segunda-feira, maio 31, 2010

Homem UltrA Mud.Erno [10]

Nunca ligam quando precisamos. Nunca ligam. Nunca têm tempo. E estão ligados a tudo que é rede social...

Cuidados Paliativos IV

Regresso aos sonhos, ou como desvendar o segredo de morfeu, sem ser convidado

foto vanessa rodrigues, osgemeos, 2006

Tive uma série de ideias para os próximos tempos. Títulos de livros, exposições, fotografias, documentários, filmes, instalações artísticas, lugares, histórias de gente, ideias de posts, crónicas, projectos e ideias mirabolantes que podem revolucionar uma parte do mundo. Ainda que esse mundo possa ser apenas o meu. Suficiente, parece-me, para que seja um pouco mais feliz. Se me pagassem para ter ideias certamente já teria juntado o dinheiro suficiente para dar a volta ao mundo. Curiosamente, de manhã, já não me lembrava de nenhuma dessas ideias fantásticas. 

Acordei sim com a sensação de que, afinal, não tinha era dormido nada e passara a noite em absoluta e exemplar vigília, mas de olhos fechados. Talvez fingisse, embora não o quisesse, apenas rendida à vontade do corpo. Já me convencera de que ter o gravador na mesinha-de-cabeceira como fazem algumas almas geniais (outras de tão geniais, acabam sempre por se lembrar de tudo, revisitando os sonhos sempre que queiram) é a solução perspicaz e de escorreita eficiência para cumprir as deambulações nocturnas, ainda que em estado hipnótico pela embriaguez que pode ser o sono e o alheamento dos estado pós-sonho. Um caderno, talvez, também ajudasse. Mas falho sempre. As vezes em que isso acontece são tão raras, por isso insuficientes para me obrigar à diligente tarefa do pronto registo para que não haja desculpas. Falho sempre. 

Mas a ideia de que a memória habita um universo tão paralelo e longínquo da razão durante a noite leva-me a pensar num modo de induzir esse estado de pura criatividade, parece, como se pudesse revisitá-lo sempre que quisesse. Dizem que é isso que o realizador David Lynch faz com a sua meditação transcendental, e que já originou obras tão fantasmagóricas, quanto geniais, como o estranho mundo de "Inland Empire". Talvez ele tenha, assim, encontrado a fórmula que o leva a poder mostrar-nos quase tal qual o se passa nos seus sonhos, pela tela de cinema, com actores, que não sendo exactamente aqueles personagens que lhe habitam o onírico, se assemelham ao universo da sua cabeça e das lembranças das suas inquietações. A catarse. Uma cópia aproximada, vale mais do que não chegar sequer lá perto. 

Como não sou adepta de qualquer tipo de meditação – um pouco por incompetência, acredito – , a não ser as minhas prolongadas caminhadas e longas contemplações sozinhas em esplanadas a ver povo e , de certa forma, a atraí-lo - vou ter de arranjar uma forma de no próximo sonho encontrar a porta de entrada que me leva lá sempre que quiser, para que no meu mundo real, transfigure o que vejo, sinto, ouço, por mais abstruso que possa ser, depois, neste lado de cá em que se desperta com o relógio do telemóvel, e que o dia fina numa cadência similar, todos os dias. 

Morfeu conhece-me bem mas, dizem, não é de grandes confianças nem subornável. Em todo o caso não encontro nada que lhe pudesse justificar a troca, ou a querença de um suborno, sendo ele o administrador vitalício do lugar onde todas as coisas são possíveis.  Talvez tenha sido ele que me roubou essas ideias todas.

sexta-feira, maio 28, 2010

Casa, chamada Lar


Fernanda (I)
Há sempre aquela luz que se entranha nas paredes, passa pelas frinchas, pelas persianas, entra nos elevadores a partir do primeiro andar até ao sexto e, depois, se fixa no chão de tijoleira. Há sempre a luz. Aquela luz. Não fosse ela, não teria ali entrado. É a mesma que nos entra à hora de almoço no refeitório. A mesma que a Fernanda Teles, antiga funcionária fabril, usa para fazer os seus crochés no quarto do terceiro andar: para as almofadas, os peluches, as mesas, as toalhas, as bonecas. Ou  cúmplice necessária para aquele ponto de linha-agulha de roupa necessitada. Essa luz não lhe basta. 
Anda doente, mas não quer falar sobre isso. A rejeição é isolamento auto-inflingido. A dela, para si, auto-comiserativa. Não quer sair do quarto porque não quer ouvir falar de problemas dos outros. E de doenças. Muito menos ter que falar dela. Há coisas na vida que já não vale a pena falar, mas aceitar. Depois que chegamos lá preferimos o silêncio. E a luz. O resto é melhor reinventar no que se pode. Ela fá-lo de cada vez que olha pela janela. Gosta de as ver passar. Vê mundo. Vê a vida pela janela do quarto e fica mais bem-disposta.

quinta-feira, maio 27, 2010

Cuidados Paliativos III

Lembrar do futuro, ou a máquina das vidências (quem é você?)

Ontem, ao folhear na Fnac o livro “Breve História do Tempo” de Stephen Hawking, detive-me no capítulo que ele dedica à questão do passado e do futuro. Dizia, a certa altura, marcando o que nos parece evidente, que conseguimos ter saudades do passado e lembrar-nos dele. No entanto, ninguém se lembra do futuro, ou sequer tem saudades dele. 

Enunciando uma série de equações físicas, bebendo da Quântica, do movimento dos átomos, enquanto partículas mutáveis, relacionadas, reactivas e em lapsos de tempo e de espaço (diz ainda que os buracos negros, não são assim tão negros, afinal) ele explica que sim: é possível lembrarmo-nos do futuro, ainda que não tenhamos sequer vivido esse lapso de tempo e espaço. 

Não é preciso, porém, ser um cientista reconhecido para afirmar que, em crítica da “razão” literária de Hawking há uma incongruência aparente (que certamente ele saberia explicar cientificamente, refutando estas minhas palavras) nesses enunciados: o hiato e as variáveis. 

Se essas partículas são mutáveis, muito pode, então, acontecer até que esse futuro venha e deixemos de ter aquele futuro, de que supostamente nos podemos lembrar, para vivermos outro, completamente novo, e que até aqui nunca tínhamos equacionado. (Eu espero, enquanto você volta atrás!). 

Ainda que isso pareça demasiado estruturado numa equação que nos escapa a olho nu, além das evidentes mutações do quotidiano, apercebi-me que, pelo menos uma vez, lembrei-me do futuro. Ou melhor, alguém se lembrou por mim. Em 2006, em Paraty, no Estado do Rio de Janeiro, por altura da Festa Literária Internacional de Paraty, (FLIP) uma senhora de cabelos longos grisalhos, pele queimada do sol, poucas rugas, baixa, blusa azul e branca, desenhada a flores, calças de ganga e chinelos rasos, vendeu-me um colar de pau-brasil pintado a vermelho. Trocámos algumas palavras. Ela achou que eu era brasileira. Até que, ao fim de uns minutos percebeu que o meu Português não era assim tão doce. 

Sorriu. Despedi-me e antes que pudesse virar costas ela disse: 

-“Até, à próxima. Eu sei que a gente ainda se vai encontrar numa via São Paulo, Paraty."

Respondi que sim, por simpatia, até porque na altura não sabia sequer que iria realmente viver em São Paulo. E a probabilidade de a encontrar nesse imenso Brasil era de 1 para um milhão, pelo menos. Depois, apercebi-me que não lhe tinha dito que estava em São Paulo. Como poderia ela saber? Por que não haveria ela de pensar que eu morava noutra cidade? E, se sou portuguesa, conforme ela tinha depois percebido, por que não haveria ela de ter pensado que estava ali de férias?

Dois anos depois, apanhei o autocarro que liga São Paulo a Paraty. Havia poucos bilhetes por causa da FLIP e, à última da hora, consegui lugar não no autocarro que tinha preconizado, mas no seguinte. Três horas já de viagem, parámos numa estação de serviço. Regresso  ao autocarro e senti alguém a tocar-me no ombro. 

-“Você não é aquela portuguesa?”. 

(Advertência: eu tinha entrado muda no autocarro. Estava calada, com o meu livro e a música, a viajar sozinha). Perguntei, àquela pessoa, como sabia. Ela sorriu. 

-"Você não lembra de mim? Eu disse que a gente um dia ia-se voltar a encontrar entre São Paulo e Paraty. Tá indo de novo na FLIP, é?” 

Pedi desculpa, mas não estava a ver quem era, já um pouco irritada, mas sorrindo.

-“Então você não é aquela portuguesa a quem eu vendi um colar de pau-brasil? Não lembra? Há quanto tempo foi?” 

Quanta gente não teria passado pelo olhar dela nesses dois anos? Quantos acontecimentos (partículas, átomos, hiatos de tempo e espaço, varíaveis e circunstâncias) devem ter acontecido para que nos tenhamos cruzado, exactamente ali, naquela estrada via São Paulo e Paraty. Talvez isto tenha sido o mais próximo que estive de lembrar do futuro.

quarta-feira, maio 26, 2010

Cuidados Paliativos II


Perder Tempo, ou a tirania do relativismo proustiano (em busca do "elo" perdido)

Tenho um sério problema com filas. A espera causa-me sempre uma ansiedade tremenda. É como um vírus de acção rápida, cujos sintomas causam graves e imediatos efeitos colaterais: claustrofobia, irritação latente, alergias dérmicas, respiração acelerada e uma impaciência exacerbada que quase causa cegueira momentânea (“Tenho de sair daqui rápido”). 

Depois, conformo-me. Respiro. E disciplino a mente: “Relaxa, até trouxeste livros para ler”. O problema é que qualquer tipo de espera entranha-se-me como uma perda de tempo. É algo que foge do meu controlo. Que não depende de mim, mas sim dos outros. E isso, só por si, já causa efeitos secundários, sempre. “Estou a perder tempo, quando poderia estar a aproveitá-lo”. Tempo. Tempo. Tempo. Talvez isso explique muito da minha relação com ele, o tempo. Noutras ocasiões, muitas vezes, foram os livros que o salvaram. Foram os cúmplices fiéis para que ele não se fugisse em vão, enquanto espero em instituições públicas. Mas nestas circunstâncias há um bafo colectivo – claustrofóbico – que me agoniza. Nem o livro salvaria. Não salvou. 

É que há esse frenesim angustiante da loja de cidadão que me formiga os nervos. Há carrinhos de bebé a barrar as passagens, crianças estendidas no chão a brincar, senhoras de idade a interromper a circulação, famílias inteiras hirtas nos corredores (3 horas depois estariam no mesmo lugar). Há guichês minúsculos, paredes que são gente de perna alçada, homens a tresandar de suor que se esbarram contra nós e ainda nos olham como se fôssemos culpados (chegamos a equacionar a hipótese de estarmos, também, a atrapalhar a passagem, mas foi só impressão nossa: mais junto à parede só se fôssemos tinta). E há gente sentada de rosto esmaecido condenada à espera – e que me olha como se fosse um ser inferior. Sou-o, com certeza, porque não padeço do estado nirvánico necessário para ali permanecer de rosto esmaecido, nesse bafo colectivo de suor e olhar vazio. Triste e reféns de um estado que lhes foge do controlo, como sistema estabelecido. 

Acredito que o nível de desenvolvimento de um país se mede, essencialmente, de 4 formas, a funcionar como rápido raio-X: 1. pela maneira como tratamos o lixo em casa e cá fora; 2.  pelo acesso à saúde e tempo de espera nos hospitais; 3. pela rede de transportes; 4. pelo tempo de espera nos serviços públicos ou semi-públicos. A loja do cidadão trouxe a síntese desta última, reunindo num só espaço os serviços essenciais para o exercício da nossa portugalidade. Se no início a eficiência ainda foi madrinha da coqueluche da máquina burocrática da cidadania portuguesa, há algum tempo que no Porto, pelo menos, ela foi de férias. 

É evidente que ali não há funcionários suficientes para atender tanta gente. Já  sei que está para abrir uma outra loja. Enquanto isso, perdemos tempo. Mas além disso, o mais intenso, foi perceber o peso burocrático das emoções, por ali, e de como a espera torna as pessoas mais tristes, pesadas e conformadas com tudo isso. E tudo isso, assim, numa perda de tempo.

Conforme indicava a minha senha, só seria atendida três horas depois. Saí, comi um gelado e aproveitei para tratar de assuntos pessoais. Quando voltei, já me tinha curado da irritação, resgatara o sorriso e a leveza, e já não sabia do que era feito da ansiedade. Mas ainda faltavam seis números para o meu. Fui ao WC. Pela média do dia, ainda levaria uma meia hora, pelo menos, a ser atendida. Em 5 minutos estava de volta. Já tinha passado o meu número em quase dez. Hã? (Claro, ao fim do dia, já muito boa gente desistiu da espera e foi tentar resgatar o tempo perdido a fazer, provavelmente,  o jantar). 

Fui ao encontro da mulher do guichê. Expliquei-lhe. Ela respondeu que devia estar a gozar com ela. Que já tinha passado o número da minha senha e que não havia nada a fazer. Expliquei de novo. E sorri. O meu melhor sorriso, quando só o que me apetecia era ralhar-lhe, irritada. Psicologia invertida: "Sorri, Vanessa, sorri!", pensei. Fiz-lo. Ela acedeu. Mandou-me sentar. A meio da conversa percebeu que me conhecia. Era a mãe de um bom amigo meu de faculdade. Não o vejo há anos. Mas, nesse instante, percebi que em segundos, por afinidade, ganhara, eventualmente, o tempo que perdera a tarde toda. “Pois bem, em que posso ajudá-la?”

segunda-feira, maio 24, 2010

Homem UltrA Mud.Erno [9]

Dão tachos profissionais aos amigos por meritocracia: quantidade de palmadinhas nas costas, panos quentes e graxa com serviço completo, com lambe-pés.

Cuidados Paliativos I

Providências Cautelares, ou o tribunal dos paninhos quentes (a gerência sentimental agradece a quem o inventar)

A Jurisprudência não é uma ciência exacta. Justa. Se a mãe do Direito já é corrompida no cerne, os filhos, por isso de proveniências duvidosas, não poderão nunca ter a espinha direita. Vergam-se, nem que não saibam que o ângulo cedeu, ainda que por milímetros. Vergam-se sempre, involuntariamente. 

É que a justiça não existe. Somos contexto, pretexto, e essencialmente, parciais. Somos corruptíveis pelas nossas crenças e pela forma como vemos o mundo. Em total relativismo razoável. Para nos entendermos (com as diferenças que tanto nos separam em atrito-conflito gélido e indiferente, por vezes) procuramos o comum. E falhamos sempre, demasiado. Por ego.

Não quero entrar em discussões epistemológicas, muito menos ontológicas, que me levem ao emaranhado académico da Filosofia sobre o assunto. Não. É simples: na equação "exacta" que poderia assegurar que os resultados sentenciais (deliberado por pessoas - quer sejam os nossos juízos de valores, quer sejam pronunciações profissionais de cerne jurídico) fossem o mais rigorosos e conforme o que é justo (teríamos mesmo de reinventar o significado de justo, pois não encontro nos dicionários um resultado que me satisfaça, imparcialmente) teríamos de considerar as variantes e não as constantes. Além de que não dispomos de detectores de justiça que as analisem todas, com rigor e adaptabilidade circunstancial para o correcto exercício da exactidão. 

Contexto, ambiente, predisposições, cultura, espaço psicológico, afectos, desafectos, neuroses, educação, ideais, horas de sono e, ainda, por fim, uma certa antipatia ou simpatia pelo caso ou a pessoa a julgar. E isso ainda que ela nos esteja a enganar mesmo muito; a mostrar-nos não aquilo quem ela verdadeiramente é (não estou certa de que haverá alguém que realmente o mostre, até porque ser e estar não são exactamente a mesma coisa) ou aquela que ela percebe que gostaríamos que víssemos, como adjuvante de peso da nossa absolvição. 

Mas onde noto, substancialmente, que a jurisprudência e filhos afectos como o Direito e a Justiça, por exemplo, não são justos é na incapacidade de julgar os sentimentos, as emoções e os estados de espírito. Não há pior demonstração de falha – e consequentemente nós, como seres brutal e cronicamente incompletos – do que esta: a cabal incompetência de impor providências cautelares para os nossos sorrisos, a nossa leveza, a paixão, o amor, a solidariedade, e os abraços sentidos. Esse baú invisível de disposições felizes de vida.

Haverá muito mais nessa arca, mas já perceberam onde quero chegar. Se cedo lhes imputássemos uma qualquer providência cautelar para garantir pertença (e assegurar que quem um dia a teve deveria dela usufruir eternamente,  resgatando-a sempre que quisesse) pois terá sido sempre dela despojado contra a sua vontade, através de coacção física ou moral. Pior: através de furto ou roubo. Pelos outros. Sempre os outros - um dia nós  também fazemos parte desse plural de pronome indefinido. E para esses crimes não há Tribunal ou miragem de casa de Justiça para os julgar: condenar ou absolver. Como se existisse, legitimando as providências cautelares, tornaria a vida, por isso, talvez mais justa. E a nós mais felizes.

sexta-feira, maio 21, 2010

Hilda-Hilda, o Diabo


 
Voltámos à Hilda. Às vezes não tenho pitada de inveja dela. Imagino-lhe o turbilhão de vida e prefiro o meu aparente sossego, o sol de verão, os livros pachorrentos e as amenidades. Aliás, não sei se deva começar por elas, falando da sinfonia descoordenada dos chilreares que ainda ouço (não sei se cá dentro, se lá fora), do trabalho que me pede uma certa dança de limbo e permanente jogo de cintura (e logo eu que estou a perdê-la), a ansiedade, a aprovação do povo pelo governo Lula, das praias do Rio, ou da crise esmagadora que nos atrofia a respiração. Não sei. Esqueci-me de falar disso tudo a Hilda. Com ela as amenidades perdem, realmente, todo o sentido. São desnecessárias. Leio-lhe as palavras inteligentes, secas, maduras e absorvo-lhe as densidades como lições de vida. 

Hilda inquietou-me. Inquieta-me sempre. Ela não anda bem. Aquele karma com os homens é um desassossego e, por isso, a miúda mergulha em doses de fluoxetina. Desta vez está apaixonada pelos dois. Chegou a haver três. Chegou a falar-me de quatro. Quatro? Oh, Hilda, o Diabo! Aquela paixão antiga, mal resolvida, que lhe revolve os sentimentos numa anarquia: acorda de peito apertado e olhos humedecidos, como lhe dói.
Tento sempre, firme.

- Hilda, temos afastar-nos de tudo aquilo que nos faz sentir mal!”; Depois ele é um imaturo, um rude, um parvo, contigo, mulher!”.

Depois, é esse amor, pesado, que a deixa ainda mais densa.

- “Pois, Hilda, não sei. Tens de pesar o que te faz sentir bem. O que vocês têm de bom e único quando estão juntos e entender-se. O importante é procurar os pontos comuns para lidar com as diferenças. E ceder naquilo que é relativo e não essencial”.

Hilda sufoca. As palavras não ajudam.

Um dia disse-me que gostaria de ser eu. Disse-lhe que ela não estava a funcionar muito bem dos neurónios.

-“Eu, Hilda?”

Não lhe recomendei em nada esta vida de apneia.

- “Hilda, todos temos os nossos problemas. Paciência. Concentra-te em ti e nos teus projectos: é o mais importante e permite-te crescer; despender energia numa construção autónoma”, aconselhei-a. 


Ela é linda. Todas gostariam de ser Hilda. Ela discordou. Pegou-me na mão. Riu-se e deu-me um abraço. Pude, por isso, sentir-lhe o bafo de tabaco e um certo desespero no peito. Desânimo, talvez. Com a vida. E ela já lhe tentou pôr fim algumas vezes, sem querer. Sem querer. Ou por greve de fome, por achar o corpo esquelético gordo. Ou por causa de litradas de Coca-Cola com whisky que lhe trazia gastrites críticas para a cama, de estômago vazio. (“Oh, Hilda, cuida de ti, miúda!”)


Desta vez inquietou-me forte. Não que haja qualquer sinal de perigo real na vida dela, mas porque uma mulher assim não terá sossego nunca. Esta mulher é intensa. Um pouco insegura, com uma certa indecisão lá dentro. Arrebatada, apaixonada. Viva. Oh, Hilda, o Diabo! Está dilacerada, sempre, entre um dever antigo, um passado, do qual não se desvincula, e um presente que a deixa, por vezes, amargurada. Mandou-me o e-mail dos dois. Aconselhei-a a apagar tudo. 
- "Mensagens, e-mails, fotos. Tudo, tudo. Em nada te acrescenta. Pelo contário. Infla-te a amargura. A tristeza. O desassossego desnecessário. Sai dessa. Sai de casa. Faz outras coisas. Comigo sempre resultou esse corte radical. É um remédio essencial, para seguir em frente" - disse-lhe, sem querer parecer dona das curas sentimentais. 
- “Se quiseres”. 

Como pode ela amar tantos homens em simultâneo? Aquela cabeça. Aquele coração. Aquele desatino. Aquele karma! Acho que foi por isso que me lembrei da brincadeira que ela sempre fazia, das poucas vezes que fui a casa dela. Desafiava.  



- Queres ver como tenho um karma que não controlo?



Dava-me o baralho do tarot, e pousava o livro com a explicação dos símbolos na mesa, para que lhe lesse em voz alta o que ela já sabia, assim que a carta saísse. No início entrava de boa, na brincadeira. Depois aquilo começou a assustar-me, mas não podia contrariar-lhe os humores. Ela andava sempre sensível.

Eu baralhava as 78 cartas. Fazia questão de misturar quase uma a uma. Ela não teria como saber. Inspeccionava as marcas. Mas depois, para que não houvesse dúvidas, a Hilda fazia-o de olhos vendados. 

Das cinco vezes que ela o fez, em cegueira infligida, saiu-lhe o Diabo. Era a carta dela. Hilda, o Diabo. Ela ria-se em voz alta. E eu lia-lhe o que ela já sabia. 


- “O Diabo manifesta o destino (bom ou mau). Revela poder de sedução, impulso cego, tentação, obsessão. Manifesta desvio sexual. Estado mental (confessional). As paixões carnais descontroladas. Posição invertida revela carta daninha, fatalidade, mau uso da força. Fraqueza , cegueira, desordem. Efeitos maléficos. A patética condição humana que prefere a ilusão, à verdade”. 


- Desvio sexual; patética condição: sabes que patético vem de Pathos, Van? É sofrimento, em grego; que simpatia é partilha de dor?


- Sei, Hilda, sei. Mas já chega destas parvoíces.


Ontem, ela reforçou-o.

– O Diabo, Van. Saiu o Diabo. Ahahahah. 


E parece que lhe ouvia as gargalhadas. Penso nela e estilhaça-se-me uma certa condição de ansiedade, por ela. E por aquilo que a vida pode ser, quando o tempo de infância e de tolerância para sermos alguém passa. E não acho que isso possa ser delimitado. Por muito que tentemos nunca estamos preparados para o ser. Ah, Hilda, o Diabo!


segunda-feira, maio 17, 2010

Homem UltrA Mud.Erno [8]

Usa palavras caras sem lhes conhecer o significado. Apagam as dos outros porque não sabem o que significam. Estão no poder. Medíocres, vasculham dicionários.

sábado, maio 15, 2010

ulular

 
Gostamos de ser persuadidos e, às vezes, nem damos conta do tamanho dos nossos invisíveis cordéis e oleados engonços que, apanhados nas mãos erradas, nos fazem articular os actos como cordeiros amansados. Sobretudo se nos disserem aquilo que precisamos de ouvir, como se nos pegassem ao colo. 

Nunca, até agora, na História do Brasil houve um presidente que no final do (segundo) mandato gozasse de tanta popularidade como o Lula, não obstante o lixo escatológico que se esconde por baixo do tapete dos actos políticos ("Eu não sabia), que os homens de assepsia política (profissionais na arte da dissimulação) mantêm novo. 

É. Nós, seres amansados, que só queremos viver com o mínimo de preocupações possíveis, porque já as temos de sobra - e tudo o que não diga directamente respeito à nossa vida parece-nos uma perda de tempo - queremos um certo status quo quando as coisas parecem até nem correr mal. E com Lula, apesar de tudo, alguma coisa no Brasil mudou.

 A estabilidade política deve-a ele, essencialmente, ao tapete que o Fernando Henrique Cardoso deixou; e para o social resgatou as bases dos assistencialismo popular para atenuar um Brasil fustigado pela fome e analfabeto. Ainda é tudo muito insuficiente. Mas há aqui uma evidente mudança. 

Talvez, também por isso, este novo Brasil esteja tão "agradecido" ao Lula "Paz e Amor." Talvez por isso, a maioria dos brasileiros com quem tenho conversado não saiba, ainda, em quem votar. E todos os candidatos, depois de Lula, lhes pareçam demasiado apagados para fazer alguma diferença, ainda que o mais importante até possa ser a perenidade da actual estrutura e não a diferença. Talvez, por isso, se Lula se candidatasse,  e conforme indicam as últimas sondagens, seria certo que seria "Lula de novo com a força do Povo". E só isto é, claramente, um crónico sinal de diferença.


garbarek e vasmoulakis

O furacão doce que vem da noruega... Anja Garbarek para a tarde... 


com a arte do grego Vasmoulakis...


sexta-feira, maio 14, 2010


tpm#01

Acho que nenhuma mulher está realmente preparada para ela. Esta estúpida sigla é uma inimiga cruel, moinha invencível, a impulsionar um certo estado de bipolaridade, ora carregado de um poço profundo, ora arrastada para uma festa de confetis, onde a Rita Lee poderá andar munida do seu lança-perfumes.

Por hoje, os estragos desta sigla inimiga das miúdas resumem-se a restos de bolachas de chocolate (um pacote inteiro, para que conste) no balcão da cozinha, litradas de café, mau humor (mau-humor-mau-humor) e o álbum dos "The National" comprado via itunes... A culpa é dela... Agora estou "High Violet", filha de um TPM.

a vírgula, essa tirana

segunda-feira, maio 10, 2010

gris.alha

Anda uma Primavera a desfazer as malas e cedo se cansou de nos dar cor e cobrar do sol a parte que lhe compete. Ela prometia ter chegado cheia de novas texturas, combinações coloridas; andou a despir as árvores dos fiapos de Inverno, pôs-lhes lenços verdes, cobriu de manto-relva os campos e anunciou ter contratado o astro-rei para lhe intensificar as matizes. Só que hoje, como há uns dias, o tempo acordou desmaiado e triste de novo, a ameaçar lágrimas. Não sei quem andará a derramar o pantone cinza lá de cima; e já ouvi rumores de uma tal nuvem gigante vulcânica a dissipar bafos grises enxofrados nesse azul (porque  o céu é isso e não precisa de outra cor). Ou talvez ela, a Primavera, por causa desse tirano do Tempo, esteja também a ficar gris(alha), triste, cansada, e a desbotar-lhe a cor.

domingo, maio 09, 2010

mirixituba

Cheirava a chocolate quente. Ouvia-se mãos a pintar papéis. Sujámos os dedos de lápis de cera para aprender a lavar os dentes com os índios Tupinambá no Médio Amazonas. O som é com os Mura. FOTOS no Sinais da Gente


sexta-feira, maio 07, 2010

Há um ano, o Sinais da Gente (e a Amazónia), com as primeiras contracções

O mundo começa aqui. Sem coordenadas reais. Com bússolas que sentem. Azimutes desalinhados, que se seguem pelo som do vento, o gosto das águas, e o abraço das gentes. O mundo começa aqui num grão de areia. Numa viagem de mil viagens. Num alfabeto reinventado: com ar nas veias para levitar. Com rasgos nos olhos para ver mais perto. Almas, cheiros, paladares que se entranham nos poros e reentrâncias carnais como lente raio x. Não existe?

É aqui onde começa o mundo. Como oxigénio. Fotossíntese. Como raiz entranhada que esventra a terra. Desejo carnal que se enrola com a vida, sem medo de se trair. Trair é enterrar os pés e esperar que o mundo venha. Antes ser pó, que sonho por fazer.

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A importância de ser Clarice


A primeira vez que me cruzei com Clarice ainda não sabia que era Clarice, e o que isso significava. Entrou de testa nua no café - a sua grande testa farta - que se acentua quando repuxa aquele cabelão preto para a pressão de um elástico improvisado, ou mesmo para a tirania de um lápis que o agarra em espiral. 

É esse mesmo lápis que, às vezes, usa para lembrar a memória. Abre o caderno, pega no lápis (no, ou fora do cabelo) rascunha-lhe um bafo que acha digno de um dia voltar a cheirar e, quando dá por ela, o lápis está na boca, e ela a roer-lhe o canto colorido. Parece uma criança animada pelo lápis de cor no papel, como se a hora assim arrastasse o tempo para um recreio eterno. Também invejo Clarice por isso. A capacidade de fazer da vida um recreio e sem recear ser apenas aquilo e não outra coisa, afastando-se, como uma criança, de tudo aquilo que lhe rouba o sorriso. E, por isso, esteja em estado mais avançado.

Mas ela não percebe sequer que haja realmente uma importância e subtileza nessa forma leve de vida. É outro mundo. É sempre ela, reinventada lá atrás, crescendo, mas nunca crescendo.  Nunca lhe vi uma ruga, ou um cabelo branco. Vi-lhe, sim algumas estrias, e o branco da pele que a cobre de uma doçura genuína. Mas isso não lhe tira a importância de ser Clarice.

Observá-la é um inevitável exercício de aprendizagem e de como gostaríamos de um dia ser, ou poder ter sido Clarice, sem alguma vez termos estado próximos. E eu sei que, apesar de tudo, essa mesma reinvenção que por cá há, é-me degolada como sinal de fraqueza. Não me lembro de alguma vez a ter escrita num caderno a lápis como o de Clarice. Talvez o devesse.

Há muito tempo que não vejo Clarice. Acho que nunca mais a vou voltar a ver.

quarta-feira, maio 05, 2010

O J. vai estar por aqui
pela Livraria Nhô Eugénio, na Achada Santo António.

terça-feira, maio 04, 2010

almanaque tasqueiro

Perto deste entranhado podre bafo de mediocridade que se vai arraigando no meu país, o Zé Povinho é um Senhor. Lá que tem  um certo ar desleixado e, por isso impróprio para consumo estético que nem nos meus piores pesadelos, de bochechas anafadas, enrubescidadas de calor alcoólico e estômago estufado de carnes fartas em ponto de flatulência, não posso negá-lo. Mas, talvez por isso, sai-me ele mais genuíno, merecedor da vénia da dignidade, do que toda esta farsa de gente que  não tem uma réstia de humildade, apadrinhada por tamanha hipocrisia, que fazem, vergonhosa mas maioritariamente deste meu país um clube restrito de bonacheirões clientelistas. Sei, sei: é o tamanho do país que nos faz, assim, tão pequeninos e promíscuos. Pois, pois só que é, também, o tamanho do país que torna tudo tão evidente de quanto tudo anda cego.

segunda-feira, maio 03, 2010

Homem UltrA Mud.Erno [6]

Conquistas rápidas. Superficiais. Cosméticas. Estéticas...

sábado, maio 01, 2010

há missão na selva...


Video a sobrevoar a floresta amazónica 
com a força aérea brasileira

cartas de bielman f.


Durante anos, suspeitou-se que as cartas trocadas entre Bielman F. e Bielman A., um seu alter-ego intelectual, da mais alta estirpe pensadora que o século XXI veio a desconhecer, e isso porque já se foi (e até ao momento não houve nenhuma propalação póstuma), não passavam isso sim de um mito inventado por uma amante enlouquecida de ciúmes (não se sabe bem de qual dos dois), depois internada num hospício nos arredores de Pashtina, a terra que, dizem, só nos piores pesadelos, neuroses veladas, ou ordem expressa d’Eles (nunca ninguém os viu, mas eu já vi Pashtina) alguém pode ir parar como pedaço de carne putrefacto em saco de lixo. Pashtina é, na verdade, um depósito de zombies.

Agora, uma empregada de limpeza, encontrou essas missivas “secretas” enrodilhadas em elásticos ressequidos, tendo ela tropeçado numa tábua solta da casa dos meus tios, provando um certo fôlego da existência daquelas missivas que agora só o são porque foram encontradas, como ganhassem uma nova vida. 

No entanto, Bielman F. ao que parece nunca frequentou a morada dos meus tios. O meu tio também nunca ouviu falar de Bielman A. Por isso, o acontecimento teve contornos esfumados de desconfiança sanitário-mental, deixando a família atenta ao meu nível de sanidade, que já gozou de melhores graças. Eles fizeram questão de ignorar o conteúdo das cartas, bem como seu real valor, olhando-me apenas de esguelha e entre cochichos que imagino serem compostos pela devida cadência e onda sonora que identifica o meu nome, como dissessem: “mais um destes episódios e será melhor uma consulta ao divã ou a camisa-de-forças como prevenção de um mal maior”.

Como ignorassem o acontecimento, tendo a minha atenção apenas como devida importância, decidi contá-lo neste post. Como sei que poucos lêem este baú empoierado de devaneios, não temi revelá-lo como verdadeira catárse do acontecimento e, também, como forma de justificar a absolvição posterior, no caso de uma eventual camisa de forças previdente.  

Na realidade, até mesmo eu que conheci os Bielman, um nas ruas de São Paulo, outro na sala soturna do Rio de Janeiro, não entendo por que razão as cartas tenham vindo parar a milhares de quilómetros de distância, por baixo das tábuas da casa dos meus tios, em Portugal. O único elo de ligação como podem verificar sou  eu, o que me leva a considerar a hipótese de eu ser Bielman. Pelo menos um deles.

As cartas, às dezenas, revelo-o agora em primeira mão neste post, são desabafos e conselhos do pensador insigne ao outro que nunca chegou a ser nada na vida, tendo sido, na realidade, tanta coisa. Por isso, presumo – e segundo um certo padrão simbólico das cartas - teve medo, amou, doeu-lhe a alma, o corpo, sofreu. Se isso é válido o suficiente para provar que existiu por si e não aos olhos e juízos dos outros, então poderei afirmar, ainda que sob a ameaça de uma camisa de forças (parece que consigo perceber que o aperto está mais próximo), que Bielman F. apesar de nunca ter sido ninguém na vida, viveu. E, se viveu, existiu. De certo modo era essa a tese fundamental de Bielman A. sobre a existência– “embora hoje só realmente existimos quando os outros nos reconhecem, deves viver por ti, ainda que nunca te venham a reconhecer a existência porque, para seres, precisas de fazer algo grandioso que muitos reconheçam. Até lá serás como cartas esquecidas por baixo de tábuas empoeiradas em casa alheia”.