quarta-feira, julho 15, 2015

A chuva do corpo

Não chove há dois dias em Bissau, a capital guineense. A terra teve tempo de secar, o bafo quente é o céu que respira e o sol exuberante vigia-nos. Está implacável e jocoso da nossa condição ofegante. Talvez seja ele que faz a terra palpitar. O maestro tribal que cadencia os passos dos homens e das mulheres, das crianças e dos recém-nascidos. O compositor das emoções, dos sonhos e dos sorrisos. Há-de ser responsável pela percussão telúrica e pela forma como o corpo de Ernesto Nambera contorna o ar, esses interstícios da respiração do infinito. Este bailarino do Ballet Nacional da Guiné-Bissau movimenta-se com explosão, gira rápido, pisa o chão com força e gravidade, desliza os pés, e salta como um funâmbulo sob o fio invisível das leis da Física. Parece que levita.
O tambor é o coração acelerado. O compasso entra-nos pelos poros, parece que nos rasga, faz-nos explodir numa espécie de catárse. A terra em transe, e o corpo a parecer que quer levantar-se, mover-se, dançar. Ernesto, aquele que dança, o engenheiro informático que está no segundo ano de gestão. O dançarino guineense que estudou três anos na École des Sables (escola de areia, essa chuva do chão), em Dakar, Senegal, com uma bolsa da embaixada norte-americana quer, um dia, ser diretor-geral de cultura, para dar o seu conhecimento ao país. Foi o número um da turma dele e o pai foi o maior impulsionar da carreira de dançarino, quando os amigos lhe chamavam “bandido” por só gostar de dançar. Começou a fazer playback, em concursos, nas festas da adolescência. Hoje é coreógrafo e um bailarino forte, robusto, com alma, de olhos focados no horizonte.
É balanta, palavra que significa literalmente “aqueles que resistem”, uma etnia dividida entre a Guiné-Bissau, o Senegal e a Gâmbia. São o maior grupo étnico guineense, representando mais de 25% da população total do país. São binhan braza, povo braza. Entre fulas, manjacos, bijagós, papéis e mandigas, reinam os balantas. Há os balantas bravos, balantas cunantes, balantas de dentro, balantas de fora, balantas manés e balantas nagas. Ernesto já nasceu em Bissau, tem esse sangue quente e foi a dança que o levou a saber mais sobre as origens, ao pesquisar sobre a música Tabanca. Redescobriu-se guerreiro. Em 2005, a coreografia que preparou para o Carnaval, mesclando folclore africano com dança contemporânea, foi vencedora. Agora, ali no palco do Centro de Cultura, é novamente a sua dança a mesclar estilos e tradições de ritmos do folclore de África. Um corrupio explosivo, que faz o corpo dos homens e das mulheres latejar.
É ele, Ernesto Nambera, sem perder o fôlego, como se homenageasse os antepassados, a condição tribal, exaltando a vida, a morte e o infinito. Celebra como se evocasse os janbacos, os feiticeiros, ou curandeiros tradicionais. E, neste embalo, vamos juntos, numa emoção forte, incontornável, porque, afinal, ela veio. É nesta erupção súbita, que redescobrimos poros por onde expelir toda uma tempestade tropical, quente e fria. É esta chuva no corpo. Ernesto nela e nós em Ernesto.

*Crónica publicada a 15 de Julho, no Porto24, com a chancela Bairro dos Livros.