quinta-feira, janeiro 29, 2009

Anatomia de mar


Há maré alta domada pelo vento desgarrado que leva os grãos aos olhos e embacia a alma dos barcos. Há brisa forte que é leme e bolina, desalinhados nas coordenadas de ondas já mareadas e que hoje despertaram mal-humoradas pela frieza da neblina.
Dizem, os mais antigos, que Janeiro é assim, um tempo de expiação na costa do Sal, em Cabo Verde. Com homens de pés nus, escamados, gretados por lágrimas de um mar vadiado, mãos sulcadas por cordas envelhecidas, ásperas, rudes, virgens de terra e sábias na arte de segurar o peixe roubado à água. Depois há barcos que perderam a conta aos segredos sussurrados. E levam cultura nas tábuas coloridas.

Ainda não são 9h da manhã e o sol já queima a pele escurecida do Hermes. Tem olho de criança, ternura adoçada. Mas hoje está zangado. A sobrancelha eleva-se quando fala, os lábios endurecem e a magreza responde com o corpo hirto. Em gestos acelerados, irritados, ignora as palavras de boca cheia que Itu lhe diz como rixa de adolescentes. Já se fizeram homens, mas há nesta nossa maneira de viver um certo deslize quanto ao tempo presente, que nos leva lá para o despertar das hormonas.

Cabelo arrepiado, pele espicaçada como gato ameaçado. Quase guincha com o corpo. Num só golpe de braços no ar, pega no cesto de plástico. Arrasta o peixe para que Itu não se esquive a tirar-lhe a clientela. Contorna a multidão que se vai como íman à única pescaria que chega aqui a esta hora. Agarra na faca, mergulha as mãos no peixe e zás-flit-flit: vai escamando a pele do desprevenido. Talvez turvado pelas águas aflitas; talvez ludibriado pelas redes labirínticas que as mãos fizeram para não escapar.
- Hoje só há este, que o mar não quer dar mais, diz Hermes. E olha irritado, concentrado, com resignação - que é como quem quer desabafar que a culpa é deste vento endiabrado que Janeiro mandou dar.

Depois, mais cortes afundados. Rasgos que soam a tecido rompido. Sangue que pinta as mãos. E, a esta hora, o pontão já está, de novo, impregnado de escamas ásperas; e envaidecido com os reflexos dos corpos que ainda resistem às agruras do vento devorador. Sacode. Sacode. Levanta as escamas expulsas. E como a fúria do corte acalmou o pescador de olhos ternurentos! Agora, já o sangue do olhar voltou ao crioulo doce da fala. Talvez espere, que da mesma forma, o mar perca essas rédeas revoltas e lhe siga o exemplo. É que alma de pescador ternurento já sabe que é mar...

quarta-feira, janeiro 28, 2009

terça-feira, janeiro 27, 2009

Sabe-me a pouco...


Dali escorregam hormonas que só crioula sabe domar. Nada contam ao vento, que fustiga esta costa de sal adocicado. Há crónicos paradoxos como este que só se explicam com as mãos enroladas na areia e o beijo rasgado da brisa antes do tempo. Em jeitinho atrevido que só os olhos pedem para não denunciar. Como é que Sal não sabe assim quando molhamos os lábios com a língua para saber o que é o vento nos traz, ali, a ver-o-mar? Não há afectos que partam destes portos. Nem sabores que se desconheçam. Não se sabe o que há. Sabor de relento. Sede de mar. Aqui resta o amor do tempo perdido e a sageza dos humores do paladar. Há pessoas que sabem doce, ainda que não as provemos. Depois há o manto rudimentar sedimentado. Pontilhado de rochas que já o foram. E ele enterra os pés, secos e rugosos de quilómetros queimados em grãos sempre novos, desconhecidos. Raspam sim, como se estivessem a ronronar um prazer displicente por serem assim massajadas por pés pesados. E o suor que lhes escorre gotejando pelo corpo nu, portentoso, em chocolate- derretido-queda-livre, maliciosamente exibido em birra contra a luz. São pés que lutam por direito a um leve roçar redondo na amante promíscua em cada toque. Ela já não sabe quantos dedos a envolveram num encantamento de fim de tarde. Saltou, rebolou, bruxuleou como vela, rodopiou, rasgou prazeres grão-a-grão, voou em tiro livre para redes alheias, sem dono, em cada posição adversária. Essa bola, amante fácil, que precisa do movimento alheio para se exibir, como as hormonas destes corpos dedilhados por luz com sede de mar. Paridos ao relento, filhos de Sal, de água e de vento gotejado. Como será?

sexta-feira, janeiro 16, 2009