quinta-feira, maio 14, 2015

A vida num contentor

É fácil. Neste caso começa com um anúncio na internet: “Procura-se gestor de empresas para empresa internacional”. O candidato envia currículo, é selecionado de imediato, comemora com os amigos, não faz perguntas – até porque tem um percurso imaculado, só não encontra trabalho entre nós –, não participa em nenhuma entrevista, não considera isso estranho. Só sabe que vai ganhar um salário de sonho e, por isso, aluga a casa no país de origem, despede-se da família e parte, uma semana depois, com um bilhete que “será depois recompensado à chegada”.

Só que, “à chegada”, ele é raptado. Sim, raptado! A estrada para o inferno começou quando deixou de fazer perguntas, ou cegou com a luz de uma pequena esperança. Não é juízo de valor, é a função do narrador omnisciente a contar o final da história.
É, depois, obrigado a entrar num camião, com outros rostos tão perdidos e desesperados quanto o dele. Percebe que a estrada é sinuosa, galga-se quilómetros de buracos e lombas, a grande velocidade. Entranha-se, nas narinas secas, um cheiro a savana e suor em ebulição. Homens enclausurados.

Pensa no fim, porque cogitar no pior seria ter uma réstia de esperança, e a ilusão já não entra num coração aflito depois da primeira cegueira fatal. Horas depois, sob um calor tórrido, o motor para. Abre-se a porta, é noite cerrada, gélida, sepulcral. Ele pergunta o que está a acontecer e leva uma coronhada de metralhadora. O sangue que escorre desde a ferida exposta na cabeça até à boca sacia-lhe a sede, embora já nada disso importe. É enclausurado, novamente, num contentor com os mesmos rostos cansados, carcomidos pelas horas de agonia.

Tenta falar, mas sente que a voz falha. Será o medo a velar por ele? Ter medo pode ser uma réstia de esperança. Uma janela que se abre por dentro e sussurra: estou vivo! A camisa nova e nívea que comprou numa loja de marca, no país de origem, está maculada com espirros vermelhos.

Durante algum tempo é ele e aqueles outros homens, no meio do mato, sozinhos, encarcerados, desolados, imiscuídos de existência. Não sabe durante quanto tempo, mas dormiu muito, morto de cansaço, vencido pelo ar rarefeito, mas sobretudo no fio existencial de que essa réstia de esperança fosse um acordar de novo, percebendo que, afinal, tudo não passava de um sonho muito ruim.

Quando, enfim, abriram a porta, percebeu que, se fossem mais uns dias, talvez não voltasse a acordar. Pensou que seria o melhor. Chamam-no. Obrigam-no a ligar à família em Portugal. Pedem um resgate: 500 mil euros. Crime organizado. Extorsão. Rapto. Tráfico. Sabe-se lá mais o quê. Deixaram-no aos pontapés, com risos alarves. Esqueceram-se da porta aberta.

Durante a noite arriscou a vida. Com o coração a ensurdecer o pensamento correu até onde pôde. Aprendeu a rezar. Viu uma luz. Arriscou uma povoação. Acudiram-no. Voltou para casa com ajuda de um homem que não sabe o nome. Está entre nós, são e salvo, pelas ruas deste país. O tráfico de pessoas existe e pode estar à distância de um clique. Mais difícil e desconcertante: esta história foi-me testemunhada num balcão de atendimento; poderia ter sido qualquer um de nós, com a vontade de uma réstia de esperança.

*Crónica publicada a 14/o5/2015 no Porto24