quarta-feira, outubro 23, 2013

António e a Gaivota

Era uma tempestade de areia. Ou o vento que levantava a areia. A cortina que se levantou na praia fazia com que esses fios grãos doessem. Eram agulhas que queria penetrar a pele. Fechei os olhos e, de mão dada, atravessamos a cortina, ou aquela nuvem oblíqua. Talvez mais além, protegidos nas rochas, a ferocidade do vento, meio quente, meio frio, tecido morno sobre a tarde, acalmasse e nos deixasse escorrer nos rochedos como lagartos à procura de vitamina E, ou tal qual plantas regenerando-se em fotossíntese. 

Fomos. 

Eu subi primeiro, passei a corda que, evidentemente, queria dizer não trespassar, mas se outros casais se recolhiam, depois dela, nas reentrâncias dos rochedos, a ver as ilhas, e o mar, e os barcos, e as gaivotas, o que nos impediria?

António disse que iria continuar a explorar. Eu quedei-me, deitei-me feliz por estar recolhida do vento e das agulhas da areia. Ali o corredor da ventania não chegava. Deitei-me na inclinação da rocha dura, procurando que ela seguisse a espinha e não me magoasse. 

Fechei os olhos. 

Ouvia-se o embalo do fim de tarde de uma praia calma. Ninguém falava. As gaivotas grasnavam. O António voltou. Pediu água. Encontrou uma gaivota ferida agarrada a uma corda. Talvez fosse de uma rede de pescador. Talvez fosse do lixo que o mar tem. Talvez fosse maldade do homem. O importante era libertá-la, dar-lhe água, talvez a esperança da vida que ela não sabe se tem. Estava desistente. Ele levou a água e a esperança dentro dele. Um alento de que aquele gesto a salvasse. Tirou-lhe a corda à volta do pescoço, viu a ferida, percebeu-a débil, tentou chamar os homens da Marinha que o mandavam sair das rochas por ser perigoso. Tentou falar-lhes da gaivota, da ferida, da esperança de que ela vivesse, afinal, depois de lhe dar um pouco de água ela mudara do silêncio para um grasnar defensivo. Quem sabe não lhe agradecesse esse novo alento. 

António não podia fazer nada mais a não ser mais um pouco de água para a gaivota, voltar e obedecer à ordem da Marinha e sair dos rochedos. Voltou, desalentado, um pouco revoltado porque as autoridades não atenderam ao chamado para salvar uma gaivota. Fez o que pôde.

António não gosta de gaivotas, bem o sei, mas não foi por isso que a abandonou e insistiu que respirasse na esperança de a salvar.

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