
Dobro a esquina de sempre, as escadas da rua apertada, o “quase-elevador” e lembro-me que é mecânico. Não devo ir por ali. Pelo menos desde a semana passada. Nunca achei que quisesses que voltasse para casa. Estavas neurótica e achavas o contrário. Aliás, nunca te vi de outra forma. Esqueço-me por hábito. Depois, não atendias o telefone e dizias que não queria saber de ti. Vítima. Sempre tu! Foi essa a história que criaste no BI da família. Ok! Sim, o bode expiatório de que todos precisamos. Ainda cedia, ao ritmo da tua linguagem anti-depressiva: Fluoxetina, Amitriptilina, Nefazodone,... E as tuas palavas já eram só bulímicas para mim. Depois, não respondias às mensagens. Desculpavas-te pós-vitimização: que estavas cansada e adormecias, depois do cigarro de sempre: nicotina. Mesmo depois de lavares os dentes. Ainda desligavas o telemóvel. Para não sofrer, dizias. Parecia conversa de divã falhado. Ou talvez pressão psicológica. Sempre foste exímia nessa arte de dissimulação. Acho que todas as mulheres o são, sem anti-depressivos. Já nascem com a manha aguerrida de soltar as pinças afiadas, invisíveis e silenciosas da dissimulação doentia. Rede certa, que magnetiza a emoção dos outros.
Mudaste as fechaduras. Nem consegui ir buscar aquela camisola amarela que tanto odiavas: "amarelina", seria? Não me lembro que gostasses de alguma coisa sequer. Ou era a barba. Ou o cabelo desalinhado. O mau hálito que nunca tive. A louça mal lavada que tu própria lavavas; e dizias que eu não sabia secar os pratos. Os pêlos do pano nos copos. Que devia deixá-los secar, mas se de manhã eles estivessem no mesmo escorredor, eras o meu despertador matinal, estridente e intermitente. Sabes, nunca me cansei de ti, até ao momento em que perdeste o brilho. Não é fácil perdê-lo. Só o deixaste ir por desgaste. Depois, os telefonemas, de novo. Que devia realmente voltar para casa. O jantar, aquele jantar que nunca chegou a sê-lo. Poderia ter sido o primeiro jantar em oito anos. O realmente jantar. Não fosse aquilo. Depois percebi que tinhas mudado tudo de lugar e não deixaste sequer um sopro de que gastei essa casa. Numa semana? Foi aí que percebi que me estava a ler, como as tuas posologias médicas. Em cada gesto teu, em cada grito, histeria, neurose, estavam os recalcamentos que nunca superaste e que, afinal, eu não tinha nada a ver com isso. Foi o meu diagnóstico para a cura! Até hoje não sei se existes.
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