segunda-feira, outubro 31, 2011

O dia D...é de Drummond

Carlos Drummond de Andrade. Olho as estantes e são escassos os livros do autor. Culpa minha que não lhe dei a devida atenção enquanto o Brasil foi pátria. Se algum consolo tiro das estantes, então pode ser este: "O Sentimento do Mundo". 

Mas tenho sempre algum receio dos poetas que falam do lodo do mundo, sem lhe ver alguma esperança. É que eu vejo sempre o melhor dele; tenho de ver. Foi para isso que para aqui vim. Para mostrar ao desespero e à angústia - muito esforço e desgaste - que há uma nesga de sol atrás das nuvens e que isso é importante. Porque as cinzentas palavras enegrecem o nosso sorriso e a capacidade de sermos felizes. É talvez por isso que quis catar o melhor de Drummond. Fica este "Mãos Dadas" e o vídeo em sua homenagem pelo Instituto Moreira Salles, defensor do dia D e onde se pode encontrar um acervo importante da obra do autor.


Mãos Dadas

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olhos meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens
[presentes,
a vida presente

Drummond de Andrade, Carlos. "O Sentimento do Mundo", Coleção Folha, Grandes Escritores Brasileiros, Página 53, (2008) 



sábado, outubro 29, 2011

manhã atrevida

Aquele suspicaz senhor que no metro entrou, logo pela manhã solar, azabumbado ficou e com ares de amuo, sibilando um acanhado suspiro da alma, claramente apoquentada. Começou a travar de razões o que a rapariga acabara de fazer. Veio sermão e missa cantarolada, mas sem afino de graves agudos (ao menos), enquanto víamos que a cabeça dela ficava todo um oceano de atlas aberto e com aquele corpo, náufrago, qual ilha à deriva pelas imprecações do pobre mas atrevido homem. 

Com embaraço prosseguiu e saiu na estação seguinte, tropeçando, com jeito leve, na saliência da pedregosa calçada. Enquanto todos nós muito calados, uns de livros folheados, outros de olhares a librar no dentro e fora disfarçado, e mais alguns de ouvidos tapados com diabos melodiosos, fizemos o sepulcro sonoro que convém nestes minutos mortos que sucedem o espanto e a vergonha. Pude reparar, no entanto, que lá fora a moça dançava e dançava. Posso jurar que lhe vi a língua, bem vermelha, deitada ao homem, que a não viu. 

quinta-feira, outubro 27, 2011

Quando os lobos uivam

Tenho um fascínio por lobos. Cheguei mesmo a esboçar o que seria o início de um romance, há uns dez anos, num arroubo juvenil de optimismo, onde os lobos apareciam com um simbolismo qualquer que agora não me ocorre. Não saí do segundo capítulo e era empreitada a mais para a tenra idade, até porque queria falar das agruras da velhice e da vida sofrida no campo, rugas essas que não tenho e pretensiosismo evidente para o vício da minha urbanidade. E mesmo quando, e se as tiver, exilada e a olhar o lírio dos campos, nada garante que tenha dedos sábios e sagazes q.b. para desfiar tamanhas linhas e juntar os retalhos do património da cabeça. 


Pois gosto de lobos, com certeza, mas se me puserem perto desse pai genético do cão, fujo a dois pés, pois os cinco a mais de que fala o adágio não consta da biologia deste corpo. 

E falo de lobos porque hoje, já que tenho saltado da cama com a aurora para cumprir os máximos olímpicos do dia, regressei aos clássicos gregos e, agora, em pausa (além de ser pouco bibliófila -porque adoro sublinhar - excepto estas edições que são um luxo- gosto de intercalar leituras) peguei no adiado Aquilino Ribeiro, "Quando os lobos uivam", numa edição de 1984 do Círculo de Leitores. 


Esbarrei com uma coça de vocabulário de Língua Portuguesa. Tropecei num território para nobres e eu ainda sou plebe. Entusiasmada, pus-me, como disciplinada pupila, a folhear virtualmente os dicionários online. 


Pois.... quase todas as palavras não constam, mas estão gravadas nos velhinhos dicionários cá de casa. E, sim, são palavras que merecem sentar-se na cadeira da actualidade. Não sei se pela frugal ruptura, quase litigiosa, que a maioria de nós tem hoje com a Língua, ou se por esquecimento, ou desuso, estas palavras não constam para consulta na internet. 


No entanto, qual pulga escondida atrás da dita, fui ao dicionário Houaiss procurar uma palavra cuja sonoridade me agradou, embora fosse facilmente inferível (outra palavra que a Porto Editora não reconhece online): "precaucioso". 

De imediato, pensei no "precaucious" do inglês, claro. E, como todos os escritores têm os seus vícios estilísticos, de linguagem, e de auto-expressão vocabular, no brasileiro Houaiss aparecia nada menos do que um exemplo a partir da prosa de Aquilino Ribeiro para designar a palavra. 

"Os rapazes, que compunham o elenco, procediam no estudo dos papéis e nos ensaios como os alquimistas em matéria de pesquisas quanto à pedra filosofal. Cercavam-se do mais precaucioso sigilo." ( Aq. Ribeiro , Luz ao Longe , c. 8, p. 165, ed. 1949.) 

Pode até ser uma tontice, mas ao discorrer horas a ler autores de exímio domínio da Língua Portuguesa como Aquilino, Eça, Garrett, Camilo Castelo Branco, Cardoso Pires, Torga, Miguéis, Namora, Pessoa, e apenas para enumerar alguns - e porque conheço muito mal a literatura portuguesa no feminino - há algo de alquímico: ganhamos tempo.

Do riso e das coincidências - ou isto é uma espiral ontológica

Em tempos de tragédia, resolvi voltar aos Gregos, porque, afinal, as soluções estão lá, nem que seja através da Comédia. Há Aristófanes em cima da mesa: "As nuvens". Aqui o dramaturgo grego compara um filósofo (Sócrates) aos sofistas, mestres da retórica, e condena a influência nefasta do só-sei-que-nada-sei na sociedade. Depois disto, se fôlego houver, meto-me com Pluto a.k.a "Um Deus chamado Dinheiro". E, sim, isto foi antes de Cristo, há muitos séculos, mas está visto que já perceberam a ideia....

Recapitalizar

...Aviso aos navegadores deste blogue, numa altura em que há uma premente palavra na nossa vida (e porque precisamos de carregar, debaixo do braço um pesado volume de economês-português - a retroversão é desnecessária), entrem nesta casa que é gratuita e recapitalizem-na de cultura, letras, música, sons, oxigénio e sensações, postais ilustrados, poemas soltas em sebentas, escritos a lápis, olhar céptico, mas livre, solto, sorriso como munição necessária, ou borboletas coloridas; folhas secas que o vento nos traz de árvores despidas..


quarta-feira, outubro 26, 2011

Esta coisa de escrever

Não sou eu quem escreve. Ou pelo menos não ouso dizer que sou. A grafia que preenche um certo vazio - acre e grosso tacter - porque escrever é sempre preencher um nada que ali está: o branco do papel, da tela, endógeno, que, às vezes, pode bem ser um negro profundo que a escrita arranca para a luz, a lucidez.  

Escrever é sair do delírio, ou entrar nele. Esventrar terra alheia, uma geografia virgem. É uma porta bem aberta que usamos para fechar-e-abrir-e-fechar.... 

É esta tempestade. Este vento. Esta água furiosa que ruge, ribomba. É o colosso que nos faz sentir o peso da pequenez. É toda uma montanha que não conseguimos abraçar. 

Um desterro, um exílio, uma solidão forçada que nos faz companhia. Um amante fiel que dialoga com o que vai dentro. 

Um desabafo silencioso, oxigénio, bátegas obesas, uma bolha inchada-inchada que nos arranca e explode, etérea. Escrever é voar: tornarmo-nos seres dissipados, borboletas que perdem cor, enganando a lagarta; um casulo apertado, uma garrafa de H20, um mergulho que nos esconde as lágrimas. 

É, assim, tanto mar. 

Suor que nos cura tudo, tenaz médica, divã, uma faca de gume afiado inaudito - nunca ninguém viu uma tão laminada, excessiva, pusilânime no corte; é o primeiro fôlego depois da mordaça, é traição. 

Escrever é a sincronia dos nossos órgãos depois do desalinhamento energético, é um desabafo, o equilíbrio para uma certa sanidade, é loucura controlada, é resposta para o cepticismo, é todo um ansiolítico, controlo, o embalo de rede num fim de tarde...

perdão depois do limbo de uma auto-punição, é um agradecimento que damos a nós, quando os outros - sempre os outros - nos esfaqueiam com vorazes bocas, cortantes dentes ensanguentados, sinónimo de uma justiça contagiosa, ah, se escrever é libertar angústias estaremos sempre um pouco limitados, quedos, mudos, ensurdecidos (e aquele eco que ainda reverbera) num cárcere tamanho que é a língua. Essa sombra muda a esgueirar-se da cabeça...

Agora, sim, é oficial: Politikós - Acordo semântico para menos entendermos e o contra-ataque com sinal vital

1. Fogueira de Vaidades, a lenha com que nos queimamos


Vejo o Primeiro a sair penteado da reunião de seis horas do Conselho de Estado (esperemos que a austeridade não tenha chegado aos cortes no café, porque o excitante sempre ajuda à escassa lucidez, embora eu até acredite que o tempo destes pensadores passa, concentrado em argumentos para mais um filmes desta nossa pornografia diária), seguido de um grupo de meninos igualmente bem vestidos, uma espécie de Conselho Directivo escolar a preparar-se para comunicar aos alunos mau-comportados (nós, claro) que temos de ser meninos bonitos, a balir, porque não há outra solução para o encerramento da escola por falta de verbas que a anterior gestão desviou para a famosa e já turística ilha do buraco negro. Tanta física quântica para as nossas cabeças, ou a Madeira é a sede da multinacional.

Vejo, ainda, o Primeiro a chegar sorridente à Cimeira Europeia, a espartana Merkel com cara de Viking a sentar-se apressada (deve ser crise de intestinos que é o que dá ingerir tanta salsicha enlatada, por estes dias); Berlusconi, esse Narciso a querer ser Apolo, e a precisar de mais silicone pois a testa anda enrugada; Sarkozy, igualmente bem-vestido com a máscara do Kouros, enquanto por dentro vai despido e hirto de preocupação... E se a Grécia berço da nação está em crise , hão-de os filhos adoptivos resvalar em massa (italiana) numa cinza vesusiviana.

Vejo, pois, a oposição socialista a apelidar de Quelone (tradução minha), deusa da preguiça, o executivo português e outros políticos vociferantes: este orçamento, estas medidas e esta gestão é toda uma chantagem psicológica: "ou isto ou a hecatombe". Catrapum! Ainda aqui estamos. Mas precisamos de fôlego!

2. O museu da Palavra, tradução em várias línguas, inclusive Esperanto


Não reivindicamos o Paraíso, embora devêssemos, mas esta legião de portugueses, ao que me diz respeito, devia ganhar um prémio de consolação ao menos de masoquismo, por já saber lidar com o enxofre. Como somos espartanos, isso sim, neste sofrer engasgado e crentes devotos (porque temos de ouvir para saber as regras de jogo, que todos os dias mudam) sempre que essa espécie abre a boca para nos corromper, ainda mais um pedaço. Que by the way vem do latim, dando uso ao meu velho e corrompido dicionário: "futuere", sim foder. É escavar, é entrar bem fundo, é toda um esventrar violento. E a retórica é violência simbólica suficiente para nos profanar.

E, agora, senhoras e senhores: 

a elasticidade da semântica dos nossos dias e a arte do logro como pão nosso...: a palavra de um homem é um fosso. E as palavras jogos ilusórios... e isto nada tem que ver com o acordo ortográfico. 

a) Direitos adquiridos? Ah, isso! O que é? Foi a primeira coisa que me ocorreu, em voz alta, quando mais cortes e mais cortes vieram: não haverá nenhuma lei que impeça o retrocesso de direitos adquiridos, assim, vários de uma vez? E a porra da democracia, dos direitos fundamentais, isso... E deveria haver outra lei que punisse os mentirosos. Que lhes cortasse a língua. Olho por olho, dente por dente. Ao menos isso seria um serviço público e ao público. 

E já que falamos em corrupção semântica: em que a palavra evolui acompanhando a imoralidade do que significa, degenerando num abismo o sentido original, ocorre-me - mas já alguém se há-de ter lembrado disto - amassar toda uma classe de moral enlameada:

b) Politikós - substantivo andrógino, permeável e sem quaisquer resquícios de neutralidade. O termo evoluiu de adjectivo, distanciando da significação de raiz - "relativo aos cidadãos", para passar a designar uma ocupação "tachista", claramente seguidor da técnica abstracta surgida em 1950, em que a cor aplicada forma manchas. Eu diria nódoas, qual teste de Rorschach, de auto-expressão e sempre com hipóteses projectistas, dúbidas, nubladas, com uivos que nos criam imagens turvas, ora fazendo dos cidadãos burros involuntários, ratos amestrados, felinos amansados, ora roubando o mais elementar: a dignidade. Que solução temos? A Ágora? Controlada pelo sistema de uma polícia que bate?

3. Juízo final, mas até lá, com sorte, estaremos todos enterrados


Por muito mau que seja o cenário, tem de haver um carpinteiro que veja como melhorar as estruturas cénicas para perceber e projectar por que razão temos de fazer dieta anoréctica, auto-inflingindo alguma bulimia. Pedem-nos sacrifício, sacrifício, sacrifício. A União Europeia, o primeiro, o PR, o Conselho de Estado. Pedem e nada nos dão. Comem tudo, não deixam nada e, pior, não nos orientam, já que têm a batuta na mão, para onde podemos caminhar um pouco, para arar o campo do nosso sustento. E isto enquanto, esta manhã, um senhor presidente de uma confederação de indústrias defendia que a solução para a crise laboral é despedir mais gente e extinguir postos de trabalho. Está tudo egoisticamente cego: no lodaçal já nós nadamos a tentar sobreviver, precisamos é de gente que pense connosco a encontrar as margens limpas. Senhores com este discurso também deviam ser punidos, melhor gente que tece mais argumentos para apocalipse sem soluções para as evitar, gente com responsabilidade social, de direito, devia isso sim, ser punida. Para que servem esses MBA's da vida, essa sabedoria, essa massa crítica, esses think tanks, esses Conselhos de Estado se para esmiuçar problemas e não escalar caminhos. Nós perguntamos e ninguém sabe responder. E esta é maior das tiranias, é a maior das cegueiras. Ao menos esta Fundação de Serviço Nacional de Saúde pode ser um sinal que há esperança no azimute?  

segunda-feira, outubro 24, 2011

Criada a tabelinha: a Grécia tem o salário mínimo superior a Portugal e a Espanha... Não vá o queijo feta ser mais caro que o da serra!

Sã e Salva, e isto é um atestado do destino

A minha avó sempre me ensinou que com a saúde não se brinca, e cheguei mesmo a acreditar que as aftas que ela me talhou invocando, à noite pela janela, a “estrelinha da banda de além”, numa lengalenga de outrora, fez mais milagres do que o pincel anti-séptico.
Depois, como as recomendações são sempre geracionais, graças às da minha mãe, há sempre um kit na carteira para males menores, como dores de barriga inesperadas e um paracetamol para dar um “xô” naquela moinha da cuca. Sou quase uma farmácia ambulante.
A minha tia, que foi bioquímica, também tem uma dica útil para viajantes: a caixa vazia de um rolo fotográfico, com algodão embebido em álcool, é uma maneira económica de ter sempre um desinfectante à mão. Tudo controlado, portanto.
Mas o filme é outro quando viajo. Um trailer de acção. Não tenho seguro de saúde e lembro-me sempre do assunto em vésperas de viajar. Esse aparente desleixo deve-se à minha infalível sorte (qual MacGyver), quando a saúde se lembra de brincar comigo. Provas: há uns anos, na República Checa, tive uma aguda e preocupante dor de cabeça. Estava em Brno, região da Morávia do Sul, em casa da minha amiga Adriana. Ginasta e compositora de música clássica. Nessa altura, não houve melodia que acalmasse a impertinente maleita, nem analgésico que a aniquilasse. Só me apetecia fechar os olhos: que me deixasse sossegada, a desfrutar a minha insustentável leveza do ser. Até que, sabemos: o namorado da Adriana é neurologista. Uma consulta (gratuita). Alguns exames (gratuitos).
E um diagnóstico caricato:
  • Experimente tomar café. Vocês não tomam muito lá em Portugal? É falta de cafeína. Não tens nada!”
E ribomba uma gargalhada.
Tomo café, um milagre: a dor foi pregar para outra freguesia, a norte, a sul, quem sabe; e ainda hoje deve andar pelo mundo.
Outro norte: Amazónia brasileira. Um calor húmido de empapar a pele. Redescobrimos poros por onde suar. A água do corpo vai-se rapidamente. Desidratamos fácil, se não nos cuidarmos. É, por isso, que os 70% de água em nós se vão pelo suor e não pela fisiologia.
Não me cuidei e, sem me aperceber, estava já com a língua embranquecida e com uma infecção no corpo. Dores terríveis, ardentes, agudas, naquele calor-inferno. E isto é muita sorte: estou no médio Amazonas, há um rio imenso, comunidades isoladas; médicos são bicho extinto por aqui e o hospital mais próximo fica a dois dias de viagem. Para acalmar tamanha dor: haja mezinhas amazónicas; ou chamemos pelo rádio um helicóptero para evacuação. Não é caso para tanto.
A sorte, agora, sim, livre de ironia: estou a bordo de um navio-hospital. Em menos de meia hora, no meio do rio Tapajós - e rodeada de secas margens, que na noite seguinte iriam atrair uma praga de gafanhotos carnudos ao barco-, fui consultada, fiz exames, recebi o resultado, fui medicada, e ultimada a beber um litro de água, de imediato. Tudo pro bono. O resto seria repouso embalado pelo rio. E água, muita água porque eu estava como as margens.
Ao contrário das de Manaus, daqui subindo Rio Amazonas. Cheias. Um mês depois e a saúde preguiçosa: que dores de dentes são estas que não me deixam comer? Um dia, dois dias e não há analgésico milagroso. Ocorre-me que o meu amigo Godinho já me falara de uma amiga em Manaus que é dentista. Tem consultório: top. Leidiana atende. Leidiana recebe a Vanessa. Leidiana faz limpeza de dentes e um laser milagroso para atenuar a dor e tratar do esmalte desgastado, que pelos visto causa tanta sensibilidade. E caso resolvido, dor exterminada com Leidiana.
Tiramos agora o “Leidi” ao nome e vamos à Ana, outra amiga. Rio de Janeiro. Estamos em pleno Carnaval, bloco de rua, serpentinas e um sol tropical. “Lalaiálaía!” E Carnaval é Brasil em suspenso. E Brasil em suspenso é Samba. E assim temos de pular, dançar, andar de bairro em bairro, samba em samba, marchinhas, uma semana inteirinha.
Isto é para duros, pós-doutorados em boémia carnavalesca. Eu sou caloira, ando de sabrina no pé a pular carnaval e descubro que tenho lordose. Ai! Estas dores que me matam na lombar, ao fim do terceiro dia! Fraquinha! Faltam dois e Carnaval que é Carnaval não admite interrupções. Uma baixa assim na minha primeira vez?
Na manhã seguinte, sem me aguentar, a Ana propõe irmos ao hospital, a 500 metros de casa dela. Ventura!!! Levo analgésico na veia, um “flirt” do enfermeiro que acho um máximo que eu esteja mascarada de boneca de trapos, e uma recomendação da médica: com umas horas de descanso e medicação, você está pronta para mais uns pés de samba. Queria ela dizer que, afinal, eu podia ir brincar com a saúde. Começo a desconfiar que o corpo sabe quando deve ficar doente. Se fizesse um seguro de saúde, calhando não teria tanta sorte, ou, quem sabe nada me aconteceria. Assim de repente, já que saúde não é problema, acho melhor é dar ouvidos a outro conselho sábio da minha avó: ter juízo!

(Crónica publicada na Fugas, Público, 13 Agosto 2011)

domingo, outubro 23, 2011

derrame de letras

As palavras caem do livro,
as letras desnudam folhas,
o branco-leitoso surge ao derrame de tinta que transborda caracteres.
O livro está nu.


[cronicalunasamba]

O Perfume

Uma de nós pode estar equivocada: a que reflecte e a que escreve -  com mais impulso que a primeira - mas, agora, não há como parar os grãos da ampulheta, para fazer o teste dos sentidos, pois este é o aforismo: leva-te o nariz ao tempo; dá-te o odor o relógio dos dias que aí vêm. 


Passo a explicar: é pelo odor, primeiro, que sei que uma estação chegou; outrossim, que se foi. 

E, mesmo que o sol enganador se exiba lá em cima, pelo processo cerebral do olfacto não há como enganar. 


Com a Primavera , depois desse nu de Inverno (apesar de nossas fartas lãs e grossura de tecidos no corpo) começa a clorofila floral a entrar-nos nas narinas; aquele friozinho da manhã a dissipar-se com o ar termal que inicia a vestir, ao redor, a natureza renovada - enquanto nos começa a pedir menos roupa, levezinha. É aí que nos sentimos abraçados, podemos sorrir que nem tolinhos, porque a Primavera está aí, como um lança-perfume.

O Verão: quando os fins de tarde se tornam mais parcimoniosos e o odor ardente de maresia, areia molhada e bronzeador de pele no ar, ainda que não o usemos. Cadência de estio é um perfume de pele quente. Sobretudo a pele quente, transpirada, como cheiro identificador de hormonas estivais.

E o Outono é uma espécie de verão de Inverno. Sim, é apenas Outono, dirão, com ADN específico, sem comparações (embora cada estação difira, conforme geografia calcada), mas tem aquele sol exibido - esmaecido; nesse desmaio que nos deixa mais sensíveis à luz e intolerantes a um calor que sabemos poder nos fazer mal à mona. 


E o cheiro? Ah, pois: as folhas secas, frescas, aquelas acabadas de cair, embora já envelhecidas nos galhos; e as folhas calcadas, velhas, na terra, com um acre olor, de clorofila passada. E se chover, claro está, tudo muda na percepção, pois uma fragrância musguenta, quase liquefeita, na diáfana forma de chegar aos poros, como se fosse agente secreto a infiltrar-se, entra-nos narinas dentro, quase melada, nas suas variações líricas, em cada um dos actos desta Ópera de 4 estações.

E este Inverno que esta manhã entrou de rajada pela alma, cheira a cabelos brancos e a ar dissipado: é que o ar que o vento corta tem esse cheiro etéreo de nada. Há aquela humidade intensa que nos trespassa a derme até aos ossos, misturando cheiros neo e antigos num perfume matizado com toques amadeirados. Cedro, carvalho, sândalo. É a madeira aromática, envelhecida, como em estágio continuado, que se impõe. Que arromba a porta, embora ainda haja, neste início, a secura da clorofila morta, e o amargo da terra revolvida pela fúria invernil. 


Logo, não admira, cheira a hibernação, de certa forma para unir o que as outras estações separam: nestes tempos sou mais comedida nos impulsos, logo, há-de fundir-se a que pensa com a que escreve, aceitando o facto irrevogável: lá fora, desde hoje, cheira a lareira, embora ela ainda aguarde o nu dos troncos e o seco das folhas que restam. O perfume de Inverno está na rua, entrou casa adentro, há-de por cá ficar por uns meses. De resto, nunca estou preparada para o cheiro definitivo de Inverno, apesar de ser filha dele. É que, em três meses, o tempo ficará com 31.

sexta-feira, outubro 14, 2011

Não há vagas

O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

- porque o poema, senhores,
   está fechado:
   "não há vagas"

Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

            O poema, senhores,
            não fede
            nem cheira

Ferreira Gullar - poeta brasileiro, 
Prémio Camões, 2009

quinta-feira, outubro 13, 2011

narcolepsia

...ora aí está uma palavra que me apraz, e melhor se exercitada numa rede de embalo, com cheiro a clorofila e pela fresca de árvores altaneiras, que o calor não é de veraneio e, por isso, um pouco inconstante. E sol outonal, desconfiamos, é sol de pouca confiança porque traz uma cálida e morna lembrança, pelos cheiros de folhas secas ao redor, de que o Inverno está já no avião que o trará. E, desconfio, ainda não aterrou, porque agora com as low costs e conexões mirabolantes, há-de ter perdido as malas, onde carrega frio glaciar, vento dos mares para despir árvores e chuva torrencial. Por isso, sem ser agoirenta, não tarda nada e estaremos a exercitar a narcolepsia ouvindo o gotejar na persiana.

quarta-feira, outubro 12, 2011

# [6] America Snapshot: A ilha ferry da Senhora de Verde


Eu já estava atrasada, embora ainda tivesse tempo. Linha vermelha, linha amarela e tudo seria mais fácil para chegar à Senhora de Verde. Embora para ser verde tenha de misturar amarelo e ciano e não amarelo e vermelho. Por isso, olhei para o céu, à procura de um ciano technicolor: estava cobalto, nublado, a ameaçar uma carga de água. Nada de azul fotográfico.

Estava atrasada e, assim, apressei-me no Battery Park, em Nova-Iorque.

Não era este o plano para um pedaço das 24 horas, mas, sabia, que se não o fizesse naquele dia, alguma preguiça poderia depois tomar conta deste corpo para outras moradas mundanas e nunca mais olharia para o céu para ver aquele espectro esverdeado que aparece nos filmes, nos guias, num imaginário colectivo de um imperativo “must see”.

Parecia tudo muito fácil, mas o périplo ainda era empreitada digna de um Indiana Jones amador. A porta estava ali, o barco-ferry ainda ia partir – e tudo estava a ser demasiadamente fácil, até que sem bilhete na mão nada feito.
Era a primeira advertência, esta, a da impaciência de um guarda bonacheirão a julgar que me fazia de tonta a entrar à socapa. O julgamento implacável estava errado: era uma “tontaria” minha, essa, a da ignorância da bilheteira.



Passos atrás e voltei para o edifício que parecia uma mini-fortaleza Walt Disney e eis que a fila veio com a segunda advertência: não haveria, para aquele dia, visitas à coroa da senhora. Como apenas queria a viagem para chegar à ilha e encontrar os rapazes dispensei os headphones com a tradução e toda um bê-a-bá mimetizado sobre aquela que é a Liberdade a iluminar o Mundo. E o mundo bem precisa de uns quantos watts para sair da cegueira. Embora a cegueira branca possa ser mais do que iluminada e o problema não seja, pois, de luz, mas antes de lucidez do cérebro. E essa meus caros, sabemos, não há watts nem lume – nem fogo, nem filamento lúcido - que a salvem da escuridão da caverna. E naquele dia, já o disse, estava nublado, a ameaçar nuvens à carga. E quando as nuvens entram na palete de cores do dia, temos de apelar ao mais ínfimo instinto primitivo para ler os sentidos. E o sentido era para norte, mas antes de lá chegar haveria raio-x, uma fila e um polícia a segurar-me o isqueiro (nas trevas não ficaria), para mo devolver depois de o meu corpo transitar entre electróns e átomos, em emissões electromagnéticas de natureza semelhante à luz visível. O xis do raio é qualquer coisa assim: é energia dos fótons. À carga, portanto, antes que as nuvens venham.

Havia calor, abafado. E muito humano, porque o último ferry já partira e o próximo ainda demoraria. Em pé, para garantir fila. E gente, como em todo o lado, a tentar furá-la, quando as cancelas se abrem e o gado (perdão, os humanos) se apressam para arranjar lugar para chegar à Green Lady.

Escada acima e um lugar onde ninguém queria é onde a minha bunda repousaria. Mas, pelos meus cálculos, mal o ferry zarpasse seria coisa cobiçada. Não a bunda, o lugar. O lado direito, já que quando o barco guinar, essa imóvel senhora ficaria a estibordo. Não era esta profecia difícil de se fazer: era coisa de se prever. Hordas de gente faminta por fotografias, afinal, o must see estava muito mais perto do que alguma vez estivera.

Ei-la: verde, oxidada e imponente a olhar um nada, porque ser inanimado nada olha, e é como se prescindisse da lucidez para existir. Mas, se visse, haveria de ver mais longe do que qualquer um de nós.
Em menos de meia hora aportavamos.

Quando saires, vai em direcção à bandeira. Estamos por aí”, escreveu o Marco.
E eu fui e esse por aí era um pouco, um pouco com sanduiche manhosa e meio litro de Coca-Cola. Juntei-me à tribo, que ainda não comera.

E a ilha da senhora de verde é um fantasma. Um fantasma porque à noite, esse vulto colossal deve fazer sombra às centenas de gaivotas que ali devem ir sossegar para reproduzir, comer, amar. As gaivotas amam? Pelo menos aquelas que estavam no corrimão do porto, entretidas a bicar-se uma à outra deveria querer, de alguma forma, provar que os beijos podem ser bicadas violentas com amor. Mas o amor também pode ser isto: à distância. 

E amar Nova-Iorque à distância é vê-la da ilha da Green lady. Um recortado no horizonte, alto e baixo, bicudo e quadrado, a arranhar o céu, e a amar as margens. E amar pode ser cinzento: porque é essa a cor que tenho para Nova-Iorque, o cinzento. O cinzento-mistério; o cinzento-triste; o cinzento- atarefado, sem tempo, mas pujante, o cinzento-poluição que a alma humana, as gentes, tratam de colorir com vida, vivências e tanto pulsar. A pulsação é tão acelerada, que não chegamos a perceber o que é o cinzento, mesmo que a chuvas nos venha turvar os sentidos e o olhar. Foi o que aconteceu. Gotejavam lágrimas do céu, no instante em que amavamos à distância. 

No instante em que nos enamorávamos das ondas rasgadas pelos vento, do recorte de uma cidade que realmente está à janela, quando a olhamos da ilha da Senhora de Verde. Há aqui uma espécie de amor sol-e-lua. Um amor impossível. Não bastava ele ser à distância para se tornar impossível, porque Manhattan não seria tão bela, como vista daqui, despida. E a Estátua da Liberdade só ganha realmente fôlego, quando olhada da cidade que a ama e pela qual ela empenha a chama. 

Desejei, por isso, subir à coroa impossível, sem ninguém, quando a ilha se transforma em espectro silencioso: e o silêncio pode ser apenas dentro de nós, com o bater das águas, o bicar das gaivotas. E foi quando apanhei o ferry de regresso a Manhattan que vi como tudo isto era belo. Às vezes, precisamos da distância para anos apaixonarmos, para acharmos beleza na inaudita improbabilidade, à medida que o ferry se afasta, mesmo com frio, chuva e um pouco de cinzento nas nuvens. 

terça-feira, outubro 11, 2011

Uma pessoa percebe que o infinitivo de vida, na primeira pessoa do singular, até tem voz activa e digna de adjectivos-sinónimos de afortunada, quando a dúvida existencial é: ler Philip Roth ou Gabriel Garcia Marquez? Uma conspiração contra a América ou Cem anos de Solidão? Shame on me.

É tudo o que tenho para vos dizer...

... que, depois de andar a pensar muito no número 7 (talvez devesse jogar em alguma coisa, embora não seja muito dada a essas coisas) se há imagem que melhor se aplica a um bicho social como eu, por mais paradoxal que isso possa parecer, é o eremita. 

A clausura como espaço de liberdade para ser um pouco melhor; e saio dela um pouco mais iluminada, porque a leitura e o jogging mental (rói-te de inveja oh Descartes) hão-de ser watts de energia renovável que podem tornar, pelo menos ao meu redor, a lucidez inquilina mais óbvia no trilho dos dias. 

Eis que me recolho, então, porque eremita sou e, amanhã, como hoje, é dia de acordar com a cidade, com ela, quando ainda a luz não se espreguiçou na janela, para vê-la sem máscaras e a bocejar, para simplesmente escrever... Ou talvez tudo isto seja efeito de um entusiasmo passageiro, de uma conjugação qualquer intergaláctica, planetária ou astral e, quem sabe, o eremita não chegue a lado nenhum. Até aqui, as páginas continuam a ser folheadas e, pelo menos, há menos branco nos espaços entre as linhas. 


segunda-feira, outubro 10, 2011

A mentira metaliterária, a literatura portátil

O Jorge Marmelo é uma ave rara. Daquelas que não precisa realmente ter asas para fazer voos rasantes à realidade, aos felizes acasos da vida, que, às vezes, a literatura trata de materializar - embora nem sempre para eles olhe com encanto e credulidade - e tem uma certa observação não participante na vida dos outros, para se inspirar nas mais pequenas coisas e fazer, com mestria e domínio da arte da prosa, magia com as palavras. 


Ele não me desmente: "observar a vida dos outros pode transformar-se num vício", lê-se na página 119 do seu mais recente livro "Uma Mentira Mil Vezes Repetida" (Quetzal). O jornalismo para ele é apenas um pretexto, um kit de ferramentas, para ele ser o que realmente é, fora do horário do expediente: um ficcionista - que precisa do oxigénio da realidade, para a reinventar. 

O Jorge desvela-nos a vida dos outros, que pode bem ser a nossa: ora enternecendo com a candura das palavras que parece que nos tocam; ora de bisturi afiado para expelir uma espécie de ironia ainda mais afiada que a arte de dissecar a espécie humana numa autópsia. 

É analítico, cerebral, de uma escrita inteligente e sagaz. É a escrita de um homem céptico, questionador, numa solidão, às vezes auto-inflingida, porque precisa dela para criar. É nela que encontra o seu melhor. O silêncio dele é o crivo criativo. E a sua mestria é proporcionalmente inversa à sua timidez.  É um estratega  intuivo quando se trata de amar o que ele tanto ama: escrever. 

Ele é uma ave rara porque na cadeira rangente de casa, quedo e mergulhado no branco do ecrã do computador e no tactear do teclado, viaja mais do que qualquer um de nós. Viaja compulsivamente nos livros e na imaginação das histórias que cruza, para fazer delas amantes fiéis ao que quer traduzir.
E, na "Mentira", vai da Hungria aos Estados Unidos com uma única bagagem: o volume pesado de uma sábia memória, o amor pela História, e a atenção exímia no aprender diário das coisas mundanas do quotidiano para o desconstruir (vejam, como tudo isto é um ardil- mas nós gostamos de ser iludidos), e folheando o lugar onde menos memória há: os jornais. 

Dessa forma, num pausa lenta e contemplativa, mistura, como passageiro clandestino das nossas vidas uma espécie de filosofia que só se encontra na física quântica: consegue provar-nos que tudo está interligado; que nada se dissocia: que um livro que não existe e a quem contamos aos outros como se verdade fosse pode ser mais verdadeiro, real e verosimilhante do que aquilo que sistematizamos como a prova cabal do axioma dos dias: é, logo existe. 

Nesta obra há um livro-dentro-de-um-livro-dentro-de-um-livro. Oscar Schidinski, o passageiro do autocarro (502), carrega um volume grosso (que não sabemos, se olharmos desavisados, ter páginas em branco, onde cabe cada uma das nossas histórias, por ora, quem sabe, escritas a tinta invisível) "Cidade Conquistada" - aliás primeira escolha do autor para título do "coiso", depois alterado para o nome actual, baseado na frase mítica do ministro da propaganda de Adolf Hitler, Joseph Goebbels, (que chegou mesmo a produzir falsos manuscritos de Nostradamus): "Uma mentira mil vezes repetida torna-se verdade." 

Esse famoso soundbyte engrossa a análise das Teorias da Comunicação sobre a arte do logro para manipular a verdade ("Toda a Arte do Político é fazer crer", Maquiavel ou como Lenine: "digam-lhes o que eles querem ouvir") e, numa lógica de espiral de verdades literárias, o Jorge baralha-nos numa aventura metaliterária, reflexiva, sobre os outros, nós, a verdade e a própria literatura, pela qual é apaixonado. 


E tudo isto itinerante, enquanto viaja de autocarro, como comum transeunte. Ora o Jorge-autor começou a fazê-lo, antes do Jorge-jornalista realmente o começar também a fazer para ir trabalhar, numa imitação visionária do anterior. Experimentei andar algumas vezes com ele, logo pela fresca da manhã, atenta, a olhar o que ele olhava: mas nunca via o que ele via, embora suspeitasse sempre que daquelas nossas viagens haveria tinta derramada.

Pelos menos três vezes li esta mentira. Duas vezes no ecrã do computador dele. Terminei-a hoje pela terceira vez, agora com o calor do papel e o cheiro químico da literatura.

Não só pelo que tem sido escrito na imprensa, mas sobretudo pela minha amadora intuição: esta é uma nova fase literária do Jorge, no conteúdo e na consolidação do estilo de escrita ( o bisturi da crónica semanal no P2 do jornal Público e a sua disciplina com a escrita também ajudam a afinar a tinta da pena), inovador, como se tivesse encontrado o seu melhor como escritor nesta mentira: podendo ser ele próprio como nunca, mais maduro, denso, sem ser hermético, cerebral e único, mas também, num evidente traço influente da literatura latino-americana, que ele tanto gosta, com uma textura borgiana para ser profundamente ele. É um grande livro e ele, sem dúvida, está de Parabéns.  Adoro a Mentira. 

quarta-feira, outubro 05, 2011

Curar doença com vícios, terra em transe



Isto pode ser auto-análise, mas assim alivio o bolso e a cadeira do divã do psicanalista de ser gasta, por corpo deitado em associação livre. O regresso de uma viagem é sempre uma espécie de depressão pós-parto. Talvez pela dessincronia: viver a mil para passar a viver a cem há-de fazer alguns estragos endógenos embora não os vejamos. E regressar é como ouvir o silêncio do convento, por isso atiramos o corpo para a clausura, para o silêncio, auto-meditativo, ainda que isso seja uma coisa subliminar, do inconsciente. 


É, talvez, por isso, que o corpo se queixe. É ele quem mais ordena: agora vou-te dar uma gripe, com febre, tosse, dores no corpo, nos olhos, na alma, para que de castigo saibas que não podes viver a mil e que deves, por ora, viver a dez, para que, mais tarde, voltes ao cem, ainda que a alma anseie sempre o mil. E viver a mil é aquela coisa, sabemos: viver várias vidas num só dia. 


E a clausura é isto: uma hibernação forçada; uma espécie de convidado indesejado que o corpo, nosso marido machista, convida sem nos avisar. Quando nos apercebemos já está em casa, na sala, a fumar charuto (e nós a tossir), a beber whisky on the rocks, goela abaixo, (por isso a garganta dói); a dançar o funk com o volume nas alturas, às duas da manhã, (e o corpo flagela); e em devaneios delirantes com histórias de outros corpos para onde se muda como inquilino nómada, de vez em quando (logo a febre alheia que sentimos: sai desse corpo que não te pertence).

Acontece que, apesar de estar em delírio por sair de casa (e este calor não sei se é do corpo, se da rua), o que é certo é que, por ora, acho, o convidado, ainda que não tenha totalmente abandonado a casa – ainda sinto o cheiro de charuto lá em baixo – dei-lhe um antídoto muito mais potente que a doença que me quis trazer: com vícios (e essa coisa de o dicionário falar que se trata de hábitos moralmente censuráveis é semântica a reavaliar, porque há vícios que são pura fundamentação da metafísica dos costumes do Bem e do Belo). 


E os vícios, senhoras e senhoras, fazem de mim uma convalescente mais cheia. Estou por isso, mea culpa, mais viciada em cinema, música (pela agulha do vinyl), literatura e chá. Ou talvez o tempo lento seja propulsor de tamanhas dependências. Não, necessariamente, por esta ordem, mas em simbiose horizontal, complementar: talvez em posição de missionário, a quatro. A orgia artística é sempre na horizontal, para que não haja traição. 


Numa semana 12 filmes há-de ser doença; e 3 livros um problema de fome de palavras. Quantos litros de água com ervas, ignóbil me confesso neste tema; e a música anda de notas soltas, aos milhares, com um crepitar sonante de vez em quando. A contabilidade é por isso uma ciência inexacta e pouco importante quando a paixão anda solta assim. 


É melhor, portanto, voltar à cura, com o equilíbrio de evitar infidelidades artísticas, com a sétima arte, que o Terra em Transe (1967), do Glauber Rocha me aguarda. Que bela metáfora para falar do território pessoal. Play!  

segunda-feira, outubro 03, 2011

# [5] America Snapshot: Pouco pós moderna, mas iluminada

vanessa rodrigues

1. Líquido amniótico, saber nadar, antes do parto
Não sei por que razão assim é, mas quando a palavra pop me vem à memória lembro-me de imediato daquela imagem-poster estilizada do filme de Stanley Kubrick: Laranja Mecânica. Talvez porque certa vez tive uma t-shirt com esse desenho: os dentes do que será o mecanismo interno de um relógio muito recortado, que serve de imagem alusiva para pestanas ao redor de um olho, insinuando-se como uma espiral hipnotizante; o perfil de um chapéu de coco, a suíça prolongada, aquele laranja-inflamado-a-querer-ser-fucsia. E o rosa-eléctrico é toda uma palete de cores no meu mundo. E na minha prosa. E há demasiado pop na minha vida. Pelo menos no vagar de alguns dias.
Era povo com fartura para mim naquele museu. Um objector de consciência haveria de ter um qualquer efeito magnético em mim, quais pinças abrindo as persianas do olho, como numa lavagem cerebral de Kubrick, e com risco de ficar com o olhar rasgado como ela, a mulher aflita, no “Cão Andaluz” de Luís Buñuel.
Entramos no MomA para logo percebermos ser o museu mais popular de Nova-Iorque porque, com certeza, um terço da cidade mergulhou ali e prometia nadar por bastante tempo na piscina artística. Era toda uma área olímpica. E haveria de nadar muitos metros para cima e para baixo. E comecei com aquele formigueiro; como cãibra para os desavisados, a quem carece magnésio. 
Uma espécie de agorafobia a multidões. Para o bem e para o mal, ou para além do bem e do mal, eu niilista, ali, me confessei baixinho, embora dominada por um sentimento de economia de direcção central: a cultura é para o povo, somos povo, popular, e sexta-feira é free-day no MomA. O Vaza não hesitou. O Victor já ia acelerado para o jardim. E a Vanessa estava no efeito osmose. Um quarto vê: Vamos!

2. Útero
Separados para o parto: ver a arte acontecer, ou ser uma espécie de acontecimento artístico, em dose individual e intransmissível. Aquilo do pop levado a sério – povo às dezenas em unidades estridentes - era tudo uma instalação humana, em efeito multiplicador: a arte da reprodutibilidade técnica somos nós (salvé oh Benjamim!), desordeiros em museus para comer o que se legitima como Arte. Comer com os olhos, com as mãos, com a inveja, o egoísmo e fome de registo. Porque o que realmente vemos é a fome dos outros em serem arte: uma foto com um Pablo Picasso, uma foto com Dali, uma foto com Eliot Erwitt, com Man Ray, uma foto com...
Nem melhor, nem pior com os outros, mas o meu formigueiro continuava e eu tinha começado com o silêncio de Kathryn Bigelow, como espécie de placebo, longe de saber a retumbante coça que eu levaria dos pisos de cima. Seria como ter subido as escadas para a prancha e, uma vez lá em cima, não saber que salto fazer, muito embora a espera fosse longa para ver o fundo da piscina. E logo eu que tenho vertigens.

3. Contracções
Na sala da cave não estava ninguém e era avisado: no photographs, ao mesmo tempo que este néon nos agarra: Godspeed. À entrada da sala da senhora-toda-provocação que é a Bigelow (top 100 da Time o ano passado). Foi então que percebi que deus é lento, se existir. E também ela, a artista-realizadora, teve fome de arte para se inspirar para os filmes. Até que vem isto a legitimar deus: “touched by the hand of god” (1987) – o videoclip que ela realizou para os New Order, a banda inglesa que formou nova ordem depois dos Joy Division.
Pronta para me separar de Bigelow, fui escada acima, rolante, ver a galeria de fotografias e foi aí que começaram as picadas crónicas e a certeza de que se prolongasse a dor teria uma contracção espontânea: que a avaliar pelo público ao redor, seria tomada como uma performance neurótico-experimental- com influência do teatro de Sara Kane, agarrando o inusitado, com lascivos traços de Teatro do Oprimido. Achei melhor conter-me e sosseguei.

4. Dar à luz
Como o formigueiro não parasse, parei eu. Uma hora ainda para o encontro a três-missão-cumprida e eu meio-contrariada. Livraria; uma ciranda a solo; e um café que desisti quando olhei para a tabela de preços, como se um expresso, o próprio, fosse obra artística pelo qual teria de pagar o quádruplo do preço comum e foi tudo escada abaixo até aos sofás da entrada. Com sorte, ainda fui capaz de ouvir pérolas intelectuais, para as quais eu não tenho a mínima formação académica para entender, e nem com manual de instruções lá iria. Mas deve ser gente peixe-grande. Intelectuais de primeira, dignos de uma TED-Conference.
- What do you think about this picture?
- Oh quite good, don't you think, one of my favourites, despite the fact he was better with nudes of thin girls.
- Yes this one is quite fat, indeed. But I believe the light...
- Yes the light. Oh! the light.
- And this one?
- Oh quite good. This is very good.
- Oh yeah. You like it?
- Yes this light.
- Oh, yes the light. Exquisite! And the shadows.
- Oh no, I'm talking about the picture I took of the picture.
- Oh yes, the light. Good.
Já de tal forma iluminada, achei que era o suficiente para que o meu formigueiro chegasse ao fundo do tunel. E lá fui, escada abaixo, enlightened.

Encontro marcado com a Mentira do Jorge Marmelo, quinta-feira, na Biblioteca Florbela Espanca, em Matosinhos

Espalhem, por aí, na esquina, no autocarro, no metro, no táxi, na paragem. Falem alto para que se saiba que a verdade é a mentira...

domingo, outubro 02, 2011

#[4] America Snapshot: 09/11 Memorial, video (by cronicalunasamba)


Untitled from cronicalunasamba on Vimeo.

Este vídeo foi realizado, editado e sonorizado por vanessa rodrigues em setembro de 2011. Para captação de imagem foi usado o telemóvel da moda.