quarta-feira, junho 24, 2015

As letras no caminho

Depois da última crónica, nunca mais me dediquei à literatura de chão. Até porque, apercebi-me, esse efémero estilo literário, apenas cultivado pelas divagações de quem olha a cidade com o ímpeto ingénuo de achar que, ainda, lhe poderá descobrir interstícios, é exercício reservado a quem já esgotou todas as possibilidades de inventar charadas no regresso a casa.
Acho que a culpa, no fundo, é do varredor de ruas, esse ofício invisível e de ruidosa condição, sobre a qual as formigas, as baratas e as aranhas rogam pragas, com toda a certeza. Poderia ter sido apenas o poste, mas não. O varredor de ruas acabou de vez com essa minha experiência iniciática em olhar o chão, privando-me de querer resgatar o dia anterior, pela cartografia do solo. Ele liquida o que resta do dia, aniquila quaisquer vestígios de buliço humano. Se a civilização humana acabasse, no dia seguinte de manhã cedo, no vazio, e os extra-terrestres viessem indagar quem morou na minha rua, com certeza, não restaria qualquer fragmento que pudesse reunir provas para uma narrativa. É que só os restos da rua são capazes de contar a história de um dia numa cidade, ou sobre os seres que as habitam. São excertos fugazes, ao mesmo tempo que epicuristas.
Porém, no caminho para casa, tive uma ideia. Podem aniquiliar os fragmentos do chão, mas não podem fazer desaparecer as letras do caminho. Era isso, as letras do caminho. Foi então, caros leitores, que meti a mão à carteira, e como caderno não houvesse, saquei a conta do almoço e comecei a escrever nas costas nuas desse papel fino e frágil, toda a literatura que encontrava no percurso, olhando agora para o intervalo médio entre o chão e o telhado das casas. Mas acho que vou deixar isto para outra crónica, não me levem a mal, porque, enquanto anotava com dificuldade, e como a caneta começasse a falhar, lembrei-me da Márcia, personagem do meu primeiro documentário, em parceria com F. Gavioli, no contexto do curso da Academia Internacional de Cinema de São Paulo.
Márcia, uma moradora de rua, em Higienópolis, que escrevia em folhas A4 uma mescla de orações aos anjos e episódios soltos da sua vida de rua. Um bom coração a querer dizer que existe além das vicissitudes do funambulismo da vida.
Naquela altura, eu e Felipe voltamos para lhe mostrar o documentário de 20 minutos. Ela achou que ficara curto. Que ficara muita coisa para contar, que há sempre muita coisa para contar. Um ano depois, em 2008, ela enviou-me um e-mail a dizer que precisava falar comigo. Respondi que já não estava em São Paulo, mas perguntei como a poderia ajudar. Nunca mais me respondeu. O tempo, varredor de ruas da memória, tomou conta do esquecimento pendular. Porém, na segunda-feira, fiquei a saber que o F. mudou de bairro e mora perto dela, da Márcia. Depois destes anos todos, reencontrou-a. Está a ajudá-la.
“- Ela conseguiu um pequeno serviço que permite que durma em uma pensão, está fazendo um curso de costura que é seu sonho, além de receber essa pensão e ter uma conta em banco que lhe dá bastante dignidade. Outro dia fomos em uma pizzaria comemorar seu aniversário, fazia mais de 20 anos que não entrava em uma. Apesar de ainda divagar ferozmente sobre vários assuntos que são abordados em nosso documentário, ela diminuiu, consideravelmente, o número de papéis que cola nas ruas, sinto que está mais calma e mais centrada, já que tem mais perspetivas.”
Acho que a Márcia, agora, aos 66, já pode inventar charadas no regresso a uma casa. Podem ser letras no caminho?

*Crónica publicada a 24 de Junho, no Porto24, com a chancela Bairro dos Livros. 

sábado, junho 13, 2015

Manual para a Literatura de chão

Olhar para o chão pode não ser, necessariamente, condição melancólica, ou síndrome de bisonhice e muito menos infortúnio. Conheço personagens reais que se dedicam, diligentemente, no ofício da caminhada, à cogitação filosófica de investigar os interstícios do passeio, seus alinhamentos, ora geométricos, ora esburacados, driblando fezes de animais (campo minado e oleoso), invólucros de batatas fritas, folhas velhas, jornais estropiados e pastilhas elásticas com o ADN de alguém. Como se percebe, há todo um universo de indagação e infinito raciocínio, digno das teses mais doutas da academia. Outrora, eu própria já pude contemplar notas de cinco euros, anéis e pulseiras de prata, bugigangas, farrapos, fios, cascas de laranja e beatas. Tudo coabitando na mais serena harmonia, como se fossem o princípio do universo e estagiários da decomposição. Ultimamente tenho sido bastante afortunada em moedas de um cêntimo. Posso jurar que a lata de chá onde guardo as moedas de cor de cobre já deve dar para pagar dois cafés e meio no estaminé do senhor Manuel. Mais surpreendente, porém, será a descoberta que fiz recentemente.

Caros leitores, sim, o chão que pisamos é terreno fértil para parir aquilo que denomino de agora em diante por literatura de chão. Bem sei que poderia ter-me dedicado a encontrar um nome mais sexy, digno dos anais da literatura comercial e que criasse buzz na comunicação social, do que simplesmente ter resumido a coisa a literatura escatológica. Conquanto essa possibilidade fosse a saída mais escorreita, devo confessar que seria indigna designação para o zelo que merece.

A semana foi profícua nessa contabilidade literária. Não fosse este escrutínio detetivesco para as coisas do chão e eu não teria encontrado, cento e sessenta e nove passos depois de sair de casa, a-fotografia-tipo-passe-de-um-rapaz. Deveria ter, mais ou menos, dez anos, era ruivo, sardento à la Tom Sawyer, certamente fugitivo da carteira de uma avó babada, pusilânime e conservadora – a avaliar pelo desgaste –, provavelmente caída no momento em que guardava o troco dos docinhos húngaros acabados de comprar na confeitaria em frente. Não teria, da mesma forma, me deparado com o bilhete da Zulmira: “Deixei bacalhau à brás no frigorífico”; o resto de um exame de História da Sandra: “a II Guerra Mundial foi um momento de grande importância, porque…”; um andante rasgado; uma oração a santa rita de Cássia: “a santa dos casos impossíveis e desesperados”. Não fosse eu o mais próximo do CSI português, exímia dissecadora das palavras calcadas no chão e, claro, nada disto seria possível: “Sandrine, não me deixes, és a minha cena. Amu-te”. Bem sei, não é bonito, mas pode ser profundo, dependendo dos magotes contundentes que se dá na Língua Portuguesa.

Caros leitores, estava preparada para que tudo acontecesse, menos para isto: mil quatrocentos e setenta e oito passos depois, um bilhete que era pura poesia, uma ode a este texto: “Sem ti, fico no chão.” Estava quase a empreender um projeto especial diário, apenas dedicado à literatura de chão, mas temo que durante uns tempos terei de me recolher. Quando me levantei para recolher este último exemplar da mais excelsa literatura, o meu universo ficou, de facto, mais perto do solo, entrou em transe, vendo estrelas, luzes, seguido de uma dor aguda. É, meus caros, aquele poste de iluminação não estava nos meus planos.

*Crónica publicada a 5 de Junho, no Porto24, com a chancela Bairro dos Livros.

quarta-feira, junho 03, 2015

Arqueólogos descobrem destroços de navio negreiro português na África do Sul

>>> "Pela primeira vez foram encontrados vestígios de um naufrágio que terá ocorrido com escravos a bordo. Uma descoberta histórica que poderá avançar o conhecimento actual sobre o tráfico transatlântico, dizem os investigadores." Notícia no jornal Público. 

>>> "Underwater archaeologists believe they have achieved a milestone moment in the study of the slave trade after making what is thought to be the first ever discovery of a sunken slave ship.
Long-buried artifacts from the wreck of the Sao Jose-Paquete de Africa, a Portuguese vessel which sank off the South African coast on its way to Brazil in 1794, are due to be unveiled in Cape Town."