quarta-feira, dezembro 16, 2015

Onde andará Ingrid?

1. No primeiro Natal de Alberto, os ratos roubaram o bacalhau da pia, onde o peixe estava de molho. Toda a família, que poupara o ano inteiro para poder ter um pedaço de Portugal na vida emigrada no Brasil, ficou a pão, batatas e cebola. Dias depois, como o cheiro nauseabundo infestasse o ar com a sua pestilenta marca de podridão, foram descobrir restos de bacalhau por baixo dos tacos.

2. Chego ao Brasil e a vida parece ser mais lírica. Senão vejamos: durmo num quarto onde as estantes são albergue do mais excelso legado literário do Brasil com edições lindas, antigas, ornadas de pó implacável e as cicatrizes amareladas no papel. Mais: viajo para a Ilha de Paquetá com as Anas e vamos a ler em voz alta “A Moreninha”, romance do século XIX de Joaquim Manuel de Macedo que se terá passado nesse pedaço de terra. Depois, chego a conhecer um descendente do escritor Guerra Junqueiro; outra: consigo uma edição rara do livro “Emigrantes” do Ferreira de Castro, com ilustrações de Júlio Pomar. Há qualquer coisa no ar dos trópicos!

3. Alberto foi um dos que inauguraram a estrada que rasga o Brasil do Rio de Janeiro até Brasília, em 1960, ao volante de um camião, transportando os móveis dos políticos que estavam de mudança. Achou que voltaria com o serviço pago, mas tudo o que lhe deram foi um tal de cheque. Nesses 15 dias, a mulher, que lavava roupa para fora, amealhara o suficiente para comprar o fogão que cozinharia o primeiro jantar de Natal. Ele que fosse trocar esse tal de cheque porque era preciso ir, finalmente, comprar o bacalhau. Alberto não poderia adivinhar que, dois anos depois, voaria num pássaro gigante para Portugal e que traria o bacalhau escondido numa mala.

4. É a primeira vez que Ingrid viaja de avião e que passará o Natal sem os pais, diz-me. Testemunho o seu batismo de ar, com nove horas de viagem, atravessando o Atlântico, aos 16 anos. Ela conheceu uma amiga portuguesa pela internet, os pais certificaram-se que essa amiga existia e que não era um homem mal intencionado. Lá a deixariam passar um mês em Portugal. Aterramos, separamo-nos com a promessa que nos encontraríamos do outro lado, cumpridas as formalidades fronteiriças; passo com o meu passaporte eletrónico mais rápido do que ela; perdemo-nos. E recordo a frase do livro “A menina quebrada” de Eliane Brum: “hoje, sou povoada pelos homens e mulheres extraordinários que escutei como repórter. E agora tudo o que vivi dará sentido ao que virá”. Ocorre-me, talvez por isto: “Onde andará Ingrid?”