quarta-feira, março 27, 2013

Hoje talvez não vá. Só é meia noite na nossa cabeça quando queremos que já seja amanhã. Hoje é um dia bom para deixar que a chuva escorra no nosso rosto. Um delicado fio, que toca diáfano a derme, ternurento. Hoje, por exemplo, enquanto falava contigo ao telefone no meio da rua, nem me apercebi que o céu começara o chuveiro copioso. Uma morrinha que encharca. Uma modorrenta garoa que nos deixa húmidos de natureza. Foi tão bom sentir as gotas a afagar o rosto, e a embrulharem-se nos cabelos. Já há brancos. Teremos de aprender alguma coisa com os dias, com as horas que criamos aqui dentro. E eu até desliguei a música para ouvir que a terra tem um ritmo cardíaco. Há chilreares matutinos, nas árvores ainda um pouco despidas, esguias: parecem raízes do céu. Afinal, acho que vou. É uma forma de enganar o tempo.

segunda-feira, março 18, 2013

bairro dos livros| Snifar Papel


 Balsâmico, madeira, acre, mofo, floral. Acho que o aroma que a Lis mais aprecia na degustação de um livro é vanilina. (Faça você mesmo: agarre um livro e snife-o, sente-o?). O cardápio de fragrâncias literárias poderia continuar, até porque, há um perfume com essência a livro: o Paper Passion, criado pela perfumista Gaza Schoen, a pedido do editor Gehrard Steidl.


Banal para snifadores de páginas, portanto, que evocam invectivas a quem não souber que o aroma livresco se deve à lignina, ou lenhina, uma substância que as árvores têm semelhante à baunilha. O mesmo pode acontecer para alguns tipos de papel onde se inventa vários tipos de literatura: postais, bilhetes, post-its, sebentas, revistas...

Não admira, por isso, que quando Lis folheou e “snifou”, recentemente, alguns números da Hei, revista cultural portuense dos anos 90 do século XX, editada por Jorge Rui Martins, lhe viesse à memória a infância: “isto cheira à casa da minha tia”, confidenciou-me.

O que ela quis dizer, decifrei depois, é que o olor se assemelhava ao da caixa de madeira onde a tia guarda literatura epistolar: as cartas, os telegramas e os aerogramas (foi Fernando Pessoa quem os inventou) que o namorado, hoje marido, lhe enviava de Moçambique. Eram às dezenas.
Nessa altura, a história vinha toda misturada, porque os aerogramas não estavam numerados. Mil e cem cartas apaixonadas, contou-as Lis, que falam de emboscadas no meio do amor, de “turras” no meio de minas, tanques, explosões e mortes.

A Lis jurou-me, ainda, que, enquanto as lia, sentia o cheiro de cacimbo no mato africano e de petricor, nome do odor da terra molhada depois da chuva. Como pode ela sentir o olor de um lugar onde nunca esteve? E somos nós atraídos pela olência deste ou daquele livro; e dos odores que nos fazem sentir? Será por isso que recentemente lançaram um e-book com aromas? Oh, a que cheirarão os livros do futuro?: terá a borracha essência a baunilha? Ainda haveremos de snifar ecrãs à procura do cheiro da literatura.

(Crónica publicada no dia 15 de Março no semanário Grande Porto, na página Bairro dos Livros, numa iniciativa que reúne ainda os cronistas Rui Lage, Rui Manuel Amaral e Jorge Palinhos)

|Ouça a versão PODCAST:



segunda-feira, março 04, 2013

manif 02 de março, porto

Não se fazem revoluções sem fazer algum barulho, sem memória, sem consciência política, sem organização civil, sem conhecimento. Levei o gravador e a máquina fotográfica, para que os meus também um dia, não esqueçam.












sexta-feira, março 01, 2013

*[.a tinta fina.|três] a escritora dos silêncios

entrevista

Azar Nafisi. "As pessoas em condições extremas [como exílio ou prisão] criam espaços e regressam às histórias, porque nelas há esperança" 

Ouvir o PODCAST nesta caixa abaixo, incorporada do SoundCloud. Clicar no PLAY cor de laranja.

 

vanessa rodrigues|jornalista

Tornar a história de vida, as opressões e o exílio como fio condutor das histórias dos seus livros é uma forma não só de lidar com a dor, mas também de ganhar controlo sobre o próprio percurso existencial. Não admira, por isso, que esta mulher de voz suave, pausada e até frágil quando o assunto é direitos humanos, que o Irão, sua terra natal, lhe cause "muita dor", mas também lhe dê "muita esperança". Ela acredita que o país que a "expulsou" ainda "há-de ser uma voz importante de democracia para o mundo".

De olhos ternos, compadecidos e conciliadores, a escritora iraniana Azar Nafisi, que foi expulsa da Universidade de Teerão por se ter recusado a usar o véu islâmico, é uma feminista e começou por escrever sobre os silêncios que lhe nasciam por dentro.

Aos 13 anos foi estudar para Londres e, quando voltou, aos 17 anos, percebeu que o país que tinha deixado mudara, num retrocesso democrático. Foi-lhe imposta uma nação com a qual não se identificava, que a esmagava "como mulher, professora, como ser humano". 

A premiada autora do livro "Reading Lolita in Teharan", atualmente a viver nos EUA e diretora do "Dialogue Project" dá voz aos silêncios que lhe correm nas veias, nesta conversa informal em que cita o poeta iraniano Hafez, em que fala sobre literatura, exílio, cultura persa e opressão política, numa esplanada de hotel em Paraty, pequena vila brasileira, onde acontece anualmente a Festa Literária Internacional de Paraty.

"Não conheço outra forma melhor de nos relacionarmos com o mundo do que escrever; nós escritores somos um pouco exilados; tenho o meu mundo portátil; e escrever é como apaixonarmo-nos". 
 

*a tinta fina é uma rubrica quinzenal (entrevistas com escritores) da autoria da jornalista Vanessa Rodrigues, no blogue pessoal Crónica Luna Samba, por amor à literatura. As entrevistas podem ser exclusivas do blogue ou já ter sido publicadas na imprensa. A próxima será publicada a 15 de Março