quarta-feira, setembro 04, 2013

Pornografia ficcionada


Escrever é a nudez absoluta, é o escritor entrar na própria pele para dilacerá-la, viver a vida dos outros como sua, chorar, angustiar, humilhar e ofender, um crime e castigo, abismo, absolvição, terapia, bisturi trémulo à volta do corpo, ser pulha e gangster, falhado e vitorioso, orgulho e preconceito, fundamentação da metafísica dos costumes. Escrever é perscrutar o escuro endógeno para a lucidez das palavras, uma caverna infinita com fio-miragem de luz, um sufoco, ardência, arritmia, densa penumbra no horizonte de um mar revolto, solidão de farol, eco de montanha, gota na imensidão da selva, ulo silencioso que brama dos confins da terra, antítese da lógica nos primórdios da civilização, cordilheira de intransponível morfologia.”
É Lis quem escreve tudo isto. Foi sugada para uma ilha deserta com escritores, depois de “A revolta dos livros”, o mês passado. Trabalha como antropóloga diligente, enganando a Eternidade. Não sei como as missivas chegam até mim. Escrever tem mistérios profundos que a própria tecnologia desconhece.

Ela observa e percebe a verdade dos grandes escritores como homens nus, ao mesmo tempo que habitantes de planetas personalizados - onde a linguagem se confunde-, mas subjugados à impotência, quando percebem que nada inventam a não ser a capacidade de ludibriar uma geração que não tem memória, incapaz de estar ciente de todos os truques e artimanhas já usadas por escritores. José Saramago, por exemplo, é o ilusionista das utopias: os seus mundos não existem e são toda a geografia da verdade que temos ao nosso redor. Lis percebeu-o: os escritores são pornógrafos de ficções, um veneno, enganando-nos com as verdades que não queremos ver. Escrever é toda a escatologia do mundo. Leitores, sois seres explorados pelas neuroses dos escritores, seres perigosos. 

Crónica de Vanessa Rodrigues, publicada a 30 de Agosto 2013, na pág. Bairro dos Livros, iniciativa Culture Print, no Semanário Grande Porto, em alternância com Rui Manuel Amaral, Rui Lage e Jorge Palinhos. 
 

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