“Somos o esquecimento que seremos” é o primeiro verso de um poema do argentino Jorge Luis Borges, que o pai do escritor Héctor Abad Faciolince guardava no bolso, transcrito à mão, no dia em que foi assassinado por guerrilhas paramilitares colombianas, e que sobreviveu à poça de sangue que manteve o corpo morno até ao momento em que o escritor e a mãe o encontraram. É também o título do livro do autor (Quetzal, 2006), que M. me sugeriu, sobre a vida e a luta do pai, Héctor Abad Gomez, médico de Saúde Pública, pelos direitos fundamentais dos colombianos.
Terminei-o ontem sob um enxerto de porrada psicológica. Terminei-o com os olhos encharcados. Angustiada.
Anestesiei o goto que não me deixava engolir - e me deixava entalada - com o tinto da D. Ermelinda (quase parecia aquele sangue exangue que escreve as últimas páginas do livro, misturado com sal de pingas liquefeitas e que nos saem sem querermos dos sacos lacrimais), disfarcei as gotas que correram, tossi para que se não percebesse o que poderiam ser suspiros, e traguei a cigarrilha na esperança de que o fumo me desentalasse, como um defumador de terreiro umbanda, quem sabe, a asfixia.
Se as palavras são, parece, o mapa mais aproximado do que se nos vai no pensamento, acrescentarei que há qualquer coisa no mecanismo delas, quando se nos lá entram, de se dividirem em tarefas para procurar os pontos mais vulneráveis. E, quando se lhos acham põem-se a chafurdar as gavetas íntimas, devastando os afectos e um pouco mais a revolta e as frustrações, com a subtileza de um carregado e severo estalo na cara - que nos acomete inesperadamente -, como quem escarafuncha uma ferida que não cicatriza. Abre-se. Abre-se e, devagarinho, vai infectando sem nunca deixar ir-se a moinha.
Mexeu-se-me qualquer coisa cá dentro. Aquelas palavras foram-se-me às gaivas. Chafurdaram. Escarafuncharam. E, eu, sem nunca ter vivido sequer a mais ínfima suspeita da mordaça e da repressão política, senti-me mais esganada do que se tivesse puxado o lenço real que poderia estar a envolver-me o pescoço. Toquei para ver se tinha posto o cachecol de lã que levara. Nada. O invisível do livro do Faciolince tratou disso com mestria para uma menina como eu.
Sou uma menina nos sentimentos. Sei. Arrebatada, espontânea, impulsiva e a precisar de colo muitas vezes, mesmo que não haja razão aparente para que precise dele. Isso só nós sabemos e não precisa, na verdade, de haver razão. Acho que passei a (ainda pouca) vida até aqui a negá-lo, por considerar que não precisava dele - forte, inquebrantável - e a tê-lo sempre disponível para resolver os problemas dos outros. Mas de colo não: eu não precisava. Assim como não precisava que os outros percebessem quando estava num daqueles momentos em que o sol, afinal, estava a dormir (hibernado um bocadinho, atrás das nuvens, mais tímido). Agora preciso deles: do sol e do colo.
O limite da contundente negação foi até ao exacto momento em que comecei a desabar, há um ano, por falta do colo que negava. A culpa sempre foi minha. E isso como se a vida tivesse voltado ao exacto momento zero onde tudo (re)começa. Estou por aqui. Os poros estão com sensores hiperbólicos expostos, como fracturas. E, talvez, por isso, precise cada vez mais de colo para aliviar os mais pequenos nadas que mexem com as gavetas cá de dentro.
"Mas tu já começas a compreender e a sentir todo o esforço, o trabalho, a angústia, o isolamento, a solidão e intensa dor que a vida exige a quem escolhe o difícil caminho de criar beleza" (página 250)
Hector Abad Gómez
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