segunda-feira, maio 02, 2011

A mulher da Luta

© D. Quintela/Global Imagens
Cresceu com Alice Vieira na mesinha-de-cabeceira, é do Porto, passou por Coimbra, Bradford, Luxemburgo. Vive em Lisboa. Paula Gil foi uma das organizadoras iniciais do movimento da Geração à Rasca. Um dia na agenda da única mulher do movimento da malta precária.

Por Vanessa Rodrigues

«Olá, obrigada pelo seu contacto. Confesso que esta semana será muito complicado! Portanto, poderei marcar algo após as 22h30, ou então no sábado, conforme preferir! Caso prefira contactar-me directamente, agradecia que o fizesse entre as 13h00 e as 14h00, durante a semana, para o meu telemóvel. Cumprimentos, Paula Gil.». O início da nossa conversa, como o protesto da Geração à Rasca, que levou quatrocentas mil pessoas às ruas do país, no passado dia 12 de Março, começou pela rede social Facebook. Alguns amigos em comum e a resposta veio alguns dias depois.

No dia do encontro com a nm, já noite alta, Paula Gil, 26 anos, a única mulher integrante do movimento Geração à Rasca (subscrita, ainda, por Alexandre Carvalho, João Labrincha e António Frazão) tinha madrugado, passeado a cadela Fox, demorado quatro transportes públicos para chegar ao estágio que está a fazer numa ONG de cooperação e desenvolvimento - e tinha acabado de sair do curso formação de formadores. É licenciada em Relações Internacionais e tem mestrado em Bradford, em Política Internacional, ramo de Segurança, especialização em género. Apresenta-se: «Activista!»


Paula chegou apressada. Tomou um café. Puxou um cigarro. Jantaria apenas horas depois. Comeu «alguma coisa» antes. Estava de olhos raiados de vermelho de quem anda a dormir pouco. Confessaria, depois, que quando não está ocupada, só quer dormir, pois, nos últimos tempos, quatro horas de sono tem sido uma boa média, diz, gracejando. Depois da manif de 12 de Março, o nome Paula Gil e Geração à Rasca batem picos da estatística dos motores de pesquisa na internet.


À porta de Santa Apolónia alguém a provoca: «O que faz a geração à rasca?». Paula Gil dispara a resposta. Mais magra do que as imagens veiculadas pela televisão, com traços juvenis, aumenta o volume vocal. «Estou a fazer um estágio profissional e, ainda a recuperar de uma pneumonia viral, precisei de ficar de baixa e não tive direito a ela.» Questiona se essa condição é a de um estado social democrático, em tom pedagógico.


Paula encara, como já tem sido habitual, o sprint de entrevistas a meios de comunicação social. Agora, elas fazem parte da agenda diária, desde que o movimento Geração à Rasca ganhou fôlego, saiu às ruas um pouco por todo Portugal e no estrangeiro, mobilizando portugueses de todas as idades, para elevar o tom de uma geração com trabalho precário, desemprego e tomada pela ditadura dos recibos verdes. A agência francesa de notícias France Press já a contactou. A Rádio Nacional Espanhola também. Não disse não a nenhum convite, ainda. Embora lhe falte tempo para si, garante fazer a vida normalmente, sem protagonismos, e afiança que, apesar de alguns boatos da imprensa, a Geração à Rasca não tem pretensões partidárias. Depois, ela não se considera sequer uma figura pública. Mas a esse estatuto, agora, já não escapa ilesa. Até porque a exposição mediática já levou mais vizinhos à porta da sua casa, «disponíveis para ajudar na luta».

O fado
Santa Apolónia, 22h30, a hora do encontro combinado com a nm. Com Paula vem um casal que está a gravar um documentário sobre a geração: um retrato da malta. Queriam participar de alguma forma na Geração à Rasca. Por isso, contar a história do movimento, de câmara e microfone, foi «a forma mais criativa e útil» que encontraram. Têm veia jornalística, logo as entrevistas dos jornalistas interessam-lhes. «Podemos gravar a conversa?». Sim, anuímos.


Subimos Alfama para encontrar um lugar sossegado. Gravar sons. Captar imagens. Paula aprova, pois fica mais perto de casa. A conversa dá-se com um pedaço de Lisboa iluminada ao longe. O bairro de Alfama, em pano de fundo, a ver o Tejo. Há timidez quando se liga o gravador. A voz solta-se quando se fala de afectos, activismo, democracia. Com o protesto da Geração à Rasca, há uma nova consciencialização da malta?
«Espero que sim», deseja, «somos todos portugueses, temos todos problemas, sejam eles de precariedade ou não e isso afecta-nos directa ou indirectamente», responde. Prossegue, incisiva. Com o protesto «foi bom percebermos que, juntos, podemos fazer a mudança e podemos contribuir para um sociedade mais digna, mais justa e não somente quando votamos, deixando essa responsabilidade para os partidos políticos».


Estamos em Alfama, recordamos. Bairro de fado. Paula, quando tem tempo, desce a rua e vai à Mesa de Frades ouvi-lo. Por coincidência, a ideia da manifestação da Geração à Rasca nasceu no Museu do Fado, numa conversa entre os quatro amigos do movimento, que estudaram juntos, em Coimbra.
Ao princípio, quando falou da manifestação, a mãe teve medo que ela perdesse o emprego. «Hoje ela entende melhor a razão da nossa luta», contrapõe a filha activista. Paula nasceu no Porto, brincou de triciclo nas ruas de Cedofeita, enquanto a bisavó a vigiava para que não se magoasse nas antigas calçadas em paralelo. Desse tempo, ainda guarda o cheiro de umas flores lilases que caíam, como cachos, no jardim de infância.


Na mesinha-de-cabeceira daquela altura tinha Alice Vieira, «que fez parte do meu crescimento», confidencia, como por exemplo A Lua não Está à Venda. Na-mesinha-de-cabeceira de hoje empilha, essencialmente, jornais e tem adiado a leitura de O Anjo Branco, de José Rodrigues dos Santos. Falta-lhe tempo. Quando o tinha, folheava Gabriel García Márquez, Luís Sepúlveda e livros técnicos de sociologia e política.


Agora vive em Lisboa, porque não conseguiu trabalho no Porto. «E tive a sorte de o meu senhorio nos ter mobilado a casa, pois não teríamos dinheiro para o fazer», diz Paula, que divide o apartamento com amigos. Ela já passou, também, por Inglaterra e Luxemburgo, onde fez serviço de voluntariado europeu numa revista de opinião política. Com esta mobilidade geográfica, perguntámos, inevitavelmente: a Geração à Rasca é uma característica somente portuguesa, ou pela Europa há discurso semelhante?


«O Luxemburgo é muito específico, porque tem um nível de vida melhor do que aqui, mas a Geração à Rasca revê-se um bocadinho em todos os países europeus. Em França já foi criado, em 2005, um movimento de precários por causa dos estágios não remunerados.» Resume: «É uma realidade que não podemos dizer que acontece nos 27 países da UE, mas na maioria deles está presente». Já de Inglaterra, impressionou-se com a maturidade democrática. «As pessoas, quando se sentem injustiçadas activam os instrumentos que têm à sua disposição para defenderem os seus direitos», contextualiza.


Então, somos nós, portugueses, mais acomodados? Não, contraria. «O povo português é pacífico e civilizado. E a nossa democracia é muito jovem. Nós, se calhar, ainda não sabemos todos os instrumentos que temos à nossa disposição e como podemos usar». Exemplifica: «Há muita gente que não sabe ainda que trabalhar numa empresa, fazendo horários como os colegas contratados, está a falsos recibos verdes». Foi o que lhe aconteceu.

Emoções à flor da pele
Paula trabalha desde os 18 anos. Trabalhou cinco anos na Sogrape Vinhos S.A., mais especificamente na Porto Ferreira «a falsos recibos verdes», dispara, reiterando que é importante que isto seja vincado, para desfazer equívocos. E, agora, com tanta experiência acumulada está, mesmo assim, a fazer um estágio profissional. E qual é o historial «precário» dela? «Não tenho direito a baixa, nem a subsídio de desemprego, e trabalho com as mesmas funções e responsabilidades de um vínculo laboral», salienta, relembrando que teve o apoio dos colegas da ONG para o protesto, realçando ainda que a sua situação actual ultrapassa a orgânica da instituição.


Depois do protesto, o movimento anda, agora, a organizar propostas concretas para mudar o rumo da Geração à Rasca, e que levou ainda milhares de cartazes e palavras de ordem numa lenta marcha o mês passado. Algumas estão já disponíveis para consulta, na Assembleia da República. Paula realça que têm recebido resmas de papéis com propostas. Prefere não revelar nenhuma, pois são todas igualmente importantes para destacar apenas algumas. Fala, por isso, na primeira pessoa: «A minha proposta é uma maior fiscalização nas condições laborais de cada um de nós. Muitas das situações que estão ilegais no nosso país passam porque não há fiscalização e porque as pessoas não têm consciência da situação em que se encontram.»


Quando lhe perguntamos o que a enternece, a primeira coisa de que se lembra é da cadela Fox, mas pouco depois sai-lhe a palavra manif da boca. Recorda o dia 12 de Março. Segue-se um silêncio e um suspiro engasgado. Os olhos de Paula, ganham brilho e humedecem. Silêncio. Agarra um cigarro. Porque a enternece tanto a manifestação? «Foi uma catarse colectiva. Éramos muitas gerações juntas. Tínhamos pessoas que estiveram no 25 de Abril e que estavam lá, não por eles e pelas reformas que têm, mas pelos filhos que criaram e pelos direitos que se perderam.»


Uma degenerescência que tem vindo a arrastar-se, expõe. Uma condição que tem vindo a agudizar-se e que sai uníssona da boca da geração de agora. O que desencadeou, então, o momento actual? Foi numa dessas conversas entre amigos, explica, apercebendo-se de que estavam todos, licenciados e já com experiência profissional, em situações precárias e de exploração laboral. A música dos Deolinda, «Parva que sou», aludindo a essa conjuntura, fê-los perceber que não estavam sozinhos. «Apesar de a música dos Deolinda não ser transversal a toda a sociedade, percebemos que a questão não é só dos jovens, atinge pessoas mais velhas. Foi um momento de grande consciencialização, de algo que lhes desse esperança.»


Há um fado que se ouve ao longe, vindo das ruas de Alfama. E há um fado agarrado em forma de promessa na voz de Paula Gil. Daqui em diante, ela e os outros não irão deixar esmorecer a voz da Geração à Rasca. A meia-noite já chegou. Dali a pouco começa outro sprint diário, apenas com pausa para almoço, e Paula ainda vai jantar, à hora da ceia. «Espero que os meus colegas de casa tenham feito alguma coisa para jantar. Depois, preciso dormir, eu sei que preciso descansar.»

Algumas frases de ordem da manifestação de 12 de Março
«Não estamos à rasca, estamos à rasquinha.»
«Eles é que vivem acima das nossas possibilidades.»
«Este país não é para jovens.»
«Não somos descartáveis.»
«Somos precários.»
«Trabalhadores desvinculados.»
«Não nos mandem emigrar, este país também é nosso.»
«Sorria, está a ser roubado.»
«Insegurança profissional, freelancer.»
«Não somos um recibo. Revolução já!»
«Políticos gordos, povo magro.»
«Governos rascas, geração à rasca, pais e filhos na desgraça.»
«Capitalismo é desejar tudo e não receber nada em troca.»
«Eu sou mãe da geração à rasca e já estou à rasquinha: quando eles saem de lá de casa?»
«Acção social não existe em Portugal.»
«Zé do Telhado invertido.»
«A deficiência não é uma doença. Oportunidades para todos. Fim à discriminação!»
«Não aceitamos ser escravos da precariedade.»
«Sócrates tiraste negativas a mais. Vais reprovar.»
«Sócrates a recibos verdes. Porreiro, pá!»
«Governo à rasca. Futuro à rasca.»
«Basta de dois pesos, duas medidas. Justiça para todos. Chega de corrupção.»
«Estudar para a escravidão, só no Portugal da corrupção.»
«Basta de garrote social.»
«Rasca está a nossa governação, à rasca está quem tem formação.»
«Mérito ao poder!»
«PEC-4 POVO-0.»

Texto publicado a 1 de Maio 2011 na revista Notícias Magazine, Portugal

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