quinta-feira, janeiro 29, 2015

A cidade e seus personagens I – Ilha da Bela Vista*

Será que há no mundo cidade com mais ilhas do que o Porto? Pedaços de terra intersticiais da anatomia citadina em terra, ligações insulares que provam que, afinal, o homem pode ser uma ilha? 

Por Vanessa Rodrigues



Não se sabe ao certo quantas centenas se escondem, isoladas, por trás de outras casas. São portões mistério de humanidade, aglomerado de habitações simples que brotaram da urgência em alojar a mão de obra no século XIX. Os herdeiros, que continuam a história, são parte do ADN da Invicta, um repositório de memória, de herança daquilo que somos. É o caso de Rosa, Ana, Luís e dos casais Maria Eugénia e Aloísio; Manuel e Júlia, moradores da ilha da Bela Vista, na rua Dom João IV.
Rosa, 69 anos, viúva e rebelde, voz grave, “foi feita” no quarto onde agora dorme. O pai foi afinador de teares numa fábrica portuense. Lembra-se do dia em que comprou um biquíni e como convenceu o marido a usá-lo. É “feliz, muito feliz”, na ilha, e tem saudades do barulho da “canalha”.
Já Ana Oliveira, a fadista de cabelo alvo e mãos de afagar gatos, 85 anos, saudosa do tempo em que cantava, nasceu na casa 10. Aos nove anos, já “andava a esfregar escadas e a acartar o balde da água”.“Cada caneco era um tostão, mas à vezes caía o caneco e ficava sem o caneco e sem o tostão”.
Escreveu muitas letras de música e poesia, só para ela. Começou a cantar na rádio Festival, antes de ser a rádio Festival, e foi a voz do Café Sanzala.
– “Todos os domingos de manhã, a comunidade juntava-se para me ouvir na rádio e cantarolava: “Vem está marcado/é o café que nos convém/não há outro no mercado/que ao tomar/saiba tão bem/mas que cheirinho/que perfume que exala/ café sempre fresquinho/que se vende na Sanzala/na sua mesa/tenha sempre um bom café/porque o acha com certeza/famoso como o Pelé.”
A vizinha insular de Ana, Maria Eugénia Moreira, tem sete décadas de vida, cabelo curto e grisalho, olhos de menina. Começou a trabalhar aos dez anos. Não podia sair de casa para brincar. Na “mocidade” foi a bailes com gira-discos e conheceu o marido, Aloísio. Nunca dançaram juntos. Aloísio foi depois para o ultramar e Maria Eugénia foi a sua “madrinha de guerra”. Ele rendeu-se e pediu-lhe namoro por carta. Ela até o achava “jeitoso”, “encanadinho”, mas “teso”. Zangaram-se, porém uma amiga juntou-os : “Vou-vos apresentar ao amparo da vossa velhice”.
Estão juntos há quatro décadas. Ele foi atleta, tipógrafo e, ao contrário da mulher, brincou até fazer asneiras: – “Arranjámos uma tábua dos andaimes, passávamos cascas de banana, laranja e pêra na madeira, para lubrificar e, do início da rua escura até à Ribeira, deslizávamos a alta velocidade. Eu parti a cabeça umas 15 vezes”.
Para Manuel e Júlia, a ilha é um “paraíso”. Ele trabalhou com artes gráficas, esteve fora do país, agora está reformado. Ela trabalhou num infantário. O Luís, 43 anos, o mais novo desta prosa, também se recorda do tempo dos tostões, das festas, da algazarra das crianças e do aconchego de ter uma casa, apesar de estar numa “ilha quase deserta”. Uma vez juntou o Cavaco Silva e o Mário Soares.
– “Fui segurança da Fundação de Serralves e, numa cerimónia pública, o quadro elétrico falhou. Eles estavam lá. Fui eu quem puxou a alavanca do quadro de eletricidade que estourou, numa grande confusão, por isso os seguranças tiveram de pôr os dois políticos no mesmo carro”.

P.S.: Testemunhos recolhidos por mim, pelo Daniel Brandão, Maria Camps, Wouter De Broeck, Ana Clara Roberti, Ricardo Coelho, Rita Costa, André Rocha, Ana Patrícia dos Santos, Daniel Rodrigues, Joana Costa, Maria João Pereira, Rute Febra, Priscilla Davanzo, Tiago Dias dos Santos, com apoio do arquiteto Nicolau Brandão e das assistentes sociais Inês Lima e Ana Vieira, no âmbito do Citizen Lab: Audio+Visual Storytelling, Future Places 2014. O lab deu origem ao projeto documental Citadocs (sobre, para, por cidadãos).

*Crónica publicada no Porto24 a 28 de Janeiro de 2015

quarta-feira, janeiro 07, 2015

Pescador, cor de cacau, artesão da roça

A escultura de madeira suave e perfeita em forma de peixe na estante dos livros de viagens relembra uma lição de vida: que há gente a gostar de gente, abnegadamente, só porque sim, com a vida real em perfeita harmonia.

Por Vanessa Rodrigues


7 de Maio de 2011

Do bananal vem o rumor do mar, misturado com o riso da manhã e os olhos dele, grandes, bem desenhados, ternos. Negritude é a pele grossa, sábia genética, que adensa o calor e suaviza a humidade tropical quando nela assenta. Tem uns dentes alvos, e um olhar manso. Alexandre dos Santos, 22 anos, morador na roça Agostinho Neto, na ilha de São Tomé.
Estou de passagem. Sou a branca turista a querer saber das gentes. É pescador em part-time, homem da roça, separado da mãe dos filhos, um arroubo juvenil. E ainda lhe sobra tempo, à noite, se restarem dobras, para dançar Funaná.

一 Vais comigo?, convida.

É filho de cabo-verdianos – ainda se lembra do crioulo, o dialeto de casa –, dos muitos que migraram para esta ilha africana tão vizinha da linha Equador, metáfora para um recomeço. Quer saber: onde moro, de onde sou, se tenho filhos, marido, logo assim, nos primeiros segundos. Não perde tempo. A sedução não é um jogo, é convicção.
Também já foi militar, motorista de uma política são-tomense. Tão novo, tanta vida a latejar. Despeço-me. Ele com a tristeza inconsolável da despedida. Eu, com um certo desconforto. Penso que deve ser charme da condição insular.
No dia seguinte, espera-me, de manhãzinha, à porta do hotel.

一 Desculpa ter vindo assim sem avisar. Queria ver-te uma última vez. Posso nunca mais te ver. Desculpa-me.
Homem garboso, ousado, todavia educado. Veio pedir autorização para, ao final do dia, “logo”, me entregar um presente. O desconforto mistura-se com gratidão: que numa cidade desconhecida me sinta em casa, que o meu ser-eu de passagem se resigne à simplicidade dos afetos.

一 Quero dar-te um presente da minha terra. Mereces. Para que não esqueças. Posso?
Mereço? E “logo” é agora. Estou já de saída e, de novo, ele aparece, transpirado, sincero. É a segunda vez no mesmo dia que ele vem à cidade por minha causa, mais de 30 minutos de estrada.

一 Vim da roça de propósito para te entregar. Desculpa ter-me atrasado, tive de pedir a mota emprestada. Não posso ficar muito tempo. Pedi ao meu puto para ir buscar cacau à roça, para ti. E esta escultura fui eu que a fiz. E desculpa, estou envergonhado. Pedi à minha irmã uma saca para a embrulhar e ela pôs o cacau nesta de peixe.

一 Vieste de propósito entregar-me isto, de longe, sem me conheceres. Já te disse e agradeço: não se pede desculpa por genuínos gestos de generosidade e afeto. Eu não sei como te retribuir, sinceramente. Muito Obrigada.

Foram menos de cinco minutos. Despedimo-nos, um beijo no rosto, um olhar grato. Esfumou-se na noite já cerrada. Nunca mais nos vimos. Às vezes, ainda ouço o rumor do mar entre o bananal, quando olho para a escultura de madeira suave e perfeita em forma de peixe na estante dos livros de viagens, como quem relembra uma lição de vida: que há gente a gostar de gente, abnegadamente, só porque sim, com a vida real em perfeita harmonia.

*Crónica publicada no Porto24 a 6 de Janeiro de 2015