sexta-feira, julho 26, 2013

Catarpácios & Cia

Os livros que moram num alfarrabista são viajantes forçados. De mão-em-estante-em-feira-em-lar. Uns maltratados, outros sultões poligámicos que coabitam com raridades. Em rigor, prisioneiros dos desígnios tirânicos.
A semana passada, tentei explorar as velhas livrarias de Amã, na Jordânia. Debalde. Apenas uma loja cinzenta, empoeirada, best-sellers duvidosos, um piano encalhado. Ao sair, cogitava perplexidade: será que a quantidade de alfarrabistas que um país tem revela muito sobre a cultura e sua população?

Estudo de caso: eixo Portugal-Brasil-Jordânia. 

Entre nós, 871 anos de identidade, já pós-doutorados na matéria, arriscando até pôr a espécie alfarrabista em vias de extinção, quantos alfarrábios? Algumas centenas. 

No Brasil, honoris causa no assunto, 191 anos de independência, qual a população lojista de catarpácios? Milhares. Há até uma loja online (www.estantevirtual.com) onde se pode encomendar ‘velhos’ livros por toda a Terra Brasilis. 

A Jordânia, caloira nestas lides, tem pouco mais de 60 anos de vida: os alfarrabistas contam-se pelos dedos das mãos. O que não representa um cenário generalizado do mundo Árabe. Até porque, analisando a etimologia da palavra ‘Alfarrabista’ sabemos que provém do antropónimo árabe Al-Farabi, filósofo que vivem em Bagdade no séc. IX, conhecido pela gigante biblioteca de textos antigos. Al-Farabi viveu ainda no Egito, lugar onde a História marca um legado civilizacional, e onde terá existido uma das mais importantes Bibliotecas sobre o Mundo Antigo, em Alexandria - e que terá ardido (30 A.C.).  Mais uma vez, estes livros, velhos viajantes, alguns sábios intemporais, dependem sempre da vontade humana para existirem. O que será que fariam aos homens se lhes fosse dada vida autónoma? A revolução pode estar eminente.





sábado, julho 20, 2013

Receita para ser feliz (e sopas coloridas)

1. Nunca me dei bem com receitas. Acabo sempre por adulterar as gramas de açúcar, de sal, de arroz, eu sei lá. É por isso que gosto de inventar na cozinha. Há-de haver, com certeza, algum estudo, tese, teoria filosófica, especulação ancestral hermeticamente enquadrada na transdisciplinariedade de convergência de algum "-ismo" ou "-logia" que comprove que cozinhar é uma extensão da forma como encaramos a vida. Surge-me esta filosofia de botequim enquanto faço sopa. A minha sopa nunca fica da mesma maneira, porque nunca compro os mesmos ingredientes e até gosto de inventar. Lavo a louça e apercebo-me de que, na vida, sou um pouco assim. Procuro sempre maneiras de fazer diferente e irritam-me as regras quadradas, a hierarquia e a mediocridade. Mas isso é outra história. Alinho tudo isto num axioma doméstico enquanto ponho o resto do detergente com água no esfregão, desengordurando a panela. Será que cozinhar revela realmente muito sobre nós? O que diria Freud, Lacan, Piaget, Jung e Alfred Adler e sua psicologia do desenvolvimento individual? Será que deveria convidá-los para jantar? Que prato servir?

2. Uma das coisas que tenho aprendido para ser feliz é não dar demasiada importância ao passado e às pessoas que eu deixei que me magoassem. A idade da ingenuidade já passou e um dia temos de aprender a dizer não e sair a tempo, antes que a areia movediça nos sugue a força. Outra coisa é dançar no meio da sala, descobrir uma música nova todos os dias, encarar o dia sorrindo, fazer bolas de chiclete e rebentá-las, tirar os sapatos e encarar a areia da praia no Inverno, fazer surpresas a quem gostamos, mandar mensagens estapafúrdias aos amigos com fotografias ridículas, saltar no colchão da cama. Enfim, não levar a vida tão a sério e não deixar que aqueles que a levam nos pesem com sua indiferença e julgamento. Outra delas é fazer sopas coloridas, e bolos com açúcar a mais, mesmo que as teorias da Gestão e dos Recursos Humanos digam que deveria ser mais coerente na minha forma de cozinhar. Gosto de deixar a vida mais cromática e de a tornar doce. Pode ser que Freud assim explique.

Sonhos de um Mundo Novo para os Não-Me-toquenses

 Não sei se "Formiga" fica perto de "Sonhos", junto a Ermesinde e passando pelo Conde Ferreira, mas certamente fica bem longe de "Mundo Novo". Esta terra onde os moradores devem andar sempre de cabeça-no-ar, seguidores dos Oneiros (irmãos de Hipnos) pressuponho, fica a 8860 quilómetros de Mundo Novo se for o de Mato Grosso do Sul, 6754 quilómetros se for na Baía, 7488 km se for o de Goiás, 7870 km se for o de Juiz de Fora. Sim, encontrei quatro terras brasileiras com esse nome. Pressuponho, quiçá, que Aldous Huxley se tenha aqui inspirado para o título do seu livro mais famoso: Admirável Mundo Novo.

O autocarro 703, no Porto, que se pode esperar na Cordoaria tem o destino final para Sonhos, mas não me parece possível que suas capacidades mágicas o levem além Atlântico. O que parece categórico, porém, é que Mundo Novo fica, inevitavelmente no Brasil.

Talvez seja por isso que muitos portugueses sempre se sentiram atraídos por terras brasileiras. Isso explicaria, por exemplo, por que razão diz a lenda que há uma terra no Rio Grande do Sul com o nome de "Não-me-Toque! que se deve (especulação número um) à façanha de um português. Parece que no século XIX ele terá dito a alguém: "Não me toques nessas terras!". Desde então o gentílico do povo da cidade é não-me-toquenses. Localiza-se a uma latitude 28º27'33" sul e a uma longitude  52º49'15" oeste. Está a uma altitude de 514 metros. Coisa pouca, dá para tocar, certo?, "nesse pedaço de pátria" onde "eu vejo pampa verdejante/ eu ouço o cavalo a galopar,  sinto o vento minuano cortando as colinas..." (ouve-se no vídeo institucional da cidade).

Em Tocantis, porém, a Lagoa da Confusão,  não há que enganar, já deve ter deixado muita família obnubilada, que hão-de, certamente, ter ido carpir suas "Angústias" para os lados de Paredes de Coura, ou mesmo, inspirados pela fé, feito o devido "Purgatório" (Albufeira).  Desconfio que o Jardim de Piranhas (Rio Grande do Norte), ter-se-à dado muito bem com Carne Assada (Terrugem, Sintra) e pouco com Aranhas (Penamacor). Passa-e-Fica (RN) estou na dúvida, amigaria com Gostei (Bragança)? Sabemos que pelo menos 11 519 habitantes que lá passaram, permaneceram. Não devem ter queixumes no livro de reclamações.

De qualquer modo Arco-Íris, em São Paulo, pelos vistos não tem mais de dois mil habitantes e não se entende porque há-de ser um lugar bonito para morar.  Mas a toponímia às vezes engana, ao contrário do algodão-Sonasol. Por exemplo, em Consolação, em São Paulo, não encontrei  lugar algum onde se pudesse repousar os afetos, e no Paraíso, lá no final Via Avenida Paulista, não encontrei nem Adão, nem Eva, nem a serpente, se bem que há uma frutaria com vários tipos de maçã. 

Acredito, pois, que a criatividade da atribuição dos nomes dos lugares esteja mais relacionada com algum acaso do quotidiano, do que com uma explicação metafísica extraordinária. Ela é mais ordinária quanto se pensa. E tem que ver com coisas como por exemplo, deixar o gato deitar-se no teclado do computador, originando nomes como Llanfairpwllgwyngyllgogerychwyrndrobwllllantysiliogogogoch .
Parece ou não parece obra de um gato preguiçoso do teclado? Mas, pasmem-se, não é engano não, é nome de um lugar, na ilha de Anglesey, no País de Gales e significa: "igreja de Santa Maria no fundão do aveleiro branco perto de um redemoinho rápido e da Igreja de São Tisílio da gruta vermelha". 

Assim de repente, se inventasse um nome de lugar, acho que chamaria o meu gato para dormir no teclado, mas a esta hora, sei-o, ele está longe (ou sou eu que estou), mas muito mais perto de Sonhos e de um Mundo Novo do que eu.


Desaparecidos

As histórias sobre pessoas desaparecidas sempre criaram em mim uma dicotomia. Digamos que uma bipolaridade involuntária. Por um lado, a curiosidade "detetivesca" em saber o que realmente aconteceu - imaginar uma vida que se esfumou para o mundo real (quer esteja a viver outra, ou tenha partido), -  por outro um vazio estranho que  impõe um certo mau-estar. Diria uma náusea mental, um arrepio, como se o universo Frankenstein se sobrepusesse a qualquer lógica. Parece, isso, sim, um filme de ficção científica.

E as histórias sobre estes enredos, raramente (não encontrei estatísticas confiáveis sobre o caso português) têm um final feliz. Por exemplo, nos Estados Unidos, segundo o National Center for Missing Adults, regista-se, diariamente, 2300 desaparecidos. 

Não deixa, por isso, de ser surpreendente a notícia de hoje, no Canadá, de uma mulher, Lucy Johnson, 77, que foi encontrada viva, hígida, depois de ter estado 52 anos desaparecida. Diz a notícia que ela tinha já uma outra família e não avança mais pormenores, alegando privacidade familiar. 

Muitas serão, certamente, as razões que levam milhares de pessoas, todos os dias, a esfumar-se da sociedade e nem todas elas terão finais trágicos. Recordo-me que há uns anos, um colega de trabalho da minha mãe esteve uma boa semana desaparecido, sem deixar qualquer rasto. Meses depois ele voltou ao trabalho, mas as razões reais do seu desaparecimento nunca chegaram a ser divulgadas, nem ele quis falar sobre o assunto. Há momentos da vida do ser humano, presumo, em que o peso da vida torna-se de tal forma incomportável que desejamos que a cápsula da invisibilidade fosse, enfim, um medicamento de venda livre. 

Mas imagino a vida ao redor daqueles que estão ligados ao desaparecido. É também uma boa parte da vida destas pessoas que se perde, que se agarra a um ciclo psicologicamente desequilibrado. 

A Literatura está cheia de desaparecidos. Mas é, no fundo, a História que a inspira. Por exemplo, Dom Sebastião nunca chegou a dar o ar da sua graça, nem para reivindicar a herança,depois da Batalha de Aljubarrota. Nunca se soube ao certo o que aconteceu ao gladiador Spartacus. Artur I, Duque da Bretanha, esfumou-se sem deixar rasto. O mesmo aconteceu aos exploradores Miguel Corte-Real,  português, e Francisco Orellana, espanhol. O mesmo destino teve o explorador e arqueólogo Percy Fawcett, quando tentava encontrar uma valiosa cidade perdida de Z. no Brasil. A própria Agatha Christie, escritora inglesa de livros de suspense e mistério, esteve 10 dias desaparecida, embora tivesse sido encontrada depois.

 Que atire a primeira pedra quem nunca se viu tentado, por variadíssimas razões, a testar a teoria pessoal do desaparecimento, nem que fosse por instantes; nem que fosse em nome da Literatura. Mas quando refiro desaparecer, quero dizer para reinventar uma outra vida. Estou particularmente satisfeita com a minha, confesso, mas recordo-me de em 2009 pensar, ao longo das margens do Rio Amazonas, onde moram alguns ribeirinhos, que seria muito fácil alguém desaparecer por entre as margens sem deixar rasto. Ocorre-me isto, ao mesmo tempo que me ocorre o outro lado da moeda: a vida está, enfim, cheia de belas possibilidades e que podemos sempre recomeçar do zero!
 

quinta-feira, julho 18, 2013

O meu nome não é Vanessa Rodrigues

Já escrevi, no passado, sobre a estranheza de ter uma homónima, no Porto, com amigos em comum e de como tudo isso começou. Hoje voltou a acontecer-me e entendo que há algo de muito kafkiano quando nos deparamos com alguém que assina com o mesmo nome do que nós. "Nome banal", penso eu! O caso pode dar azo a ser explorado pelos melhores psicanalistas de crise de identidade. Voilá, estou sentada do divã. Mas já lá vou. Um intermezzo se faz favor!

Quando Vanessa Rodrigues, portuguesa, fotógrafa, me encontrou no Facebook - ou eu a encontrei a ela, depois de termos trocado breves palavras, num ensaio de teatro social, no Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo-, o ano passado, nasceu um Ribeiro no meio do meu nome. Vanessa Ribeiro Rodrigues. Sim, essa foi a razão principal por que resolvi colocar o último nome do meu avô António a segurar-me o nome. Gostamos, pois, de ser únicos, exclusivos, privados, entidades deíficas, como se quiséssemos deixar marca imaculada dessa nossa identidade pessoal e instransmissível. A primeira vez que isso me aconteceu, portanto, fiquei com cara de animal de banda desenhada: fumo a sair das orelhas, e um balão por cima exprimindo uma "fúriazinha". Nada pessoal, mas tinha de tomar medidas urgentes. Fazer alguma coisa para que ninguém confundisse Vanessa comigo, ou eu com Vanessa. 

Meses depois, vi outra Vanessa Rodrigues comentar uma frase de uma outra amiga em comum. Mais aliviada, respirei fundo porque o meu nome já era VRR. Não consegui, porém, deixar de esconder uma mágoa. Sabem uma criança a quem tiram um gelado; alguém que come a nossa última bolacha do pacote? Por aí! Tinha abdicado da identidade. Por dentro, continuava a ser Vanessa.

Porém, voltando à melodia kafkiana, hoje foi a vez de outra Vanessa Rodrigues, desta vez por minha causa, mudar seu nome no Facebook, pelo que entendi. Nasceu um C. no meio dela. Já estamos em contato e falamos das coincidências. Ela me disse, inclusive que, recentemente, fora selecionada para frequentar uma oficina literária. Mas que não comemorou porque achou que não era ela; que poderia ser eu. Felizmente tinha razões para comemorar. 

Sem querer, talvez, desta vez fui eu quem tirou o doce da mão dela. E isso, porque Antônio Xerxenesky, na batuta do blogue da editora Cosac Naify, depois de Daniel Benevides, publicou meu texto sobre o livro de Vanessa Barbara, "O Livro Amarelo do Terminal", que vai ser reeditado. De imediato, Vanessa, a Barbara, foi identificada no FB ao lado de outra Vanessa, por Arthur, que faz anos no mesmo dia que eu, achando de que se tratava de Vanessa Rodrigues, sua amiga, que também contribui para o blogue da Cosac Naify. É uma bela de uma confusão, bem sei, uma overdose Vanessiana. Porém já está tudo resolvido, sem mortes, nem feridos. Mas agora tenho mais razões para ter dúvidas? Vanessa...sou eu? 

Vanessa viaja com Vanessa

Novo texto que escrevi a convite do blogue da editora brasileira Cosac Naify, a propósito da reedição de "O Livro Amarelo do Terminal" [Rodoviário do Tietê]. Levei o livro a viajar nos transportes coletivos do Porto, enquanto exercitava a Literatura Portátil. O resultado pode ser lido neste link, pela batuta de Antônio Xerxenesky, agora no comando deste blog depois de Daniel Benevides. Boas viagens! :-)

Minha vida com Vanessa Barbara

A gente não se conhece, apesar das coincidências: temos o mesmo nome, somos jornalistas e escrevinhadoras, gostamos dos ínfimos detalhes da vida, como moscas ziguezagueantes, ávidas de cenas da vida real e fazemos aniversário no dia 14, embora em meses diferentes. Isso me dá alguma vantagem para quebrar o gelo.
Nunca nos vimos, muito embora tenhamos galgado já as mesmas calçadas. E vivemos o mesmo surto psicótico: observar o Terminal Rodoviário Tietê, em São Paulo (cidade onde vivi durante 5 anos), a segunda maior rodoviária do mundo (parece que a primeira é em Telavive, Israel), percebendo que é uma espécie de país neutro, uma súmula de Brasil, um tratado etnográfico. Bastam cinco minutos e até o escritor italiano Italo Calvino – autor de Cidades Invisíveis – ficaria louco, achando que todas suas urbes caberiam nesta anatomia. Regra básica: para entender esta central de “busões” temos de ser, porém, observadores participantes. E agora me cai nas mãos a missão de escrever sobre o livro de Vanessa. Como se escreve sobre um livro, no qual nos revemos, ou quem sabe, podemos mesmo ser personagem invisível?
A estação rodoviária Tietê (foto de C. Alberto)
Talvez a escritora e jornalista Vanessa Bárbara (VB) tenha me visto enquanto fazia trabalho de campo. Talvez a gente tenha se cruzado, lado a lado, observando a “cidade de coisas perdidas”, como ela apelida o Terminal. Talvez, quem sabe, tenhamos estado na mesma fila, ou pegado o mesmo ônibus. Em rigor, se passarmos pelo Terminal Tietê, qualquer um de nós pode ter partilhado um fragmento de vida com a autora. Não só porque o livro é carnalmente real, como também poderia ser o divã de todos nós, metafisicamente contemporâneo.
Em todo o caso, minha vida com Vanessa debaixo do braço mudou um pouco. Deixa eu explicar melhor: minha vida com O livro amarelo do Terminal de VB se transformou em literatura, verdadeiramente, portátil, pela cidade do Porto, em Portugal. Virou uma espécie de ficção andante na primeira pessoa. Vamos por partes: o livro veio de avião, até Portugal, cruzando o Atlântico, quiçá sua estreia na Europa, na mala de dois amigos queridos, que mo compraram, porque na Cosac Naify ele estava esgotado e bem que, finalmente, merece esta reedição para acabar com o jejum.
Depois, é bom que se diga que eu levei “o Terminal” para passear pelos transportes públicos portugueses. Primeiro foi de ônibus, tomando a linha 602. Me acompanhou, ainda, de metrô, pegando a linha verde, até a estação da Trindade, outro centro nevrálgico da muvuca portuense.
Alguns passageiros, como eu, acharam estranho meu livro nas mãos (cheio de colagens e frases na capa e contracapa), sob meu olhar grudado em páginas amarelas (aliás, nome antigo para listas telefônicas comerciais), e tentavam driblar minha distração para ver se conseguiam decifrar o enigma da capa tão esquisita. Até porque, livro amarelo em Portugal é sinônimo de livro de reclamações.
O livro de Vanessa também tem gente reclamando, é um fato, mas, sobretudo, filosofia de botequim, gente graduada em vida e relações (ralações) humanas; tem gente simpática, preguiçosa, perdida, flirt, busologia (estudo de ônibus, claro), sapato velho, perdidos e achados, xerifes, caminhoneiros, faxineiros, arroz com feijão, notícia de jornal, amigos que nunca se viram, e até Gerador automático de Reportagens. E ela, a repórter de serviço, precisou de um ano para gerar esta longa-metragem da prosa-verdade, muita conversa fiada, aprendizado de telemarketing e anotações q.b., para dar conta do recado com tantos dados e histórias cruzadas, inteligentemente, sobre o Terminal. Nada é escrito à toa e sem um sentido de ligação.
Depois, Vanessa se mune de episódios caricatos:
São mais de 2 mil informações fornecidas diariamente pelas atendentes do balcão (117 por hora, quase duas a cada minuto). Respostas a todo o tipo de pergunta, feitas pelas pessoas mais incomuns e em qualquer idioma. ‘Você conhece aquela teoria de que o ser humano consegue se comunicar em qualquer lugar?’, é o que Rosângela responde, quando lhe perguntam se ela sabe falar inglês. Não, nenhuma delas sabe um idioma estrangeiro, conhece a linguagem de sinais ou decorou o tomo L da enciclopédia, mas parece não fazer diferença.
Poderia ser o design a grande originalidade deste livro (não deixa de o ser, claro), que resulta de um trabalho de fim de curso e a estreia da autora na literatura, mas há vida além do julgamento pela capa. A grande proeza desta obra é, sem dúvida, a mistura equilibrada de estéticas literárias: ora se serve do jornalismo narrativo, ora da técnica de roteiro, passeando pelo discurso direto e indireto, do grafismo neoconcretista, da técnica do microconto, para misturar recursos estilísticos como a metáfora, as onamotopeias, e a enumeração sui generis que abunda num terminal onde a overdose é apenas um eufemismo para a iniciação a São Paulo.
Isto só prova que esta paulistana balzaquiana, além de dominar muito bem os recursos da Língua Portuguesa, sintaxe, semântica, gramática, e estéticas literárias, sabe brincar com as palavras, reinventando um estilo eclético, para este livro-reportagem.
Depois, sua cadência de prosa acelerada, numa contemplação quase sem fôlego, por vezes, é um retrato fiel da fugaz São Paulo, com seus cerca de 15 milhões de habitantes. Por isso, esse terminal só pode ser a loucura desenfreada, como se estivéssemos olhando um filme em fast-forward. Só que é a vida real, nessa aceleração. Uma análise cirúrgica sobre a psicologia e os hábitos humanos, uma microscópica dissecação das rotinas quotidianas.

* Vanessa Rodrigues é jornalista independente. Nasceu em 1981, em Portugal. Viveu cinco anos em São Paulo, como correspondente da rádio portuguesa TSF e jornal Diário de Notícias. Atualmente colabora com a TSF, Revista (jornal Expresso) e Notícias Magazine.
 

** A foto da rodoviária Tietê foi extraída daqui.

quarta-feira, julho 17, 2013

Valsa da Chuva, poema de Vanessa Ribeiro Rodrigues, lido por Ana Bastos

O evento Letras na Avenida continua a decorrer no Porto. E o livro "O Barulho do Tempo"( Culture Print ) anda por lá solto, pronto para ser levado para casa. Para vos inspirar, deixo-vos aqui um áudio exclusivo. O poema "Valsa da Chuva" não está neste livro e serve, por isso, para aguçar o apetite. É lido com a bela voz doce e tropical da minha querida amiga Ana Claudia Gondim Bastos com pequena sonoplastia que andei a inventar. É ouvir para embalar a noite. 

quarta-feira, julho 10, 2013

Malvada letargia do deserto

Tenho travado uma luta densamente paradoxal desde que cheguei à Jordânia. Nada de grave. Eu explico: uma peleja entre a vontade de escrever algo que se aproveite e a letargia imposta pelo peso que o ar do deserto, o calor e o oxigénio rarefeito, filtrado pelos grãos de areia imperceptíveis que o vento traz. Essa apatia, inércia involuntária, entranha-se de tal forma como plasmas na pele que mexermo-nos, pensar ou criar parecem tarefas hercúleas tão contrárias à minha habitual hiperatividade. Eu juro que bem ouço o tico e teco a discutir e tenho tentado várias estratégias que contrariem e submetam a aridez ao seu lugar somente de condição ambiental. Vitaminas, água q.b., suminhos de maçã, fruta energética, café, chá preto, ventoínhas, banhos de água fria pela manhã. Enfim, debalde. Não choveu desde que cá cheguei, às vezes falta água em casa e é preciso chamar homens que dizem que chegam às sete da noite e aparecem às dez. Apercebo-me, pouco a pouco, como areia fina da ampulheta, que dias assim sugam energia vital para criar. Sou uma rapariga dos trópicos latino-americanos, do Atlântico, das Amazónias, a tentar entranhar-me no deserto. Mas não está fácil. É como vivermos um sonho, acordados, do qual não despertamos. Sabem aquela sensação de estarmos a sonhar e de termos que acordar, tentando abrir os olhos, mas as pinças das pestanas parece que se agarram, coladas. É mais ou menos isso!

Mas atenção, não que se viva numa apatia por aqui, pelo contrário, o tempo de trabalho nestas coordenadas geográficas, escasseia, buliço de tarefas que se intercalam. A luta que travo é categoricamente essa: a de o corpo emitir lentos movimentos biológicos, neuro-biológicos, quando a vontade da alma (aquilo que se transpõe à motivação, que vai além do entusiasmo, que emana de nós) é outra e a agenda se carrega de tarefas que não cessam nunca, numa reinvenção habitual de pequenos mundos onde a letargia do deserto não cabe não senhora. Tiranices, ou um complô orquestrado pelo complexo do deserto.

terça-feira, julho 09, 2013

O baú de Schultz, conto publicado na Revista Pessoa


O conto "O Baú de Schultz" que submeti à Literária Revista Pessoa há uns meses foi seleccionado e publicado hoje.

"Mas no meio de bélicas condições há sempre amor: amores impossíveis, amores fiéis, desamores, fugazes afetos amorosos, um futuro a librar na condição efémera dos despojos, a esperança amorosa do regresso, o Amor, por si, como sobrevivência. Foi o caso deste homem e desta mulher..."

PARA LER MAIS seguir este LINK

domingo, julho 07, 2013

Verão Árabe

O avô de Madlah está nos créditos finais de Lawrence of Arabia (1962), um filme sobre a revolução árabe, pela liderança de um inglês, e que David Lean adaptou para o cinema a partir do livro Seven Pilars of Wisdom” de T.E. Lawrence. Lis vê esses mesmos pilares, a quebrar o horizonte, orgulho de paisagem, enquanto está sentada numa tenda beduína no Wadi Rum, o deserto jordano, onde Lean filmou esse sucesso de bilheteiras. 

Fora da tenda, 45 graus; dentro: tapetes multicores, chá de maramya (sálvia), e dois homens de túnica branca, lábios gretados e pele queimada pelo sol, à conversa com uma mulher, sem véu. É nestas alturas que a literatura corporiza e Lis reconhece esses personagens reais de um filme longínquo. A mesma lonjura, quiçá, que faz com que Madlah não façam ideia do que seja a Primavera Árabe, e nem ela, de fato, lhe faça muita diferença. É um homem do deserto e, sempre que vai à cidade, fica com saudades deste silêncio a vento. 
 
Primeira lição, ensinam a Lis, no Médio Oriente só há duas estações: Inverno e Verão. A Primavera Árabe é, portanto, uma metáfora para o desabrochar de uma mudança de alguma coisa que ainda não existe e ninguém sabe muito bem para onde vai. 

Todavia, da mesma forma, que L. das Arábias, o do livro e o do cinema, revolucionou um imaginário coletivo, Lis tem provas de que a Primavera Árabe tem sete novos pilares a edificar-se no conhecimento da nova geração oriental: 1) a polícia de inteligência anda mais permissiva; 2) o ateísmo está galopante; 3) a internet mostra a censura; 4) as vozes por direitos humanos mais ativa; 5) há mulheres nas ruas depois das 22h; 6) vozes críticas nas televisões árabes sem medo de represálias; 7) e muita Literatura a ser parida. 

Quente, muito quente. 

Palavras a 40 graus. 

Um Verão literário!

Crónica publicada por Vanessa Rodrigues a 5 de Julho no Semanário Grande Porto, na página Bairro dos Livros, iniciativa Culture Print| Coluna partilhada, semanalmente, entre Jorge Palinhos, Rui Manuel Amaral, Rui Lage