quinta-feira, maio 27, 2010

Cuidados Paliativos III

Lembrar do futuro, ou a máquina das vidências (quem é você?)

Ontem, ao folhear na Fnac o livro “Breve História do Tempo” de Stephen Hawking, detive-me no capítulo que ele dedica à questão do passado e do futuro. Dizia, a certa altura, marcando o que nos parece evidente, que conseguimos ter saudades do passado e lembrar-nos dele. No entanto, ninguém se lembra do futuro, ou sequer tem saudades dele. 

Enunciando uma série de equações físicas, bebendo da Quântica, do movimento dos átomos, enquanto partículas mutáveis, relacionadas, reactivas e em lapsos de tempo e de espaço (diz ainda que os buracos negros, não são assim tão negros, afinal) ele explica que sim: é possível lembrarmo-nos do futuro, ainda que não tenhamos sequer vivido esse lapso de tempo e espaço. 

Não é preciso, porém, ser um cientista reconhecido para afirmar que, em crítica da “razão” literária de Hawking há uma incongruência aparente (que certamente ele saberia explicar cientificamente, refutando estas minhas palavras) nesses enunciados: o hiato e as variáveis. 

Se essas partículas são mutáveis, muito pode, então, acontecer até que esse futuro venha e deixemos de ter aquele futuro, de que supostamente nos podemos lembrar, para vivermos outro, completamente novo, e que até aqui nunca tínhamos equacionado. (Eu espero, enquanto você volta atrás!). 

Ainda que isso pareça demasiado estruturado numa equação que nos escapa a olho nu, além das evidentes mutações do quotidiano, apercebi-me que, pelo menos uma vez, lembrei-me do futuro. Ou melhor, alguém se lembrou por mim. Em 2006, em Paraty, no Estado do Rio de Janeiro, por altura da Festa Literária Internacional de Paraty, (FLIP) uma senhora de cabelos longos grisalhos, pele queimada do sol, poucas rugas, baixa, blusa azul e branca, desenhada a flores, calças de ganga e chinelos rasos, vendeu-me um colar de pau-brasil pintado a vermelho. Trocámos algumas palavras. Ela achou que eu era brasileira. Até que, ao fim de uns minutos percebeu que o meu Português não era assim tão doce. 

Sorriu. Despedi-me e antes que pudesse virar costas ela disse: 

-“Até, à próxima. Eu sei que a gente ainda se vai encontrar numa via São Paulo, Paraty."

Respondi que sim, por simpatia, até porque na altura não sabia sequer que iria realmente viver em São Paulo. E a probabilidade de a encontrar nesse imenso Brasil era de 1 para um milhão, pelo menos. Depois, apercebi-me que não lhe tinha dito que estava em São Paulo. Como poderia ela saber? Por que não haveria ela de pensar que eu morava noutra cidade? E, se sou portuguesa, conforme ela tinha depois percebido, por que não haveria ela de ter pensado que estava ali de férias?

Dois anos depois, apanhei o autocarro que liga São Paulo a Paraty. Havia poucos bilhetes por causa da FLIP e, à última da hora, consegui lugar não no autocarro que tinha preconizado, mas no seguinte. Três horas já de viagem, parámos numa estação de serviço. Regresso  ao autocarro e senti alguém a tocar-me no ombro. 

-“Você não é aquela portuguesa?”. 

(Advertência: eu tinha entrado muda no autocarro. Estava calada, com o meu livro e a música, a viajar sozinha). Perguntei, àquela pessoa, como sabia. Ela sorriu. 

-"Você não lembra de mim? Eu disse que a gente um dia ia-se voltar a encontrar entre São Paulo e Paraty. Tá indo de novo na FLIP, é?” 

Pedi desculpa, mas não estava a ver quem era, já um pouco irritada, mas sorrindo.

-“Então você não é aquela portuguesa a quem eu vendi um colar de pau-brasil? Não lembra? Há quanto tempo foi?” 

Quanta gente não teria passado pelo olhar dela nesses dois anos? Quantos acontecimentos (partículas, átomos, hiatos de tempo e espaço, varíaveis e circunstâncias) devem ter acontecido para que nos tenhamos cruzado, exactamente ali, naquela estrada via São Paulo e Paraty. Talvez isto tenha sido o mais próximo que estive de lembrar do futuro.

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