terça-feira, março 15, 2011

Angola-Angola...Brasil



Está sol. O pátio tem granito cinzento e fartas ervas daninhas. Inspectoras de olho atento às entrevistas. Inspectoras-mulheres, impositivas, a ralhar a mulheres, subservientes. T-shirts brancas. Calças azuis. E o sol no alto a ameaçar calor. E o cinzento do chão a agarrar a densa realidade. Há educação pela pedra.
Ela já vem de rosto abatido. Parece o chão. Já vem o brilho do olhar quando enche a boca e diz, repetidamente:

-Angola, Angola.

Aqui ela é sol.
Angola-Angola. Está na pele. Na modorrenta forma arrastada do português falado. Está na cabeça. No pensamento. Está no BI. Agora está aqui, nesta espécie de quadrado que a Talavera Bruce reserva para as prevaricadoras. É penitenciária de mulheres, ao lado de Bangu, no Rio. Vizinhança da pesada. Narcotraficantes, 157 (assalto à mão armada), tráfico de droga, crimes leves, crimes pesados, mulas.

Catarina Ângela Martins, 21 anos: uma mula encomendada a Angola para o eixo São Paulo-Rio de Janeiro. Não quer ser fotografada. Quer ser fotografada. Assina. Autoriza. Uma forma de limpar a mágoa.

Agora ouvem-se gritos. Mulheres exaltadas. Às vezes exaltam-se. Os ânimos encarcerados.

-Desde o momento em que cheguei não me sentia bem: sentia que algo me ia acontecer, mas não podia desistir: a viagem já estava paga desde Luanda. Esse era o contrato.

O contrato, ou o passaporte que a enfiaria no cárcere: cinco anos por tráfico de droga internacional. Foi em 2009. O estômago estava inchado. As cápsulas demoraram a sair de lá. Mais célere foi o momento em que a Polícia Federal a topou. E haveria mais à volta do corpo. Cinco quilos de heroína. Não sabia de onde. Nem para quem. Mas a grana era boa. E ia ajudar os três filhos que ficaram com a mãe lá em Angola-Angola.

- Só tinha de entregar no aeroporto, quando chegasse a Luanda. Esse era o combinado.

Só queria voltar a casa. Angola-Angola. É de fala sintética. Anui. Foi enganada? Hum, hum!

-Tenho saudades da minha terra. A comida brasileira é muito diferente da comida angolana. E os fins de semana são os mais difíceis para uma estrangeira. Sinto-me muito sozinha. Custa a passar o tempo.

Do outro lado da cerca, sozinho, e a respirar liberdade, está o filho que pariu na prisão, a conhecer o tempo. Meses, até ser ano e meio.

- Não sabia que estava grávida quando vim. O meu filho nasceu numa maternidade. Ficou comigo até aos seis meses. Agora está numa família de acolhimento que cuida dele até eu sair.

Faltam 4 meses. A pena foi atenuada. O cabelo cresceu-lhe mais. A voz endureceu. Entristeceu. Ganha alegria nisto: Angola-Angola: lá! E batuca-batuca. Batuca pelo Afroreggae, dentro da prisão. A passar tempo. Cada batucada um salto quântico.

- Fiquei um mês. Apanhei o ônibus para São Paulo. Ficava no hotel. Fazia compras. Nunca fui à casa de quem me contratou. Até que um dia ela me disse: vais viajar. Prepara-te!

Foi uma ela. Houve também um ele. Não há nomes. Não se lembra de nomes. Não quer lembrar. O único nome é o do país, em bis! Preparou-se para voltar. Mas não para ser presa, nem para os dias que viriam. Chorou! Pensou nos filhos.

-É muito sofrimento estar aqui. E tens de negociar tudo: é preciso biscoitos, sabonetes, cigarros, escovas de dentes, sabão em pó.

Em Angola-Angola não lhe faltava nada. Mas a grana era boa. O processo parecia simples. Seria rápido. E nem por segundos lhe passou a prisão pela mesma cabeça que pensa na terra onde há calulu e galinha com muamba...Saudade!

- Faço tapetes para passar o tempo e passei à final do concurso de Garota TV aqui na prisão.

É a garota de Angola-Angola. De fala arrastada. Pensamento lento. Vai fazer sol no dia da Garota. O dia em que ninguém se lembrará do cinzento do granito do chão. Não haverá vozes impositivas, mulheres subservientes. O tempo será suspenso. Parecerá liberdade. Umas horas a menos para esgarçar o tempo até poder voltar para Angola-Angola.


*Texto baseado numa entrevista a Catarina Martins, em Novembro 2010, que se encontra a cumprir pena na Penitenciária Talavera Bruce, no Rio de Janeiro.   O Afroreggae tem lá um projecto de percussão com reclusas. 

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