-estar, seguido de uma sensação de felicidade, e sorrisos bobos. 

Eu enquadro-me na segunda categoria.

Foi, sem dúvida, com regozijo e felicidade que mergulhei numa leveza absurda, felicidade essa que durou uma semana, sem queixumes, sem efeitos secundários, sem ressaca. Quando apareceu aquele "Sem sinal", redenção de aldeia transmontana, sorri. Enfim, durante uma semana, o telemóvel transformou-se num pisa-papéis, um objeto olvidado, uma coisa preta encostada à mesinha de cabeceira, inútil. Caiu no total esquecimento. Apesar da forte gripe que tomou conta do meu corpo de bicho urbano, com reminiscências rurais e desígnios telúricos, consegui ler 3 livros, dormir, ter tempo para pensar e não pensar, dormir, ouvir o barulho do tempo, da terra, da luz e dos bichos rurais.Tudo isto sem sinal! Tão bom!

Estar sem sinal, apercebo-me é mais um estado de origem, porém, mais surpreendente que isso, para os outros, provou ser uma forma de intolerância. Se não respondo às mensagens de facebook durante 24 horas, tenho um e-mail a questionar se vi a mensagem. Se não respondo ao e-mail (mesmo com resposta automática de ausência) teria mensagem no telemóvel. Estar sem sinal, para os outros, é sinal de atraso, stress e ansiedade. Parece no entanto, ser, uma forma de intolerância. Estar sem sinal, é sim estar noutra cadência de tempo. The ultimate experience! E apesar dos contrangimentos que esse estado pode causar, a quem vive permanentemente neste limbo, em casos de emergência, por exemplo, só posso declarar, no entanto, que sem sinal é o direito natural a não ser incomodado. Sem sinal deveria ser categorizado como um direito fundamental, em várias circunstâncias, umas horas por dia! Isso, ou imigrar para uma aldeia remota.

Leituras de Verão e Regresso às Aulas (Missão Cumprida)

Ler continua a ser das minhas viagens favoritas, o melhor mergulho, a melhor paz, o refúgio mais sincero e generoso. Se nessa viagem a escrita tiver sido dobada pela pena dos sábios, como foi, na cadência da Língua viva, erudita e que pensa, então terei tido o privilégio dos lugares infinitos, de ter vivido na ilha dos que nos levam ao admirável mundo da escrita. Enfim, terei ficado um pouco mais viva. Está a ser um belo Verão de leituras!

"Seara de Vento", Manuel da Fonseca, Forja 
"O Pão não Cai do Céu", José Rodrigues Miguéis, Círculo de Leitores
"Minas de San Francisco", Fernando Namora, Publicações Europa-América
"Cidade Partida", Zuenir Ventura, Companhia das Letras
"Louco de Palestra e outras crônicas urbanas", Vanessa Bárbara, Companhia das Letras
"À noite andamos em círculos", Daniel Alárcon, Alfaguara
"Nossos Ossos", Marcelino Freire
"Choque do Real, estética, mídia e cultura", Beatriz Jaguaribe, Rocco
"Filmar o Real, sobre o documentário brasileiro contemporâneo", Consuelo Lins e Cláudia Mesquita, Zahar Editores

sexta-feira, julho 25, 2014

Dizem que é oficial no Brasil. Ganhei o 3º Lugar com o CONTO "Nó Górdio, o dia em que enganamos a morte" do Concurso Literário OFF FLIP, em Paraty, no contexto da Festa Literária Internacional de Paraty. Depois de alguns anos a cobrir a FLIP, vou à FLIP receber um prémio. Diz que sou a única portuguesa e que tenho que ir ao Brasil na próxima semana. Diz que as passagens estão um absurdo (um apocalipse) e vou passar uns anos sem férias por causa dessa brincadeira (devia fazer um crowdfunding), mas diz que tem de ser, que galardão assim não acontece todo o Verão. Obrigada, Muito Obrigada! 

sexta-feira, junho 27, 2014

O Manuscrito

Regresso às crónicas - e quem sabe ao blog, que os pensamentos andam com ruído - pelo Bairro dos Livros, mensalmente, no jornal online Porto24, e em alternância com o Jorge Palinhos, Rui Lage e Rui Manuel Amaral. Esta sexta-feira a prosa chama-se "O Manuscrito".

"Imagino, por isso, um lugar onde estão todas as obras que não foram publicadas, um lugar onde os manuscritos dançam ao rufar dos tambores, rodeado de ébanos, fogueiras, iluminados por um imenso “ukamba”, num horizonte líquido". 

Para ler mais, seguir este link: http://www.porto24.pt/opiniao/o-manuscrito/

sexta-feira, janeiro 10, 2014

Ouvir demais, a pele da cultura

Nos últimos dois anos, têm-me acusado de ouvir demais. Eu explico: a televisão está sempre com o volume demasiado alto para mim (quando os demais se queixam que não ouvem nada), ouço sempre barulhos ou incoerências de som nas peças de rádio que estou a montar, quando os outros nada percebem; tendo a descriminar quantos sons tem uma música; sofro com os volumes de áudio das salas de cinema e estou sempre a dizer a algumas pessoas para falarem mais baixo. 

Se o primeiro cenário pode ser irritante para muitos (eu juro que o volume normal me fere os ouvidos), acreditem que é muito mais irritante para mim, tal como o derradeiro cenário. Ter, pelos vistos, alguém que ouve demais pode ser um problema. Não me ocorre, porém, nenhum caso em que tenha ouvido uma conspiração, ou confissão que merecesse um exclusivo jornalístico, mas gostaria, pelo bem do alegado dom (ou defeito). 

Eu confesso que não noto nada de especial, até o António me dizer que eu só posso ouvir em frequências sonoras que o comum dos mortais não ouve. Deve ser a isto que se chama ter ouvidos de tísico, cuja sensibilidade atinge níveis de audição premium. 

E por que razão me lembrei disto agora? Simples: além de ser uma constante na minha vida, concluí que talvez não seja por acaso, esse suposto "dom". Isso porque hoje voltei a fazer uma coisa que já não fazia há muito tempo e cuja atividade mantive durante anos: fechar os olhos na rua, no jardim, no autocarro e enumerar os sons ao meu redor. Um riacho, um pássaro, dois, três, passos, carros, folhas a tremer na árvore, gravilha, casaco a roçar, um motor, paragem de autocarro, ruídos brancos, tosse, risos. Fiz isso durante muitos anos - o ouvido há-de ter ficado treinado, sensível à quantidade de sons, dissecando-os na atividade cerebral. Fiz isso durante muito tempo, depois de ler o livro "A Pele da Cultura" de Derrick de Kerchove (discípulo de Marshall Macluhan, "O Meio é a Mensagem") em que a certa altura ele sugeria esse exercício: fechar os olhos e identificar os sons à volta. Na era do ruído, como esta, corro sempre o risco de ter uma overdose sonora. Talvez esteja na altura de fazer ouvidos de mercador. Usar tampões nos ouvidos também não me parece má solução.

segunda-feira, janeiro 06, 2014

À Procura dos meus personagens


(Algumas notas sobre um breve Brasil)






1. Três anos fora do Brasil é viver como mergulhador sem oxigénio. A coisa pode dar para o torto e sofrermos de uma doença descompressiva. Mas eu aguentei-me à bronca (tentei), mergulhei várias vezes em apneia, por instantes, e fui capaz de voltar à tona sem grandes mazelas. Correu bem e nada acontece por acaso, como nadar na direção errada. A viagem ganhei-a por causa de outra viagem em 2012. Um passo atrás para dar outro à frente, eventualmente. Foi uma oferta de uma boa amiga que quis presentear-me e ao A. pelo nosso trabalho. Foi há um ano e este foi o ano possível de um Brasil. Eu fui primeiro. A. foi depois. Foi a viagem dentro da viagem.



2. Como todas as viagens, regressar ao Brasil está cheio de peripécias que podem pôr em causa a teoria de que nada acontece por acaso. Por exemplo, não entendo por que razão fiquei doente durante uma semana com um vírus qualquer, avassalador, de caixão à cova. Seria, enfim, um presente de boas-vindas irónico, uma quase vingança de São Paulo: “Estiveste este tempo todo sem cá vir, agora toma que bem mereces ficar de castigo”. “Pô, Sampa”, penso, “assim desfrutei um pouco menos de você.” Ela lá se terá arrependido e ao quinto dia deu-me trégua; mas nem tanto. O síndrome de estranheza não mais me largou. Era eu dentro de mim, era eu fora de mim. Um corpo dentro de um corpo. Há qualquer coisa de metacorporal no regresso ao Brasil. É viajar no tempo.



3. Eu vou ao Brasil à procura dos meus personagens. É que os meus personagens só podem ser brasileiros. Não há outro lugar onde tenha mulher que passeia com carrinho de bebé com um cão lá enfiado; ou vendedores de picolé à noite; homens que fazem dragões tão perfeitos que parecem de verdade debaixo dos arcos da Lapa; Clube de Leitura da Prosa na Baratos da Ribeiro, com um dono (aparentemente) antipático, temperamental, que vende clássicos da literatura brasileira a 3,5 reais e depois surpreende, oferecendo CD's da nova música brasileira à estrangeira; picanha no Cantinho do Leblon. Eu vou ao Brasil, apercebo-me, para ficar mais perto de mim, à procura dos personagens endógenos. Mas por que raio a vida me quer longe de mim, no meu país? É a identidade fora da identidade.



4. Ocorre-me que não fui ao BH, ao MAM, ao Ibirapuera. Enfim, há uma série de coisas que ficam para fazer quando se tem apenas um mês no Brasil. Há uma série de amigos que não estavam lá, há um pedaço de Sampa que já não existe, mas está lá; há uma lasca de tropicalidade que existe, mas não se vê. “O Barulho do Tempo” perdeu-se entre o Rio e Sampa, mas algo ficou em suspenso. Ainda deu para improvisar uma curta-metragem que precisa de tempo para ver a luz do dia. Resta-me agradecer aos anfitriões de sempre, tão longe-tão-perto; tão-iguais-tão-diferentes. A. e T., L. e A. Brasil, se fosses um filme, só poderias ter sido escrito e realizado por Woody Allen, com assistência certa de João Ubaldo Ribeiro (e outros coadjuvantes, que me perdoem os puristas). Afinal, é apenas isso: Viva o Povo Brasileiro! (E isto: tenho sempre de voltar ao Brasil).