segunda-feira, maio 02, 2011

A propósito da caça ao senhor Bin Laden, entrevista a Michael Scheuer, ex-agente da CIA, especialista em segurança externa (revista Pública, secção Ideias Fortes, 2005, vanessa rodrigues)


imagem retirada de maggiesnotebook.com

Ainda que tenha falhado na previsão, pois parece, Bin Laden é morto, Scheuer, um especialista na matéria, a admitir, em 2005, contra o discurso oficial, que os presidentes Clinton e Bush tiveram oportunidade de caçar Bin Laden e decidiram não actuar! Algo estranho neste puzzle, tentáculos da ligação petrolífera entre a família Bush e Bin Laden que Michael Moore mostrou em documentário? A verdade, o que entendemos por verdade, é como um buraco negro!


A invasão ao Iraque foi um erro estratégico monumental e desnecessário”

O Ocidente está a perder a guerra contra o terrorismo porque ainda não percebeu que Bin Laden não quer atentar contra a democracia, mas defender-se da política externa norte-americana no Oriente. A tese é de Michael Scheuer, autor do best-seller “Orgulho Imperial” (recentemente traduzido em português e cujas primeiras versões foram editadas sob anonimato). Este ex-veterano da agência de investigação norte americana (CIA), alega que o líder da Al-Qaeda é um génio e acredita na iminência de um ataque nuclear.
Por Vanessa Rodrigues

Defende que o Ocidente falha em entender as motivações islâmicas e que, por isso, vai perder a guerra contra o terrorismo. Que motivações são essas?
O conflito resulta da contestação dos muçulmanos à política externa dos Estados Unidos da América (EUA) e do Ocidente, que consideram ter um impacto letal sobre o mundo islâmico. As políticas consideradas como anti-islâmicas são, sobretudo: o apoio ilegítimo dos EUA a Israel; a presença civil e militar norte-americana na Península Arábica; a presença norte-americana noutros países islâmicos (Iémen, Iraque, Afeganistão e Mindanao - Filipinas); o apoio dos EUA e do Ocidente a nações que oprimem os muçulmanos – Rússia, Índia e a China; o apoio a tiranias árabes como o Egipto, a Arábia Saudita e Argélia, entre outros; a aquisição de petróleo árabe a preços abaixo do mercado.
Os americanos e os europeus nunca compreenderão a motivação dos inimigos islamistas enquanto os respectivos líderes [políticos] – como Bush, Blair, Berlusconi, Schroeder, etc – continuarem a dizer aos eleitores que os islamistas são motivados pelo ódio às nossas liberdades fundamentais e direitos.

Porque considera que o conflito vai perpetuar e multiplicar-se?
É provável mas não ainda inevitável. Os muçulmanos crêem que o Ocidente está a atacar a sua fé. Se os líderes ocidentais aceitarem isto e abandonarem a ilusão de que os muçulmanos odeiam a democracia, há possibilidade de a guerra ser mitigada com o tempo. Algumas mudanças nas políticas externas ocidentais e actividades militares intensas para erradicar o maior número de membros da Al-Qaeda permitirão diminuir, gradualmente, a ameaça, senão eliminá-la totalmente. Quanto mais tempo demorarmos a perceber as motivações islâmicas, mais depressa surgirá um longo e inevitável banho de sangue entre civilizações.

Qual devia ter sido a posição dos EUA face ao Iraque? A invasão foi um erro?
O Iraque não era uma ameaça aos EUA. A América não tem a responsabilidade de afastar governos, simplesmente, porque eles se comportam de forma criminosa para com seus compatriotas. Mesmo que tivesse esse tipo de armas, o Iraque não tinha capacidade para levar a cabo uma acção de destruição maciça nos EUA. A invasão ao Iraque foi um erro estratégico monumental e desnecessário. Consequentemente, criamos um campo de treinos, com resultados multiplicadores, para os rebeldes islâmicos melhor do que aquele que eles tinham no Afeganistão. Criamos uma área privilegiada a partir da qual a Al-Qaeda pode operar na
Síria, Jordânia e Turquia – e pode alcançar, via Jordânia e Síria, o Líbano e Israel. Agora somos vistos pelos muçulmanos como invasores de três grandes santuários: a Península Arábica, Iraque e (via Israel) Jerusalém. Para além disso, validamos muitas das revindicações de Bin Laden contra as intenções anti-islâmicas norte-americanas e criamos um ambiente para a jihad defensiva que ele sempre evocou.

Diz que a “Al-Qaeda vê o mundo de forma mais clara do que nós [ocidentais] ”. Porquê?
Bin Laden e a Al-Qaeda sabem que milhões de muçulmanos odeiam a política externa dos EUA, ao mesmo tempo que admiram a sociedade norte-americana. Por isso, a Al-Qaeda sabe que muito poucos muçulmanos lutarão contra os EUA – sacrificando as suas vidas – contrariando o nosso estilo de vida e sociedade democrática. Sabe, porém, que uma grande (e crescente) maioria de muçulmanos está disposta a lutar e morrer pelo esforço de mudar as políticas externas do Ocidente sobre o mundo islâmico; bem como deseja desmobilizar os contingentes militares das regiões islâmicas ocupadas. Na minha opinião esta é uma visão muito clara do mundo sob a perspectiva islâmica. Os líderes americanos, por outro lado, vêem o mundo da forma que querem que seja, não como ele é. Estão a conduzir a América para a derrota nas mãos de Bin Laden e outros islamistas.

E porque é que a Al-Qaeda não ataca directamente os líderes políticos ocidentais?
Quem legitima o poder político são os eleitores, por isso se os líderes foram eleitos e persistem nas respectivas políticas externas contra o Oriente é porque concordam com eles. Por essa razão têm culpa e têm de pagar por isso. Esta é a perspectiva islâmica.

A opinião pública europeia revela rejeição pela política externa de Bush. Será que os europeus ‘vêem de forma mais clara do que os americanos?
Os europeus vivem na esperança da utopia. Eles não vêem de forma mais clara do que os americanos, mas são bons a enganarem-se a si próprios – e em acreditarem que a guerra é uma coisa do passado, que todas as culturas são iguais e de que o nacionalismo já teve os seus dias. Não obstante todos os defeitos de Bush, ele vê o mundo brutal e perigoso de forma mais clara do que a maioria dos europeus. Os europeus queimaram-se a si próprios com o desastre da segurança ao abrirem as fronteiras. Mais: os europeus são, no seu todo, mais racistas do que os americanos – atente-se na incapacidade crescente de assimilarem e integrarem a população muçulmana. A Europa parece estar pronta para desaparecer gradualmente – evocando o disparate acerca das glórias da diversidade e multiculturalismo – à medida que se afunda no caos ou se converte naquele conceito de Europa de confiança – um mecanismo inventado para restaurar a ordem – o Fascismo.

Que outras “doses letais” o Ocidente pode esperar da al-Qaeda?
Acredito que, num futuro próximo, a Al-Qaeda vai perpetrar um ataque nos EUA mais destrutivo do que o 9/11, talvez usando armas nucleares. Os cientistas e engenheiros da Al-Qaeda têm tentado adquirir tais instrumentos desde os anos 90. Eles têm os meios financeiros necessários. A Al-Qaeda também vai continuar a atacar ou a patrocinar ataques contra as nações aliadas aos EUA no Iraque e Afeganistão. No futuro, a organização é capaz de se virar para ataques que prejudicarão profundamente a economia dos EUA e a dos seus aliados.

O relatório sobre 9/11 refere que os EUA falharam várias vezes na captura de Bin Laden. E George W. Bush?

Bush quer claramente capturar ou matar Bin Laden, e a América teve oito oportunidades em dez de o fazer, no final dos anos 90, sob a liderança de Clinton e pelo menos uma – em Tora Bora, em Dezembro de 2001 – sob o governo de Bush. Em todas essas ocasiões, os líderes norte-americanos decidiram não actuar. O povo americano está actualmente a pagar o preço da covardia moral dos seus líderes.
Apenas por sorte as forças norte-americanas capturarão ou matarão Bin Laden. Ele vive nas montanhas mais altas do mundo; as tribos com quem ele vive valorizam o auxílio que ele deu ao Afeganistão contra os russos e os seus códigos de conduta privilegiam a defesa dos hóspedes com a própria vida (ele é convidado deles); e – embora os líderes ocidentais nunca o admitam – Bin Laden é hoje o líder e o herói mais importante do mundo muçulmano. É improvável que os aliados islâmicos o entreguem aos EUA.

Bush e Clinton são os “covardes morais” a que se refere em “Orgulho Imperial”?
Aqueles que são eleitos para proteger os americanos e depois, ciente e deliberadamente, falham em fazer disso a primeira prioridade, podem ser considerados covardes morais. A era do Conselho de Segurança Nacional de Clinton, os Directores do Centro de Inteligência do FBI, a maior parte dos líderes da Comunidade de Inteligência dos EUA, e o Conselho de Chefes de Pessoal [da CIA] falharam esse objectivo. Esses homens tiveram múltiplas hipóteses de eliminar Osama Bin Ladin e recusaram-se a fazê-lo. Por isso, falharam o dever de proteger os americanos. A administração Bush perdeu, também, várias oportunidades de apanhar Bin Laden e Abu Musab al Zarqawi [líder da Al-Qaeda no Iraque]. A covardia moral é comum na liderança de todos os partidos políticos americanos.

Como é que o conflito entre o Islão e o Ocidente pode ser travado?
Os EUA devem abandonar o Médio Oriente. Tal significa que temos de começar a livrar-nos da dependência do petróleo do Golfo Pérsico e reconsiderar outras políticas para o efeito. Se formos inteligentes o suficiente para nos divorciarmos da ligação com o Oriente, os ataques serão reduzidos e os muçulmanos estarão ocupados – em muitos casos violentamente – em resolver o futuro da sua civilização.

Porque é que a violência é o fundamento da Al-Qaeda?
Bin Laden e outros islâmicos não tiveram outra solução no Médio Oriente – governado por ditadores, tiranos e monarquias déspotas. Muitas pessoas esquecem-se que Bin Laden passou mais de uma década como um pacificador e reformador respeitado na Arábia Saudita. Ele divergiu para a violência somente porque os sauditas recusaram responder às petições dos reformadores, e convidaram os EUA e as tropas ocidentais a infiltrar-se na Península Arábica entre 1990-91. Dessa forma, as actividades reformadoras de Bin Laden não foram muito diferentes do que as tentativas renovadoras encetadas por americanos e franceses antes das respectivas revoluções.

Ao contrário da opinião pública, que considera Bin Laden um terrorista e um lunático, defende que ele é um génio e um gestor brilhante. Porquê?

Bin Laden, a Al-Qaeda e seus aliados são uma ameaça de segurança nacional para os EUA; talvez até sejam uma ameaça à sobrevivência dos EUA na forma como a entendemos hoje. A estratégia brilhante de Bin Laden baseia-se em: manter os EUA ocupados com duas guerras além fronteiras [Iraque e Afeganistão]; ter os norte-americanos presos ao medo de novos ataques; e está a conduzir ao défice o orçamento governamental. As suas acções e ameaças estão a fazer com que os EUA e o Ocidente limitem as liberdades civis – sobretudo a liberdade de expressão e a livre circulação. Para mim, um homem que coloca os EUA nesta situação está mais próximo de ser um génio do que um lunático.

Os EUA estão preparados para evitar um outro ataque como o 9/11?
Não. A América não é liderada por gente séria. Como as coisas estão actualmente, a única forma de um operacional da Al-Qaeda ser capturado a entrar no país só acontecerá se ele for estúpido e entrar por uma fronteira oficial. As nossas fronteiras são vastas e estão abertas, por isso não será difícil fazer entrar uma arma de destruição maciça nos EUA, através de uma delas, sobretudo as não oficiais.

Acredita que a Al-Qaeda teve alguma ligação ao episódio da bactéria do carbúnculo (anthrax)?
A minha suspeita é de que se a Al-Qaeda estivesse por detrás da ofensiva anthrax, teríamos assistido a um ataque numa escala maior. E isso ainda pode acontecer.

A sua demissão da CIA significa que desistiu de lutar contra o terrorismo?
Não desisti de lutar, mas antes optei por o combater de uma forma mais pública. Duvido que eu – ou qualquer outra pessoa – tenha alguma influência para mudar a política norte-americana até que aconteça outro ataque – ainda mais destrutivo – ao estilo do 9/11, nos EUA. Quando tivermos mais umas centenas de americanos mortos, as pessoas vão perceber que estiveram deliberadamente enganadas pelos seus líderes políticos, e vão exigir uma mudança. Espero poder emprestar a minha voz a esse movimento quando essa altura chegar.


Entrevista publicada na revista Pública, jornal Público, em Agosto de 2005

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