quinta-feira, abril 28, 2011

2. Índex para entender a Paixão: epílogo crioulizado; posfácio carioca



Desta vez a Paixão ficou à porta. Mas dizem que à porta muita coisa acontece (como no meu coração, quando cruza a Ipiranga com a Avenida São João). E já lá vamos, ao Brasil, pois antes temos o azimute em Cabo Verde, à porta da Livraria Índex, ao lado de um Palácio de Cristal, para o segundo round do colóquio "Tinha Paixão", no Porto.

Tanto Porto ao redor. Mais perto do Douro. Tanta Primavera!

Desta vez cheguei cedo, com grãos de areia de sobra na ampulheta. Não chovia, troquei as botas velhas pelas sabrinas e roupa clara e, em vez do "blues" baixinho-sussurado, ouvi chilreares, abracei a Patrícia (havíamos prometido isso, para agradecer as paixões pela Literatura) e sentei-me na soleira da porta da Livraria, a meter conversa com os funcionários, enquanto o Flávio não chegava (e não atendia o telefone). 

Em plano paralelo, que o tempo é coisa tirana de planos sobrepostos, a Patrícia esperava um câmara de filmar, para que a Paixão, quem sabe, virasse um pouquinho mais cinema. E paixão em cinema sempre tem beijo na boca, lentos, pôres-do-sol alaranjados (como o de ontem), traduzindo a linguagem universal dos afectos.

Mas, desta vez, o assunto era teatro. Respeitemos a quinta arte, assim, agora, promíscua com a literatura, sua sucessora, como sexta no andamento da valsa das artes. Amante nossa. Cúmplice lírica dos nossos encantos. E encanto é coisa bonita de se ver, quando o olho brilha. E coisa bonita de se ver é gente apaixonada. Pelas artes. Pela vida. Pela pele doce. Pelo cheiro. Pelos abraços. Pela arte do funambulismo que podem ser os acasos. Tropeçamos.

Há esse; aquele caminho. E, ontem, foi dia de limbo. Se não tivesse pensado no Flávio e na Patrícia, não teria ido, para a porta, mudado do metro para o autocarro, para mudar o cunho na tábua onde se escreve a vida (há esse; aquele caminho), e ido para a porta da Índex; e conhecido o Eduardo; nem saberia que a Ana, agora um pouco mais londrina (mas já a pensar fazer as malas de vez para o Verão tripeiro: longas tardes hão-de ter intermináveis finos) estava por cá. Ora mais um abraço, assim, apertadinho!

E o mundo, sabemos, este globo redondinho de acasos, semelhanças e afectos, que nos junta em células de gente que conhece gente que nós conhecemos (e não é preciso Facebook da vida para o concluirmos, embora tenha sido ele que me trouxe, pela primeira vez, ao "Tinha Paixão"), que nos conhece e há-de conhecer. Soube do colóquio através da Patrícia, que conhece o Eduardo, amigo da minha amiga Ana, que conheceu a Suna Cohen, que conhece o E. que eu conheci, que depois apresentei ao Flávio, que é meu amigo, porque era já amigo do J., apaixonado por Cabo Verde, pela arte de manobrar a prosa, pela dramaturgia, pelas letras.

Feito o preâmbulo necessário, chegamos ao recheio, já a ver-se-posfácio: para mim, desta vez, a paixão ficou à porta e foi feita de gente. De afectos. De acasos de encontros. De leveza e sol.

Há-de muito, lá dentro, na Livraria, depois de eu me ir - e de realmente começar o colóquio - ter-se dito sobre a sacanagem do teatro de Nelson Rodrigues (é batata) e a ruptura que cunhou na dramaturgia brasileira, tendo o Rio como cenário (e isto não é nome de bar na Lapa, não), as gentes, a ganância, o vedetismo, e a psicologia humana como balão de oxigénio, para retratar os meandros da sociedade carioca. O submundo do crime, da escatologia humana, ao serviço do jornalismo policial.

O senhor Rodrigues (também o sou, por isso parece-me oportuno apropriar-me de parentesco deste Nelson) obsceno da época (mea culpa, sou uma Mulher com pecado) – nascido em Pernambuco, terra onde cangote é coisa sedutora, um pescoço a pedir xero (xê-ru: cheiro), e quando se vem de uma terra onde se pede um xero no cangote, há-de Freud entrar em cena para falar de recalcamentos com a prosa como catárse – haveria de perdoar-me por ter ficado à porta.

Um homem que escreve que é “um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura” e que ela é a sua “óptica de ficcionista”, como “anjo pornográfico” há-de absolver uma mulher com falta de tempo, como eu, que viu a paixão à porta da Índex. 

Há-de perdoar-me por não ter ouvido Flávio falar de sua arte teatral (que várias vezes tive o privilégio de ver aqui, como na terra onde algo acontece em meu coração), de mornas, crioulas de olhos lindos e corpos ternos, generosos, mais que dourados.

Há-de desculpar-me por não ter transposto a porta, parado os grãos da ampulheta, inebriada de amigos, carinho e sol (outra vez), mas isto há-de querer dizer alguma coisa sobre a tipologia da paixão, índice de amores, do hemisfério pessoal dos afectos e, sabemos, sabe sempre melhor ver o amor pelo buraco da fechadura, prontos para alguma sacanagem. Porque sem sacanagem, meu bem, a paixão é como cinema sem beijo. Praia sem banho de mar. Fino sem tremoços. Terra molhada sem cheiro. (Avião sem asa, fogueira sem brasa, futebol sem bola, piu-piu sem frajola, amor sem beijinho, circo sem palhaço, namoro sem amasso, queijo sem goiabada). E nós gostamos de filmes, assim, com açúcar!

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