sexta-feira, dezembro 31, 2010

Contas



Chega o fim do ano e a Van põe o cérebro para balanço. As contas da vida, com equações insolúveis, até ter percebido que o caminho (cá vai a lógica-cliché) é muito mais importante que a chegada. O vazio está na chegada. Não vale de nada aceleramos o passo, se depois do trajecto não estiver lá ninguém, a não ser um oásis de areia movediça. É tudo o que nos resta, se caminharmos sozinhos, sem as variáveis para o equilíbrio necessário. Aquele que nos faz ter a Árvore da nossa estrutura a viver as necessárias quatro estações para se renovar. Somos natureza. Precisamos ouvir-lhe os silêncios, o ruído subtil das folhas a cair, outras a brotarem, o nu de Outono, a explosão de cor primaverial, a leveza de Verão, e o aconchego que pode ser o Inverno. Rebelde e intempestivo: mas e a lareira quente de um colo, não ajuda? A chuva lá fora, enquanto nos enrolamos na cama, não é som delicioso? O vento furioso a estremecer as árvores não pode ser calma, quando nos abraçam num sofá fofo?

No cálculo sensível dessas contas, se as houver, avaliamos, sempre, um pedaço do que somos. Um exercício de rebobine, como as velhas cassetes. Versão beta de alguma coisa. Isso: um software que ainda se encontra em fase de testes e desenvolvimento. Isso: o meu tempo, em fase aleatória de possibilidades. O cérebro costuma sempre ser generoso. E a Van também, consigo. Eu sei que o fim do ano ainda não chegou (chegou?) , mas pus-me aqui a desfiar os meses, e sucede-me perceber, tal como no passado, que parece sempre que vivi muitas vidas numa só. Chamemos-lhe emoções, para desmistificar. Se as intensificarmos, percebemos que elas nos imprimem contextos e vidas alheias. No fundo é isso. Vivemos vidas alheias, porque saímos de nós, sem que elas sejam de ninguém. Ser alheio não tem, necessariamente, de se transpor para uma pessoa. É porque se desloca de nós, faz-nos ir a lugares desconhecidos. Mesmo que não nos identifiquemos, em amor à primeira vista com aquilo, podemos ir voluntariamente a lugares desconhecidos, sem vivenciarmos a experiência latente, para nos aproximarmos da essência primordial. Gosto disso. Deixa-me perceber o melhor de mim. A pessoa que sou. Este corpo. Este pensamento. Este cérebro. Esta vida. Este sorriso. Este olhar. Este toque. A minha linguagem interna, que muitas vezes parece desprovida de lógica. Demasidas vezes cheia de lirismos, sonhos, aqui-e-agora. Vibração com o já. Ser fiel a mim. Simples!

Steven Pinker explica: “o instinto da linguagem”. Não sou melhor do que ninguém. Mas sou melhor pessoa do que era. E aquilo de que me apercebi foi que a minha linguagem mudou. A de dentro. Tirou densidade. Aproximou-se de mim. É isso, o balanço do ano. Aproximei-me mais de mim. Da fidelidade às pequenas coisas para diminuir angústias que não fazem parte dessa vida. A calculadora pôs a equação com essa variável. E as vidas, ou as emoções, os sentimentos, os afectos com maior intensidade; e um xis para o equilíbrio. A Àrvore.

Tudo o que vivi. Caderno de encargos síntese: amei, gostei, provei, viajei, gargalhei, dancei, sofri, amarguei, ri, como ri, caminhei sozinha e apressada, caminhei de mão dada, caminhei com desconhecidos, amei os amigos, abracei, tive saudades dos meus, tenho, vi vários pores-do-sol, enfeei, e depois fiquei bonita de novo, chorei, muito, sacrifiquei o corpo, fiz-me de sol e mar, enterrei os pés na areia, dormi serena, não dormi, perdi amigos, ganhei outros, dormi abraçada, enlaçada, dormi sozinha percebendo uma nova geografia nos lençóis, fui amada, prometida à vida e ao Amor, equação total, dei, partilhei, entreguei-me, absolvi-me. 


Na verdade, não me arrependo de absolutamente nada, pois recuperei a serenidade e a leveza. Bebam dela, mas não ma queiram aniquilar só porque sorrio. E, mais importante que tudo, a generosidade de mim. Fui feliz, sou feliz. Acredito na intensidade das pessoas, dos afectos, das emoções, das amizades. Acredito na partilha, sem jogos, defesas e cobranças psicológicas. Acredito no pífio momento da solidão para me reencontrar. Acredito no cuidar do outro, natural. E isso nunca será cobrança. Acredito no tempo. No equilíbrio. Nas palavras de lembrança, apreço e carinho, que podem ser colo só para dizer que está tudo bem. Acredito na fidelidade dos sentimentos. Na espontaneidade e nessa cumplicidade do estar perto pelas emoções. Estar perto significa estar disponível. E esforço-me, todos os dias, para não julgar o peso dos outros. Dei amor - apercebo-me que é o que de mais genuíno tenho para dar, em doses inesgotáveis. E aprendo um pouco mais a aceitar os factos e a indisponibilidade dos outros. A intolerância afectiva. Do todo. Do mundo, um pedaço do meu. É que o coração é a víscera mais coordenada deste corpo. Quem o dispensa descarta o mais importante do tempo, o que temos de mais sincero. Versão beta. Que venha, então, esse tal de 2011. Já lhe vejo a cabeça, pela janela. Parece-me maduro, sereno, prometedor e com um bom coração. É o que importa!

sexta-feira, dezembro 17, 2010

O homem que rasgava papéis e sorria ao voar

A rua. Esqueço-me que a rua é uma overdose de histórias, gente e possibilidades de histórias. Há os cheiros. Os nauseabundos. Azedos. E aqueles que não conseguimos qualificar por nos faltar olfacto eficiente que ouse ir mais além do aceitável. Um cheiro dentro de uma galeria de esgoto há-de ser uma hipérbole do nauseabundo, além da nossa capacidade de o qualificar. Depois, há o barulho infernal que me formiga os tímpanos à indiferença de buzinas, vozes, tantas vozes, e me engrena na elipse labiríntica da urbe. Pode ser o princípio activo da letargia, antes da indiferença.

Devo ter recolhido uma dezena de histórias enquanto cruzava a Avenida Rio Branco, antes de passar pela Avenida São João. Da janela do ônibus (ou autocarro, ou transporte coletivo para omnibus: "todos" em latim) essa vitrine, vê-se o filme, o plano sequência, o cinema em directo da vida a acontecer. É uma possibilidade. Um anti-depressivo eficaz: há-de ser, de tão divertido, mas nunca me lembrei de tamanha empreitada nesses dias mensais de TPM.

Paguei $ 2,70 para ver a vida a acontecer, sem que tivesse escolhido o itinerário. O 669-A, Terminal Santo Amaro, entraria na Consolação pelo corredor de ônibus. Dar-me-ia o personagem principal deste filme, pois preguiçosa em anotar todas as possibilidades de histórias, acabei por me esquecer de todas elas.

Ele era um homem que rasgava papéis e sorria ao voar. Simples, assim. Cabelo ralo, magricela, orelhas salientes na cabeça pequena. Sujo, dos pés à cabeça. Farrusco. Calças a dar-lhe pelo tornozelo, muito enrodilhadas na cintura, com um cordão a segurar o ímpeto do deslize fácil delas pela cintura abaixo. A minha avó tinha uma palavra engraçada para qualificar este estilo andarilho: mijona. Sim, era uma espécie de calças à mijona. Muito puxadas para cima, enrugadas, muito apertadas.

Levava um daqueles sacos plásticos no braço e, parado na berma da estrada, no limite do passeio e a vala de esgoto, enquanto os carros aceleravam na Consolação ele sorria. Pôs o pedaço de papel da revista, um quadrado quase perfeito, que cortava as caras das celebridades, ou os números da lotaria, ou os classificados a cores do jornal. Não dava para definir bem de que papel se tratava. Apenas que era colorido. 

Ele rasgava com uma estratégia: fazia pequenas investidas como se o papel tivesse linguetas, e em fila, ia rasgando, rasgando, rasgando. Rasgava com prazer. Um prazer que não terá durado mais do que cinco segundos. Rasgava e via os papéis voarem, em linguetas, pela corrente de ar que os carros faziam ao passar. Ele rasgava e sorria. Rasgava e sorria. Até que o papel final deu uma chicoteada no ar. Voou diferente. Arrancando-lhe um sorriso diferente. Mais gracioso e terno. Sorriu a encolher os ombros, despreocupado com o que os que passavam pudessem pensar. Não lhes ligava peva. Ensaiou uma dança com os ombros e sorria, enquanto os papéis ainda serpenteavam à deriva coloridos no ar. Pelo rosto alheio e fundido naquele movimento de tempo suspenso, ele há-de ter voado também com aquela lingueta final. 

sexta-feira, dezembro 10, 2010

Jiu Jitsu

Andei a fazer algo parecido nos últimos dias para justificar o peso do kimono na mala do Alfredo, que cruzou o Atlântico com uma farda marcial. Saldam-se algumas nódoas negras, depois de duas horas e meia de treino e uma frase: "Esta miúda tem raça"... (Os amigos foram menos benevolentes e usaram termos como: "-És louca") Sou jiu-jitsu desde pequenina...

...rotações...

Acho que o disco encravou...

quinta-feira, dezembro 02, 2010

...

A saudade é uma palavra traiçoeira. Tirana arraigada, biológica, física...Mas não a podemos impor a ninguém. Está aqui, continua, tirana arraigada... Mas não a posso impor a ti...E, sim, se to dissesse era isso: saudades...

terça-feira, novembro 30, 2010

A dança dos Pássaros II

Parece quase ironia do destino que o segundo post deste blogue, após um profundo silêncio, tenha precisamente o mesmo título que o anterior. Posso, no entanto, dar-vos outra música. A das alvoradas na calçada do Rio de Janeiro. Com dança de pássaros. 

Era quase manhã. Aquela luz tímida como quem espreita por trás das nuvens, mas ainda ganha vida, um pouco preguiçosa, enchendo o peito de coragem para acordar de vez. Eu estava bem desperta. Ainda não tinha ido à cama. E resolvera caminhar do Leblon ao Arpoador. Resolvi pôr o Ipod nos ouvidos e havia já tanta gente a caminhar por ali antes que a luz deixasse de ser preguiçosa e pintasse com viço o azul-céu-límpido pincelado por mãos invísiveis, ou lá quem se encarregue de pintar amanheceres assim. 

Esperei pelo lugar ideal para me sentar na areia e descalçar as sandálias, e que terá sido já no fim de Ipanema a querer ser Arpoador, antes de virar Copacabana. Galguei a areia lentamente. Já ouvira não sei quantas músicas, e o nascer do dia estava já menos preguiçoso, de olhos despertos, mas como quem ainda se enrodisca nos lençóis antes do impulso que nos arranque da cama. Como eu. Não saio dela de rompante. Fico sempre a namorar o cheiro da noite embalada e o quente da almofada que sabe mais segredos do que eu. 

Sentei-me. Havia uma pequena duna que me separava de um laguinho formado pela investida nocturna do mar. Essa imensidão era um verde irrepreensível, límpido, matizado ao fundo de azul-claro. Mais além, um cobalto enganador pela profundidade de campo da cor que o olho nu não alcança. Apenas a silhueta das três ilhas que nunca me lembro de lhes deslindar, finalmente, o nome. Por afinidade, chamamos-lhes as Berlengas cariocas. 

Havia a espuma, escorreita, liquefeita na areia final, cor-camel. Um pouco mais clara nos meus pés que se enterravam. Até que começou o espectáculo. Estava na primeira fila. Um espectáculo só para mim, gratuito. Trazido pela Alvorada. Do lado direito, ao fundo, a silhueta dos morros, com nuvens baixas a afagar as laterais montanhosas. Do lado esquerdo, o sol a espreitar numa aberta de nuvens. Em baixo, a pedra do Arpoador (sofá de pôres-do-sol incríveis!). Esta cor ténue de dia ainda a alvorecer preguiçoso. 

E a dança dos pássaros. Disse-o: o meu ipod estava nos meus ouvidos. O que significa que só eu ouvia. E só eu via aquilo que começou no céu. Foram os olhos que me levaram até lá quando ergui o pescoço para ver mais alto. Podia jurar que as gaivotas, às centenas, apercebi-me, dançavam só para mim a mesma música que ouvia: "The Astounding Eyes of Rita" de Anouar Brahem, Klaus Gesing, Björn Meyer & Khaled Yassine. Centenas rodopiavam em redemoinho celeste como se dissessem que são apaixonadas entre si, abnegadamente. Um valsa marítima que só os privilegiados da aurora têm. Aquela valsa no céu não esquecerei nunca. Aquelas cores. Aquela vida. O amor, talvez, devesse ser assim: uma longa e lenta Alvorada com dança de pássaros.

sexta-feira, novembro 12, 2010

porque a vida é uma dança de pássaros

Hilda, o Amor


Até disseste uma vez que querias ser agarrada. Um homem que te agarre como deve de ser. Não com a força de uns braços rijos, como dizia a Leila

-Um cara tem de ter pegada, assim você sabe se é homem de verdade -

mas com o Amor. Que te desse a volta à órbita pessoal e estivesse disposto a tratar-te como uma deusa. Que esteja ali, presente, a conquistar-te nas mais pequenas coisas e, sem que te apercebesses, já estavas para lá do muro do Olimpo. A responder à dívida abnegada. A responder no mesmo fio invisível do dois. Ah, até pensavas que me tinha desgastado da palavra Amor? Que, por isso, a coisa poderia ficar ridícula ao usá-la? Tu, a mulher das cartomâncias e das palavras justas para cada episódio da novela pessoal? Assim, ficas a saber que não há nada que seja ridículo no Amor, Hilda. É genuíno, e no genuíno até podemos ser um pouco ridículos - se achas que a palavra se ajusta - mas não nos podemos queixar de não estarmos a viver e a agarrar o oxigénio com todo o fôlego. É um gerúndio, enquanto dure. Sabes, quando se agarra o oxigênio com todo o fôlego tudo acaba por fazer mais sentido, do que estarmos a lamuriarmo-nos por coisas que nunca aconteceram, nunca vão suceder, ou que poderíamos ter feito. Um paliativo para nos expiarmos.

Queremos a absolvição do que não fazemos, procurando um bode expiatório que nos deixe mais sossegados, porque, porra, dá trabalho ser feliz. Dá trabalho amar. Dá menos trabalho lamentarmo-nos e sermos infelizes. Sobretudo sozinhos. Queixamo-nos, é certo, e tornamos-nos azedos e fazemo-nos mal porque não sabemos o limite (e que tropeçar é normal, mas melhor é aprendermos a levantarmo-nos do chão como profissionais da queda: com sorte tornamo-nos gatos no malho) só porque dá muito trabalho esquecermos todas as diferenças dos outros para vivermos junto; e o orgulho é um cabrão de um mau conselheiro. Deixa-nos sempre no buraco. Para de lá sairmos precisamos quase que nos cavem. 

Haverá alguém disposto a cavar-nos? Não Hilda: tens de esgravatar com as unhas e, por vezes, podes não conseguir de lá sair. Lembras-te da última vez? Terra cor-de-cobre, fofa e por isso revolvida de tantas mãos e dedos, que acabou por se condensar. E tu não conseguias sair de lá. Gritavas, gritavas, mas ninguém te ouvia. Achas que alguém ouve as dores do amor?

Quando disseste que querias ser agarrada era isso que querias dizer: que te levem ao delírio do amar, e que te faça sentir as picadas quentes dos olhos a fechar, porque não se aguenta tanto afecto de olhos abertos. É preciso fechá-los para que os outros sentidos comecem a ter trabalho. Foi aí que me disseste o que ele te disse. Mesmo depois de tantos anos, a cumplicidade está lá, percebeste, nas mesmas pequenas coisas. Mesmo separados, o tempo entre vós não passou. Podem viver separados, sim, até podem, não pensar um no outro, como o fizeram, como o fazem, mas, quando se aproximam, tudo volta, e com isso a cumplicidade. Talvez o amor seja isso, Hilda, não achas? Vá, deves saber! Talvez a cumplicidade seja mesmo isso, não há tempo que lhes desgaste as molas e as dobradiças que os enrosca, mesmo que só oleadas no instante do reencontro. Não foi só isso. Deixaste para o fim o melhor que ele te disse: 

- Tenho saudades de te aquecer o corpo e afagar a alma. Sossegarias, como sempre sossegaste. Perdoa-me!

Ainda lhe respondeste Hilda com um silêncio. Sorriste.

-Deixavamo-nos estar pelo céu um tempo.

Muda, pensavas que ele tinha razão e que, no fundo, não havia nada a perdoar. Vês Hilda, alguém que te agarrasse.   

quinta-feira, novembro 11, 2010

A banda, o Saramago, e a Vanessa...Sim a vaidade, que seja, é para isso que ela serve!

Não entendo por que razão a malta que esteve presente na entrega do Prémio Literário Portugal Telecom ainda não se tinha lembrado de pôr este post da "Banda"... De qualquer maneira, tive o privilégio de ter o Chico Buarque na plateia enquanto eu aparecia na tela no documentário "José e Pilar". Acho que é caso para resgatar um momento pessoal Andy Warhol - não foram 15 minutos, mas vá lá os meus 5 segundos de fama... Saravá! P.S. Depois das mensagens recebidas já tinha direito ao meu momento mete-nojo! E para que conste: o Chico só não me pediu um autógrafo porque eu não falei com a imprensa (É um caso de fina ironia!!!!)




domingo, novembro 07, 2010

O mundo à porta de casa

Podemos sempre ter o mundo à porta de casa e não o percebermos de imediato. Acontece-me, frequentemente, achar que o Porto está mais cosmopolita do que nunca, e que o mundo, as pessoas, as etnias, as línguas, a multiculturalidade, nunca tiveram tanta identidade, e nunca estiveram tão dispersos, como nunca. É o meu lugar de referência, apenas, um pedaço dessa ideia de que o mundo está nos passeios das ruas, basta olharmos com atenção. A ser verdade, a meu ver, ao meu olhar, o mundo está em todas as cidades, em pequenas aldeias, porque somos gente que sofre da mesma maneira. 

Mas é um erro comum e pessoal de contemporaneidade. Não podemos analisar a contemporaneidade fazendo parte dela assim, com esta efervescência como pastilha de Vitamina C que tomamos para ver se a gripe vai (foi o que fiz hoje de manhã, daí a pertinência da palavra). Ou seja, é um erro porque as temporalidades dão pequenos saltos, mas os problemas, as dúvidas, as preocupações são demasiado semelhantes – e com eles as contemporaneidades. Então, ocorre-me que, ciclicamente, o mundo, a vida, o dia-a-dia, as pessoas (e não são necessariamente a mesma coisa) pelo movimento inevitável do fluxo da gente de um lado para o outro, são homens e mulheres sem fronteiras e estiveram desde sempre, desde o boom para seres que respiram e tomam vitamina C efervescente, com o mundo à porta de casa. 

Então, os elementos mínimos de nós, gente, passam sempre à nossa porta: judeus, brasileiros, portugueses, franceses, muçulmanos, libaneses, rock-billies, imitações de Elvis Presley, Emos, Hello Kities, punks, espanhóis, nordestinos, católicos, evangélicos, swingers, vegetarianos, zen budistas, cabalistas, sportinguistas, boavisteiros, actores, actrizes, jornalistas, jornaleiros, homens-do-lixo, moradores de rua, loucos, taxistas... 

Às vezes, penso nisto, e volto a esquecer-me. Como alguém já se deve ter esquecido por mim, noutra contemporaneidade. Relembro-me de cada vez que faço o trajecto inevitável da Avenida Paulista até à porta de casa e me detenho no já ritual cliché, entre amigos, para explicar onde moro, e para explicar a Rua Augusta, como síntese de São Paulo e, no fim das contas, como metáfora sobre o Brasil e da co-existência das raças, tribos, ou lá o que isso seja. O ritual para chegar a casa, paredes-meias num perímetro de 100 metros é este: primeiro passo a Igreja Evangélica, depois o Vegetariano, Cinesesc (sala de de bom cinema alternativo), o bar de swing Nefertiti....e eis a entrada do prédio onde moro. 

Sucedeu que hoje apercebi-me que, no fim das costas, somos todos o mundo, e estamos todos à porta uns dos outros da mesma forma, porque somos todos gente com dúvidas, a tentar encontrar a melhor forma de passar por esta vida como se ela fosse um pouco a nossa casa.  

terça-feira, novembro 02, 2010

Dizem que a forma como escrevemos tem muito a ver com a forma como sentimos. Com a forma como olhamos. Com a forma como caminhamos. Eu sou um bocado sôfrega-contemplativa. Tem dias! E tem dias em que não vejo, faço por não sentir nada, não olhar nada. Só caminhar, para que a janela da cabeça se abra. Caminhar. E, mesmo que não queira, com tanta a gente a roçar o mesmo ar que respiro, lado a lado, eu invento uma outra forma de sentir, ver, olhar. Não invento, faço de conta, para ser rigorosa. Esforço-me mais um bocado para tentar lá chegar.

Sinto, então, o que está dentro da caixinha do pensamento. Transporto-me para lá e tudo ao redor se torna alheio, a não ser que aconteça alguma coisa de maior, que me obrigue a sentir, a ver e a olhar, saindo da caixa da cabeça, para a caixa do que acontece, e onde estou na primeira fila, como fã atenta da minha vida. Nem sempre escrevo o que realmente vejo. A auto-censura silenciosa é uma coisa lixada. A auto-censura insconsciente, uma tirana, é uma coisa obnóxia. Um homenzinho que esfrega as mãos, arregala os olhos e dá uma daquelas risadinhas, em falsete, com os dentes arreganhados. Já estou ouvi-lo, admito. É como quem diz: 
- Já te estou a cortar detalhes das mensagens subliminares que não vês, não sentes e nem porás nunca os olhos em cima. Caminha lá, então!

Eu caminho, vou. A caixinha está lá. Quando quero voltar a ver o que, realmente, acontece à minha volta, penso que tenho de escrever aquilo tudo, tão sôfrego-contemplativo. Chego a casa, sento-me e deve ser defeito de ter estado na primeira fila como fã do filme da minha vida, mas em fast-forward. É um filme de uma vida inteira. Não podemos nunca lá voltar, com rigor. Não consigo transcrever um frame do que vi, senti, olhei. Caminho, portanto. Contento-me em caminhar...  

terça-feira, outubro 26, 2010

sexta-feira, outubro 22, 2010

terça-feira, outubro 19, 2010

O meu novo flirt chama-se...

Obrigada A.

FALA COM ELA - RADAR

"Tudo o que ela não teve coragem de dizer, pintou-o..."

Entrevista com Paula Rego



Taxar o Amor 
(Sinais: Fernando Alves, TSF)

quinta-feira, outubro 14, 2010

Por falar em Tropa de Elite 2






























© Vanessa Rodrigues
Rio de Janeiro

quarta-feira, outubro 13, 2010

O mundo, em imagens

Revista Digital de Fotografia Documental 7.7

Traz 5 ensaios fotográficos 1. sobre um culto sexual chamado os Kaotians na Austrália;
2. Comunidades remotas na Califórnia atrasadas pela Depressão de 30;
3. Os palestinianos;
4. Selecção de Illinois de cadeira de rodas;
5. Selva peruana

terça-feira, outubro 12, 2010

TROPA DE ELITE 2

Está a preparar-se para ir ver de novo este TROPA DE ELITE 2 porque é muito bom. Inteligente, com punho cerrado de vários socos no estômago. Um sistema polvilhado a estilhaços de feridas crónicas e seus tentáculos onde a palavra violência é só um eufemismo. Um aprendiz de eufemismo!

segunda-feira, outubro 11, 2010

Mesinha-de-cabeceira

A Louca Lucidez!

Homem Ultra Mud.Erno [15]

É ditirâmbico...

Apologia dos Sobreviventes e o início de um inferno implacável para fugitivos

De imagem inalcançável, suspensa, longe, detida na linha imaginária. A parede pintada descascada. A janela aberta, trespassada de vento, areia, silêncios. Ela, sentada na cadeira de plástico de alpendre, lê “A invenção de Morel” de Adolfo Bioy Casares. 


Descansa as pernas na outra cadeira de plástico, onde lhe repousa o mundo. Todo o mundo está naquelas pernas, com a quilometragem do que viveu em caminhadas, ainda que nem sempre as tenha movido de si para as percorrer. Silencia-se. Há a janela. Se estivesse numa deserta ilha poderia estar mais consigo do que quando a ilha em si se desertifica. Seca. Nunca seca. Muda-se. Que ilha é agora, não saberíamos dizer. Quantas ilhas pode ser um homem, não saberemos nunca.

Repousa o livro na mão direita, agarrando as páginas amareladas com o polegar. Mantém a abertura com a mão esquerda, mais solta. E, talvez, menos vivida. Uma mão que é menos usada, não pode ter vivido mais, mas com certeza poderá afagar a outra quando se sentir cansada. A vida é, raramente, ambidextra. Raramente. O fio ténue do balanço exacto não é fórmula que se saiba decifrar. 

Leu o prefácio de Borges. Cansou-se. Leria sobre Casares depois, no final, quando já tivesse tirado as ilações pessoais, para poder ler o que os outros escrevem sobre outros e que, por mais brilhantes que sejam, não deixam de nos turvar os sentidos. Lia em inglês, pensava em inglês, mas não sabemos no que se transformou depois o pensamento. Leu isto e deteve-se a olhar a imagem inalcançável, turvada, pela garoa do fim da manhã.

I am writing this to leave a record of the adverse miracle. If I am not drowned or killed trying to escape in the next few days, I hope to write two books. I shall entitle them Apology for Survivors and Tribute to Malthus. My books will expose the men who violate the sanctity of forests and deserts; I intend to show that the world is an implacable hell for fugitives, that its efficient police forces, its documents, newspaper, radio broadcasters, an border patrols have made every error of justice irreparable”.





segunda-feira, outubro 04, 2010

Uma Favela#

O destino, ou Zadig

“O grande mago começou por propor esta pergunta: ‘Qual é de todas as coisas do mundo a mais longa e a mais curta, a mais rápida e a mais lenta, a mais divisível e extensa, a mais desdenhada e lamentada, sem a qual nada se pode fazer, que devora tudo o que é pequeno e vivifica tudo o que é grande?’ (…)
Uns disseram que a chave do enigma era a fortuna, outros a terra e outros a luz. Zadig respondeu que era o tempo.
- Não há nada mais longo, acrescentou, pois ele é a medida da eternidade; nada é mais curto, pois ele falta a todos os nossos projetos; nada é mais lento para quem espera, nem mais rápido para quem goza; estende-se até o infinito em grandeza, divide-se até o infinito em pequenez; todos os homens o desdenham e todos lamentam a sua perda; nada se faz sem ele; faz esquecer tudo o que é indigno de posteridade e imortaliza os grandes feitos.
A assistência admitiu que Zadig tinha razão.”


Zadig, conto filosófico de Voltaire

domingo, outubro 03, 2010

Toda a coincidência será a verdade

Passei a tarde no hospital. A dor de ouvido não passa, piorou, a garganta está cúmplice das ligações enfermas de otorrinolaringologia pessoal, e a febre tomou conta deste corpo. Com a espécie de folga que me saiu na rifa durante a tarde de hoje, fui até ao Hospital das Clínicas, a arrastar este corpo de metro, chuva e frio, rabugenta por ter de passar o que me resta de descanso numa sala cinzenta de hospital, sozinha. Eu própria não estava com melhor cor. Duvido se estaria no mundo dos vivos. A língua agarrou-se à geografia da febre e os meus olhos vermelhos não enganam o mais desprevenido dos médicos.

-A senhorita tem dormido bem? (Não, claro que não, não se nota?)

Devo ter esperado umas três horas até ser atendida. Sentei-me, abri o livro e ouviu-se:

-"Você pode calar a boca. Desde que aqui cheguei você não parou de falar. Cale-se, Cale-se, Cale-se".

As palavras ecoaram na sala quase vazia onde esperei por quase três horas. Estes foram, talvez, os centésimos de tempo mais animados naquela sala cinzenta. Olhei de esguelha: vi uma mulher a levar soro, envergando uma bata de médica. A enfermeira que ela mandava calar saiu da sala e mandou o recado para alguém:

-"Você se importa de ir ver o que se passa com a médica lôquinha? Ninguém merece".

Tirei o meu olhar de esguelha, enquanto a médica "lôquinha" já me fitava.

Olhei para a capa do meu livro e não tive certeza se não seria tudo fruto de uma alucinação pessoal, imposta pela doença, e aquilo não passava de um filme imaginário que o meu cérebro me infligia: "Diário do Hospício" e "O Cemitério dos Mortos" de Lima Barreto. Foi este o livro que atirei para a bolsa antes de sair de casa, como paliativo para a espera que já sabia sair-me na bola de cristal desta tarde modorrenta. Foi este o livro que folheei e deitei os olhos vermelhos, enquanto esperava - e o ouvido latejava, e a febre arrepiava o corpo.

Então, pensei que tudo isto era um sonho. Outro. Ou um pesadelo, que é um sonho mais pesado. Depois de quase três horas ouvi o meu nome ser pronunciado no corredor, ecoando.

-Diagnóstico: Está com uma infecção viral no ouvido e na garganta, por isso a febre. Muitos líquidos, anti-inflamatório, e descanso.

Não consegui discernir se era verdade ou mentira o que ouvia. Outra alucinação? Mas só sei que o pesadelo começa aqui. Descanso: só depois de segunda de manhã. Vou dormir, a ver se a dor passa, para amanhã fingir que estou bem, que nada se passa e que a minha voz estará maravilhosa e, quem sabe, os olhos menos vermelhos. Quem sabe poderei fingir que tenho outra carcaça, ou que outra Vanessa, sem dor, habita aqui.

terça-feira, setembro 28, 2010

segunda-feira, setembro 27, 2010

"O tempo, medida do movimento"



"Queres que eu aprove a quem diz que o tempo é o movimento de um corpo? Não, não aprovo. Sei que não há corpo que não se mova no tempo: tu mesmo o afirmas. Mas não acredito que o movimento de um corpo seja o tempo; isso nunca ouvi, e nem tu o dizes.


Quando um corpo se move, sirvo-me do tempo para medir a duração de seu movimento do começo ao fim. Se não vejo o começo, e percebo seu movimento sem ver seu fim, só posso medi-lo do momento em que observo o corpo mover-se até o momento em que já não o vejo.

Se o vejo por muito tempo, apenas posso afirmar que a duração de seu movimento é longa, mas não posso dizer quanto é longa, porque só determinamos o valor de uma duração comparando-a. Dizemos, por exemplo: “isso durou tanto quanto aquilo, ou essa duração é o dobro daquela”, semelhantes. Se podemos notar o ponto do espaço onde se inicia um movimento, e o ponto de chegada, ou suas partes, seele se movesse em círculo, poderíamos dizer quanto tempo levou para ir de um ponto a outro o movimento do corpo ou dessas partes.

Assim, o movimento de um corpo é diferente da medida de sua duração; que não vê, pois, a qual dessas coisas se deve chamar de tempo? Se um corpo se move de forma irregular, e outras vezes se detém, ora, é o tempo que nos permite medir, não apenas seu movimento, mas também seu repouso, e afirmar: “Ficou em repouso por tanto tempo quanto em movimento – ou qualquer outro intervalo que tenhamos calculado ou estimado aproximadamente”. O tempo não é pois a mesma coisa que o movimento."

"Confissões", Santo Agostinho
A Primavera chegou tímida a este lado de cá, o Outono do outro lado de lá. As estações recomeçam e chegam para nos relembrar. Chove, ainda chove. A lua: fase minguante convexo. Talvez esteja cheia. Talvez haja silêncio.

Poema que aconteceu - Carlos Drummond de Andrade


"Nenhum desejo neste domingo 

nenhum problema nesta vida
o mundo parou de repente
os homens ficaram calados
domingo sem fim nem começo.
A mão que escreve este poema
não sabe o que está escrevendo
mas é possível que se soubesse
nem ligasse."

Carlos Drummond de Andrade (Itabira do Mato Dentro, Minas Gerais, 31 de outubro de 1902 - Rio de Janeiro, 17 de agosto de 1987) - Considerado um dos maiores poetas brasileiros, autor de uma vasta obra poética, que também inclui contos e crônicas. Morou no Rio de Janeiro a maior parte de sua vida, onde, foi funcionário público. Foi traduzidos para vários idiomas e é uma referência na poesia brasileira. Nesta semana, poemas do seu primeiro livro Alguma Poesia - 80 anos da sua primeira publicação.

sábado, setembro 25, 2010

mais um anexo do cérebro

A Revista Literária "The Paris Review" disponibiliza arquivo de entrevistas com escritores, dos últimos 50 anos...

terça-feira, setembro 21, 2010

sexta-feira, setembro 17, 2010

inquilino

Somos inquilinos de nós e, às vezes, pagamos um aluguer demasiado alto pelo uso deste corpo.

terça-feira, setembro 07, 2010

Para que serve o horário eleitoral: os tais (medíocres) 15m de fama

A mulher do padre fala por ele. “Política abençoada, começa em casa. Por isso eu, Mara Maravilha, conto com o seu voto para o meu esposo servo de deus”. Diz que o marido, puro evangélico, não bebe, não fuma, é um bom homem. Ele não fala, sorri, só sorri, e mais não se diz, para manter a compostura, embora, lá no fundo, já se a tenha perdido. Afinal, por trás de um grande homem, sabemos, está uma grande mulher. E por detrás de uma grande mulher, quanto mais não seja a avaliar pelo tamanho do silicone peitoral da miúda pode, também, estar uma pêra. Isso mesmo, leram bem: uma pêra. (E não nos estamos a referir ao formato da mama: isto é sério, muito sério). “Sou a mulher Pêra. 1911 para deputada Federal”. Outra colheita.

E como a política precisa de fruta, de muita fruta, já não bastavam os “laranjas” da corrupção no senado (perguntem ao Renan Calheiros do PMDB), a Pêra, convenhamos, pode ser um bom partido, até porque, é a produção frutífera com menos expressão no Brasil. Precisa ser incentivada, portanto. Só que em matéria de fruta a coisa engrandece, fica mais dura e chega a ter pevides: a "Mulher Melão" é candidata a deputada estadual no Rio de Janeiro. O silicone foi generoso. O programa eleitoral nem por isso: se ele existisse. Há ainda a Mulher Melancia, mas era fruta a mais. Não se candidatou.

Menos doce e sexy, Luciana Costa parece um bulldog a rosnar palavras, enraivecida : “combato drogas e pe-dó-fi-li-a, Paz na Família e quem me ensinou foi o Éneas; Deputada Federal, 2252”. Acho que aqui levamos um susto, dos grandes, não percebemos se com toda esta agressividade ela nos quer dar um raspanete (onde raio está o comando da TV para mudarmos de canal?). E o Éneias, meus caros, é um senhor de barba displicente (juízo meu), com óculos fundo de garrafa, que abana o "corpixo" para a esquerda-e-para-a-direita sempre que repete o número eleitoral seguido de um objectivo: “1956 é trabalho”, e por aí vai. Mas o melhor da paródia (e olhem que isto é muito a sério) é o “Tiririca, pior que tá não fica”. A coisa aqui fica preta, ou melhor amarela, pois o sorriso inicial que se esboça ao ver aquele homem (?) vestido de palhaço (se não é, parece: outro juízo meu) a repetir um-pior-que-tá-não-fica é matizado com as nuances da gema de ovo.

A coisa piora aqui, enquanto abana o cabelito loiro: “Sou candidato a deputado federal. E o que faz um deputador federal? Na realidade, eu não sei. Mas vote em mim que eu te conto”. Não sabemos bem, se é caso para rir, ou chorar. Talvez seja o caso para ele se aconselhar com Ronaldo Esper que quer “agulhar os políticos para mudar Brasília” Vamos lá: "rewind" no vídeo. Enquanto ele diz “a-gu-lhar" levanta as mãozinhas em forma de garra como se fizesse um show de dragqueen. (Falta o “rowwww! Ficaríamos mais felizes com o rowwww felino")” E não percebemos muito bem onde ele quer chegar com aqueles óculos de sol de armação bordô e um duvidoso fato castanho, ornado com uma não menos dúbia gravata-puída. Será ele fã do Crepúsculo? Os vampiros também anda aqui?

Andam, sempre andam de outra forma. Numa forma mais Zeca Afonso. E a política brasileira também é isto: as figuras da comédia (amadora) que falam muito a sério, enquanto usam o horário nobre para brincar ao sem-noção. Gozar com a nossa cara. Se isto é democracia, percebemos: é um perverso sistema que permite que gozem com a minha inteligência. E eu nem vou votar. No fundo, esta velada falência democrática, é-o o ano todo, de outra forma, com mais retórica e gente mais bem vestida. 


Há umas semanas, o Estadão trazia a seguinte banda-desenhada: um casal em pé, especado em frente à TV: lia-se as palavras de um político que prometia roubar, lixar-lhes a vida, aumentar a corrupção e os impostos. A lista era mais completa. No final, o casal vai embora e diz: “Vou votar nele, ao menos ele não mente.” 

sábado, setembro 04, 2010

sexta-feira, setembro 03, 2010

Fechou o boteco para balanço, que é como quem diz que o expediente terminou agora.

Julie London...You're right!

quinta-feira, setembro 02, 2010

A culpa é do gatinho, da banana e outras (nada) importantes banalidades Será que a poesia é Literatura, mesmo?



A alquimia é uma coisa complicada, pessoal, intransmissível, mas serve para explicar muita coisa. Ou nada. Porque o nada tem sempre uma boa dose de tudo, que se dissipa por aqui como vento, ar, podendo o ar gasoso, que por vezes exala, paira e não se vê, sufocar. E se a alquimia é pessoal serve para o espanto, a indignação, a transformação das emoções em sentimento e para suportarmos melhor a vida.

Há emoções que de tão pessoais são um todo colectivo: todos sentimos o mesmo, em diferentes cadências e intensidades, com maior ou menor peso, mais ou menos moderado, mais ou menos importância, mais ou menos reflexão. Choramos, berramos, esperneamos, sufocamos, atiramo-nos ao chão, achamo-nos feios e incapazes, inferiores, desgastados, lentos, nadas, pequenos nadas. O sentimento é o mesmo. A intensidade é que oscila.
A noção de nós aqui-e-agora. Ele vai por esse caminho, sem atalhos, mas nunca anda por lá.

Ferreira Gullar. Lançou, ontem, na Livaria da Travessa do Leblon, no Rio de Janeiro, “Em Alguma Parte Alguma”. Não publicava há onze anos. “A poesia não tem lugar no mercado”. Foi “Abduzido”. “busco/tateando/no escuro/o interruptor da lâmpada de cabeceira/e/ao acendê-la/deparo-me/comigo/em frente a mim/como se fosse um outro:/estarei noutro?/(e de pijama/o mesmo pijama verde-grama/com que durmo/em minha cama)/e/apa/go/a/luz/na treva/cismo/que/esse eu-mesmo-outro/habita/agora/abduzido/um abismo/(bem rente à cama/do quarto de um hotel/na capital paulista”.

A alquimia dele é a poesia. “Ajuda as pessoas; dá uma alegria às coisas”. E as coisas é isto. As coisas é a divisão da casa do nosso encantamento. É-o. Não são. Porque as coisas são singular e o plural das coisas só serve para equívoco. Pode ser isto. Bem que podia ser isto. E agora começamos a entrar no mistério da vida. É pessoal o que lhe vai lá dentro, mas podemos tirar lições – com sorte, uma receita biológica. Com sorte, embora o azar paire neste texto. Mas se azar for a descrição de sorte e sorte a descrição de azar no nosso mundo pessoal, está tudo bem. Fica sempre tudo bem.

O homem, o poeta, a intermitência poética de quem aqui se fala não tem receitas. E, embora, as coisas que lhe ocupam a cabeça sejam universais, não há coisa mais pessoal do que a anarquia dele – tão nossa e lugar-comum. “Quando a indagação surge é como se começasse a pensar pela primeira vez e isso é mais importante do que qualquer coisa que eu escreva”. O mais importante. Nunca sabemos o que é mais importante, porque a hierarquia das coisas não existe. É singular, lembram? Claro. “Será que a poesia é literatura mesmo, ou é outra coisa?”

Talvez outra coisa. Talvez poesia. Talvez Literatura. Talvez apenas palavras e alquimia. “Ela é tão Minerva. É assistémica. É uma outra coisa.” Mas qual foi a pergunta, mesmo? A Literatura é poesia? Não: a Poesia é Literatura? “O Poeta resiste a ser adulto e isso é verdade. A criança desobedece e não vê o mundo com métodos”. Voltamos a ser criança com a Poesia. As bananas apodrecidas, o gatinho, os dragões, as aranhas na pia – mas já lá voltamos. Bananas apodrecidas. Que coisa tão banal! Que coisa tão Gullar!

A vida correndo, o universo explodindo, as estrelas brilhando, enquanto as bananas apodrecem. Banana 3, Banana 4, Banana 5. Os poemas. As bananas. “O mundo está no sistema solar e as bananas estão lá” . Como se algo ali permanecesse vivo no exacto apodrecimento. “O Universo nasceu, houve um princípio, ma antes dele havia o nada e não pode haver o nada – não pode haver o nada. Não consigo conceber que não exista nada. Big Bang? Tenho horror ao universo porque é grande demais. Com ele, a gente vira nada de nada”. Só vale pelo seu espantoso vão silêncio. “Não quero saber do universo, quero saber de gente”. Do seu ambiente íntimo, de quanto dura o seu gatinho, e de quantas bananas vão apodrecer ainda nas páginas de seus livros. “O poema é uma invenção do lugar que não pode ser dito. Na hora de escrever, eu reduzo o grau de probabilidade do que há em mim”.

Química interna. Começa a palavra condicionada, que vem. “O resto é uma mistura. A vida é feita de acasos. E o poema é uma mistura de acaso com necessidade”. Necessidades, acasos de alguma parte alguma, de algum Gullar Nenhum, de Gullar de alguma parte. “Eu vivo numa cidade de 30 amigos meus, Não conheço a maioria das pessoas” E não importa. “Ferreira Gullar, famoso eu não sei quem é”. Ouviriamos do mendigo. Depois vem o Amor. A alquimia da Poesia. Parte vertida de Amor. “Como de Machado de Assis para Carolina, que estava morta.” E o que é a poesia hoje (se é que foi alguma coisa algum dia)? “Eu não sei responder”.



Morro da Providência, Rio de Janeiro


O romance como recriação do tempo e da memória

Na máquina de escrever do Luciano Trigo a entrevista com a escritora brasileira Christiane Tassis, em slow motion... E olhem que isto é o Melhor do Inferno



O inquilino II


Não devia continuar com isto. Estou a tentar amarrar os dedos, mas eles ganharam vida própria. E quando os nossos membros ganham vida própria a rotação voluntária pode ser mais longa e libertadora do que imaginamos. Não estou certo de que deva fazê-lo. Os dedos armadilham-se nas teclas e vertem neste écran branco de nada a quase-metade do pensamento que entrou em combustão na máquina cerebral. 

A máquina cerebral. É isso. Quase-metade: isto de acharmos que a linguagem traduz fac simile aquilo que pensamos é uma grande e retumbante gargalhada. Nada: não traduz absolutamente nada. Apenas roça uma probabilidade aproximada do algo de parte que se passa nesta maquineta impregnada de defeitos de fabrico, à nascença, com tendência certa de piorar com o tic-tac do tempo externo. Sobretudo exposto ao tempo externo. O suor também ajuda. Vai degradando com as bofetadas sociais, as hipocrisias, o desgaste natural da falta de amizades verdadeiras, da falta de amor, até faltar o sexo higiénico. Pelo menos, o higiénico. Descartável. Pode faltar o sexo higiénico. 

A vizinha debaixo nem deve saber o que é isso. Eu soube-o muito tempo. Até à abstinência viril. Temos sempre de dizer que é abstinência viril quando já não nos querem. O resto vocês sabem. Ao resgate voluntário para este compósito asséptico das divisões. Descartável. É. Até as putas me começarem a rejeitar no asco sólido que pode ser a decisão alheia. Como dependemos do asco sólido da decisão dos outros. Depois, as erosões internas: como nos fazemos mal, porra! É, quando pomos tudo a girar, esta máquina entra em elipse. Trata-se de uma mecânica e química alquimia que gorgulha, engrena, circula, gira, amortece e enferruja. 

Como pode enferrujar!: até o óleo biológico deixar de ser suficiente para nos valer na hora de friccionar os freios necessários para o derradeiro crash. Mas bem sei que devia parar, agora, mesmo de escrever. Vou parar. Eu vou parar. Continuar pode sempre parecer forçado. E quando forçamos o mecanismo de nós, já estamos a trair o veio escorreito da vida, que é o mesmo que dormir com várias amantes ao mesmo tempo, ansiar, asfixiar o peito, multiplicando fingimentos. Multiplicamos sempre fingimentos por solidariedade. Elas sabem que minto. Fingem acreditar, mas tudo fica bem. É agora, preciso de parar. Há isto que não me deixa: eu preciso de testemunhas. É por isso, que os dedos vão, quem manda é a maquineta cinzenta. 

O processo é simples: há o espanto. A indignação. A inquietude. Tudo começa com a inquietude. O peito aperta, prende, como se o agarrassem a seco e fosse espremendo um pano lá dentro, devagarinho. Passa para o corpo: ah, e vai formigar! Comunica com a máquina cerebral: o curco-circuito disfuncional já começou, há a ebulição, a tempestade, a explosão, a corda rompe: clash: haverá sempre relâmpagos internos e as lâmpadas fundem sempre. Temos muitas lâmpadas aqui dentro de nós que fundem todos os dias: além dos fusíveis! Convém que as tenhamos em doses suplentes. Alta voltagem. 

Haverá sempre alta voltagem e um flash pequeno, transmitido para as ligações internas até às pontas dos dedos. Eles excitam-se. Convencem a mão a saltitar pelas teclas. Sabem as letras precisas que têm de premir para formar uma frase, texturizar o conteúdo certo, na língua certa e não noutra. Por que raio não é noutra? E são as pontas dos dedos que mandam, sabiam? As pontas dos dedos. São mais donos do nosso mundo: porque mais responsáveis de fazerem o caminho inverso à máquina cerebral. E isto é tudo em câmara lenta, entendam. Esperem. Acho que alguém bateu à porta. Tchekov a esta hora? Tchekov terá acordado de novo de madrugada. Mas Tchekov foi-se há muito. Só a mãe dele toma agora conta daquele apartamento soturno e cinzento. Não gosto de gente cinzenta. E há tanta gente a espalhar cinzentismo por aqui. Carregam uma nuvem pesada a ameaçar chover só para chamar a atenção. 

Sempre me afastei de gente assim. Bajuladores. Depressivos. Inseguros! Detesto gente depressiva. Só a mãe de Tchekov era assim. Ele era branco-puro. O cinzentismo deixava para a poesia, que a propósito era uma porcaria. Só se satisfazia depois de várias vodkas puras. No final, tornou-as frequentes ao dia, porque não conhecia mais outra forma de enfrentar a vida sem o entorpecimento dos sentidos pelo álcool. “Não consigo ficar sóbrio o tempo suficiente para achar graça em ficar sóbrio”, citava F. Scott Fitzgerald. 

O fígado não aguentou. Tchekov ficou carcomido. Era dono de um sebo na Rua Augusta ao lado do neón das putas. Não existe mais Tchekov, nem o sebo, nem o poeta. A arte do carcomimento (não me importa que a palavra não venha no dicionário é esta a quase-justa que me traduz o que lhe aconteceu) levou-o cedo. A vodka deu um empurrão. Os néons ainda lá estão. As putas também. Acho que bateram de novo à porta. Ouve-se um eu não sabia. Três pancadas na porta. Ouve-se um leva-me, depois um vens cá fora, seguido de um queres que arrombe a porta. Ouve-se um não me podes deixar assim. Não me podes deixar nunca. Ouve-se um sua puta tu dependes de mim e nunca mais ninguém te vai querer! 

O baque estremecedor dos pontapés na porta. Há um, dois, três. Há mais. Há a voz. É aqui? É a voz azeda e rouca de um homem que deve ter gritado toda a vida. As cordas vocais agora traem-no em vingança necessária, atroz, senil. É a voz do vizinho de cima. O vizinho dos cacos de vidro da cerveja. As pancadas são secas. Ou sou eu que estou sensível. Não poderia nunca ser nesta porta. Não é na minha porta, claro. Não depois que Tchekov se foi. 

Os russos sempre lidaram melhor com a solidão. Há a vodka e o Dmitri Dmitriyevich Shostakovich ( Дмитрий Дмитриевич Шостакович). Sinfonia N. 7 “Leningrado”. Obrigou-me a ouvi-la dezenas de vezes. E dizia-me olha como a vida acalma agora: são as armas depostas. Olha como se torna violenta agora, a revolução vai avante. Olha como se escondem como ratos, olha como se vergam, olha como se traem, olha como se vendem, olha como a essência humana....

Era quando lhe dizia sempre para parar. Não aguentava aquilo. Nunca podia aguentar aquilo tudo até ao fim. Obrigava-me a ouvir a música vinda da casa dela, à tarde, quando o prédio estava vazio. Punha a música alta e interfonava-me. Ouves? Ouves? Quando não me apetecia não lhe atendia, mas ele punha a música na mesma. Era uma espécie de terapia obssessiva-compulsiva. Eu ficava desesperado. Só que a gente habitua-s a tudo, menos aos outros. E a melhor forma de ganhares uma guerra é cederes. Eu não podia sair de casa. Era o meu Inferno Particular.

quarta-feira, setembro 01, 2010

Perplexidades, Gullar

Do novo livro de Ferreira Gullar, prémio Camões, Alguma Parte Alguma, lançado hoje no Rio de Janeiro...


Perplexidades 
a parte mais efêmera
de mim
é esta consciência de que existo
e todo o existir consiste nisto
é estranho!
e mais estranho
ainda
me é sabê-lo
e saber
que esta consciência dura menos
que um fio de meu cabelo
e mais estranho ainda
que sabê-lo
é que
enquanto dura me é dado
o infinito universo constelado
de quatrilhões e quatrilhões de estrelas
sendo que umas poucas delas
posso vê-las
fulgindo no presente do passado

Trailer Moscou

Revista Minotauro

Revista Minotauro lançada a semana passada no Rio de Janeiro. Para quem andava faminto de boa prosa sobre arte e literatura... É, tem sotaque carioca...

Bueiros e Graffiti, em São Paulo- Dupla 6emeia