sexta-feira, dezembro 31, 2010

Contas



Chega o fim do ano e a Van põe o cérebro para balanço. As contas da vida, com equações insolúveis, até ter percebido que o caminho (cá vai a lógica-cliché) é muito mais importante que a chegada. O vazio está na chegada. Não vale de nada aceleramos o passo, se depois do trajecto não estiver lá ninguém, a não ser um oásis de areia movediça. É tudo o que nos resta, se caminharmos sozinhos, sem as variáveis para o equilíbrio necessário. Aquele que nos faz ter a Árvore da nossa estrutura a viver as necessárias quatro estações para se renovar. Somos natureza. Precisamos ouvir-lhe os silêncios, o ruído subtil das folhas a cair, outras a brotarem, o nu de Outono, a explosão de cor primaverial, a leveza de Verão, e o aconchego que pode ser o Inverno. Rebelde e intempestivo: mas e a lareira quente de um colo, não ajuda? A chuva lá fora, enquanto nos enrolamos na cama, não é som delicioso? O vento furioso a estremecer as árvores não pode ser calma, quando nos abraçam num sofá fofo?

No cálculo sensível dessas contas, se as houver, avaliamos, sempre, um pedaço do que somos. Um exercício de rebobine, como as velhas cassetes. Versão beta de alguma coisa. Isso: um software que ainda se encontra em fase de testes e desenvolvimento. Isso: o meu tempo, em fase aleatória de possibilidades. O cérebro costuma sempre ser generoso. E a Van também, consigo. Eu sei que o fim do ano ainda não chegou (chegou?) , mas pus-me aqui a desfiar os meses, e sucede-me perceber, tal como no passado, que parece sempre que vivi muitas vidas numa só. Chamemos-lhe emoções, para desmistificar. Se as intensificarmos, percebemos que elas nos imprimem contextos e vidas alheias. No fundo é isso. Vivemos vidas alheias, porque saímos de nós, sem que elas sejam de ninguém. Ser alheio não tem, necessariamente, de se transpor para uma pessoa. É porque se desloca de nós, faz-nos ir a lugares desconhecidos. Mesmo que não nos identifiquemos, em amor à primeira vista com aquilo, podemos ir voluntariamente a lugares desconhecidos, sem vivenciarmos a experiência latente, para nos aproximarmos da essência primordial. Gosto disso. Deixa-me perceber o melhor de mim. A pessoa que sou. Este corpo. Este pensamento. Este cérebro. Esta vida. Este sorriso. Este olhar. Este toque. A minha linguagem interna, que muitas vezes parece desprovida de lógica. Demasidas vezes cheia de lirismos, sonhos, aqui-e-agora. Vibração com o já. Ser fiel a mim. Simples!

Steven Pinker explica: “o instinto da linguagem”. Não sou melhor do que ninguém. Mas sou melhor pessoa do que era. E aquilo de que me apercebi foi que a minha linguagem mudou. A de dentro. Tirou densidade. Aproximou-se de mim. É isso, o balanço do ano. Aproximei-me mais de mim. Da fidelidade às pequenas coisas para diminuir angústias que não fazem parte dessa vida. A calculadora pôs a equação com essa variável. E as vidas, ou as emoções, os sentimentos, os afectos com maior intensidade; e um xis para o equilíbrio. A Àrvore.

Tudo o que vivi. Caderno de encargos síntese: amei, gostei, provei, viajei, gargalhei, dancei, sofri, amarguei, ri, como ri, caminhei sozinha e apressada, caminhei de mão dada, caminhei com desconhecidos, amei os amigos, abracei, tive saudades dos meus, tenho, vi vários pores-do-sol, enfeei, e depois fiquei bonita de novo, chorei, muito, sacrifiquei o corpo, fiz-me de sol e mar, enterrei os pés na areia, dormi serena, não dormi, perdi amigos, ganhei outros, dormi abraçada, enlaçada, dormi sozinha percebendo uma nova geografia nos lençóis, fui amada, prometida à vida e ao Amor, equação total, dei, partilhei, entreguei-me, absolvi-me. 


Na verdade, não me arrependo de absolutamente nada, pois recuperei a serenidade e a leveza. Bebam dela, mas não ma queiram aniquilar só porque sorrio. E, mais importante que tudo, a generosidade de mim. Fui feliz, sou feliz. Acredito na intensidade das pessoas, dos afectos, das emoções, das amizades. Acredito na partilha, sem jogos, defesas e cobranças psicológicas. Acredito no pífio momento da solidão para me reencontrar. Acredito no cuidar do outro, natural. E isso nunca será cobrança. Acredito no tempo. No equilíbrio. Nas palavras de lembrança, apreço e carinho, que podem ser colo só para dizer que está tudo bem. Acredito na fidelidade dos sentimentos. Na espontaneidade e nessa cumplicidade do estar perto pelas emoções. Estar perto significa estar disponível. E esforço-me, todos os dias, para não julgar o peso dos outros. Dei amor - apercebo-me que é o que de mais genuíno tenho para dar, em doses inesgotáveis. E aprendo um pouco mais a aceitar os factos e a indisponibilidade dos outros. A intolerância afectiva. Do todo. Do mundo, um pedaço do meu. É que o coração é a víscera mais coordenada deste corpo. Quem o dispensa descarta o mais importante do tempo, o que temos de mais sincero. Versão beta. Que venha, então, esse tal de 2011. Já lhe vejo a cabeça, pela janela. Parece-me maduro, sereno, prometedor e com um bom coração. É o que importa!

sexta-feira, dezembro 17, 2010

O homem que rasgava papéis e sorria ao voar

A rua. Esqueço-me que a rua é uma overdose de histórias, gente e possibilidades de histórias. Há os cheiros. Os nauseabundos. Azedos. E aqueles que não conseguimos qualificar por nos faltar olfacto eficiente que ouse ir mais além do aceitável. Um cheiro dentro de uma galeria de esgoto há-de ser uma hipérbole do nauseabundo, além da nossa capacidade de o qualificar. Depois, há o barulho infernal que me formiga os tímpanos à indiferença de buzinas, vozes, tantas vozes, e me engrena na elipse labiríntica da urbe. Pode ser o princípio activo da letargia, antes da indiferença.

Devo ter recolhido uma dezena de histórias enquanto cruzava a Avenida Rio Branco, antes de passar pela Avenida São João. Da janela do ônibus (ou autocarro, ou transporte coletivo para omnibus: "todos" em latim) essa vitrine, vê-se o filme, o plano sequência, o cinema em directo da vida a acontecer. É uma possibilidade. Um anti-depressivo eficaz: há-de ser, de tão divertido, mas nunca me lembrei de tamanha empreitada nesses dias mensais de TPM.

Paguei $ 2,70 para ver a vida a acontecer, sem que tivesse escolhido o itinerário. O 669-A, Terminal Santo Amaro, entraria na Consolação pelo corredor de ônibus. Dar-me-ia o personagem principal deste filme, pois preguiçosa em anotar todas as possibilidades de histórias, acabei por me esquecer de todas elas.

Ele era um homem que rasgava papéis e sorria ao voar. Simples, assim. Cabelo ralo, magricela, orelhas salientes na cabeça pequena. Sujo, dos pés à cabeça. Farrusco. Calças a dar-lhe pelo tornozelo, muito enrodilhadas na cintura, com um cordão a segurar o ímpeto do deslize fácil delas pela cintura abaixo. A minha avó tinha uma palavra engraçada para qualificar este estilo andarilho: mijona. Sim, era uma espécie de calças à mijona. Muito puxadas para cima, enrugadas, muito apertadas.

Levava um daqueles sacos plásticos no braço e, parado na berma da estrada, no limite do passeio e a vala de esgoto, enquanto os carros aceleravam na Consolação ele sorria. Pôs o pedaço de papel da revista, um quadrado quase perfeito, que cortava as caras das celebridades, ou os números da lotaria, ou os classificados a cores do jornal. Não dava para definir bem de que papel se tratava. Apenas que era colorido. 

Ele rasgava com uma estratégia: fazia pequenas investidas como se o papel tivesse linguetas, e em fila, ia rasgando, rasgando, rasgando. Rasgava com prazer. Um prazer que não terá durado mais do que cinco segundos. Rasgava e via os papéis voarem, em linguetas, pela corrente de ar que os carros faziam ao passar. Ele rasgava e sorria. Rasgava e sorria. Até que o papel final deu uma chicoteada no ar. Voou diferente. Arrancando-lhe um sorriso diferente. Mais gracioso e terno. Sorriu a encolher os ombros, despreocupado com o que os que passavam pudessem pensar. Não lhes ligava peva. Ensaiou uma dança com os ombros e sorria, enquanto os papéis ainda serpenteavam à deriva coloridos no ar. Pelo rosto alheio e fundido naquele movimento de tempo suspenso, ele há-de ter voado também com aquela lingueta final. 

sexta-feira, dezembro 10, 2010

Jiu Jitsu

Andei a fazer algo parecido nos últimos dias para justificar o peso do kimono na mala do Alfredo, que cruzou o Atlântico com uma farda marcial. Saldam-se algumas nódoas negras, depois de duas horas e meia de treino e uma frase: "Esta miúda tem raça"... (Os amigos foram menos benevolentes e usaram termos como: "-És louca") Sou jiu-jitsu desde pequenina...

...rotações...

Acho que o disco encravou...

quinta-feira, dezembro 02, 2010

...

A saudade é uma palavra traiçoeira. Tirana arraigada, biológica, física...Mas não a podemos impor a ninguém. Está aqui, continua, tirana arraigada... Mas não a posso impor a ti...E, sim, se to dissesse era isso: saudades...