Saia preta. Lenço preto. Sol quente. Cabelos de um negro brilhante, seboso, compridos. Saco plástico amarfanhado suspenso pela mão, pesado. Um preto telemóvel colado ao ouvido e ficamos a saber como se cusca à maneira cigana, sem dó, nem pudor, à espera do próximo metro, enquanto a filha salta da linha amarela, para a linha de ferro e volta, em camisola rosa-choque, com carapuço. (Avisa-se que o seguinte monólogo é passível de tradução, mas desconheço se haverá dicionário de dialecto cigano).
- Ela vai falari com ele para dar cabaças! Quem a quis prometida foi o pai dela. Ela não queri. Nã queria não senhora. Mas espera, não desligues. Há muito p'ra contari. Ainda não sabes. Ah não que não sabes. E depois de almoçaris já vou saber mais coisas. É hoje que se sabe. Que vão falari. Atão ela não quer casari. O rapaz é filho do mê tio. Bom rapaz. Mas quem a quis prometida foi o pai dela. Já lhe dei cabaças. Para empatari nã vale a pena. 20 anos são muitos novos. Agora não é como antigamente. Não era quando houve dos nossos que tentaram fugir. Não era com faca de feira. Nã é não senhora. São muito novos.
...
Deixo de fingir estar atenta ao livro que leio. "O Mandarim" é um pequeno livro, que cabe nas minhas duas mãos, com páginas amareladas, secas e cheiro a estante envelhecida. Tem capa estranha, expressionista, e tem o diabo. O diabo há-de ser uma coisa escura. E o Mandarim não há-de ser primo de ciganos, mas amigou-se com o demo. Nem Eça de Queirós queria tamanha confusão à volta de uma obra. A magia da literatura há-se ser, para os escritores, uma metadiegese (palavra inventada na pressão da noite). Eu explico: o tempo em que se lê, estará sempre além do seu: no espaço, na cronologia. Não se saberá nunca em que circunstâncias foi lido, quem o leu e por que bolsos, estantes e bolsas viajaram. Por isso, Eça nunca saberá que a pequena de rosa-choque se interessou pelo seu mandarim:
- Que livro é esse e por que tem um homem tão feio na capa?
-Chama-se Mandarim, e o que vês é esse chinês feio que faz parte da história. É de um escritor português chamado Eça de Queirós.
-Mas é muito feio. Não devia haver livros com caras feias como essa. Esse senhor Queirós também apanha o metro?
- Não. Ele já morreu.
- Ainda bem, senão tinha de lhe dar cabaças.
E fugiu. Não fiquei saber o que era dar cabaças. Ouvi-lhe ao longe pronunciar um nome quando um casal de miúdos lhe perguntou:
- Charane, e já estou prometida... ao Mandarim.
O metro veio. O Mandarim foi para a bolsa e o Eça entrou, assim, no metropolitano. Com certeza terá dado umas cabeçadas no túmulo por causa dessa coisa da metadiegese. Disso e do metro, essa minhoca gigante do diabo.
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