sábado, maio 01, 2010

cartas de bielman f.


Durante anos, suspeitou-se que as cartas trocadas entre Bielman F. e Bielman A., um seu alter-ego intelectual, da mais alta estirpe pensadora que o século XXI veio a desconhecer, e isso porque já se foi (e até ao momento não houve nenhuma propalação póstuma), não passavam isso sim de um mito inventado por uma amante enlouquecida de ciúmes (não se sabe bem de qual dos dois), depois internada num hospício nos arredores de Pashtina, a terra que, dizem, só nos piores pesadelos, neuroses veladas, ou ordem expressa d’Eles (nunca ninguém os viu, mas eu já vi Pashtina) alguém pode ir parar como pedaço de carne putrefacto em saco de lixo. Pashtina é, na verdade, um depósito de zombies.

Agora, uma empregada de limpeza, encontrou essas missivas “secretas” enrodilhadas em elásticos ressequidos, tendo ela tropeçado numa tábua solta da casa dos meus tios, provando um certo fôlego da existência daquelas missivas que agora só o são porque foram encontradas, como ganhassem uma nova vida. 

No entanto, Bielman F. ao que parece nunca frequentou a morada dos meus tios. O meu tio também nunca ouviu falar de Bielman A. Por isso, o acontecimento teve contornos esfumados de desconfiança sanitário-mental, deixando a família atenta ao meu nível de sanidade, que já gozou de melhores graças. Eles fizeram questão de ignorar o conteúdo das cartas, bem como seu real valor, olhando-me apenas de esguelha e entre cochichos que imagino serem compostos pela devida cadência e onda sonora que identifica o meu nome, como dissessem: “mais um destes episódios e será melhor uma consulta ao divã ou a camisa-de-forças como prevenção de um mal maior”.

Como ignorassem o acontecimento, tendo a minha atenção apenas como devida importância, decidi contá-lo neste post. Como sei que poucos lêem este baú empoierado de devaneios, não temi revelá-lo como verdadeira catárse do acontecimento e, também, como forma de justificar a absolvição posterior, no caso de uma eventual camisa de forças previdente.  

Na realidade, até mesmo eu que conheci os Bielman, um nas ruas de São Paulo, outro na sala soturna do Rio de Janeiro, não entendo por que razão as cartas tenham vindo parar a milhares de quilómetros de distância, por baixo das tábuas da casa dos meus tios, em Portugal. O único elo de ligação como podem verificar sou  eu, o que me leva a considerar a hipótese de eu ser Bielman. Pelo menos um deles.

As cartas, às dezenas, revelo-o agora em primeira mão neste post, são desabafos e conselhos do pensador insigne ao outro que nunca chegou a ser nada na vida, tendo sido, na realidade, tanta coisa. Por isso, presumo – e segundo um certo padrão simbólico das cartas - teve medo, amou, doeu-lhe a alma, o corpo, sofreu. Se isso é válido o suficiente para provar que existiu por si e não aos olhos e juízos dos outros, então poderei afirmar, ainda que sob a ameaça de uma camisa de forças (parece que consigo perceber que o aperto está mais próximo), que Bielman F. apesar de nunca ter sido ninguém na vida, viveu. E, se viveu, existiu. De certo modo era essa a tese fundamental de Bielman A. sobre a existência– “embora hoje só realmente existimos quando os outros nos reconhecem, deves viver por ti, ainda que nunca te venham a reconhecer a existência porque, para seres, precisas de fazer algo grandioso que muitos reconheçam. Até lá serás como cartas esquecidas por baixo de tábuas empoeiradas em casa alheia”.

Sem comentários: