sexta-feira, março 19, 2010

Isadora

Houve uma altura em que ela teve dúvidas. Tudo começou com um flirt, dois, e depois vieram as mensagens. Isadora estava a atravessar a primeira crise com a Cris. Ela precisava sair do lodo para o qual não tinha vocação e para onde Cris sempre a arrastava. 

A Cris quando se dava para o caminho da auto-comiseração era profissional: crises de choro no quarto escuro, raiva, tanta raiva, insultos, expulsões do quarto em que se encafuava, dentes a ranger de nervos, impropérios contra ela, contra si, o mundo e a vida, murros na parede, louça revirada, cabelos desgrenhados, mãos em abraço profundo, quarto com roupa espalhada, chão, muito chão, insegurança – tanta insegurança – e a reclamar o final da relação. 

Era melhor que ela, Isadora, vivesse sem ela, Cris, esse furacão desequilibrado em sintonia bipolar. Isadora estaria melhor sem aquelas cenas, sem o peso, a contundência, as lágrimas, a raiva, a fúria, o ódio de si, dela. Era melhor terminarem e seguirem cada uma o seu caminho. Dez anos bastavam. O desgaste era notório, embora Isadora nunca entendesse realmente a razão daqueles retiros de auto-lamaçal psicológico. Era como se ela mergulhasse, de repente, num pântano que está à margem de cada um. Uns não o vêem, ignoram-no, nem sabem da real existência; outros mais sensíveis, sentem-lhe o cheiro e dão-se à truculência de o cheirar mais de perto até ficar com o odor entranhado e dele não quererem mais sair. 

Cris não era nem metade do que queria ter sido. Tantos cursos por acabar. Outros a meio e sempre a saltitar de um para outro por tédio ou desencanto. “O ensino está entregue às traças  humanas, aos vampiros caquéticos da Academia, e à retrocidade dos professores frustrados que não foram nem metade daquilo que quiseram um dia ser. Por isso se dão ao trabalho de transformar os pupilos em seres mais cinzentos que as nuvens da cidade mais poluída”, ouvia-a dizer várias vezes, entre um copo de cachaça, de shot, e umas quantas cervejas para juntar ao fervilhar líquido que o estômago já cozinhava. 

Aqueles cabelos negros dela, longos e fartos, os olhos sinceros, levemente rasgados no final, a pele perfeita, sem rugas de quase 40, as mãos delicadas – incrivelmente delicadas para quem gosta de mexer em motores, serviços de carpintaria e afins manuais que costumam rondar as predilecções masculinas. As unhas nunca estavam sujas de óleo, sempre impecavelmente pintadas de vermelho. Quando se fechava na sua caixa, que era quarto, e o mundo todo por um tempo – o tempo que durasse, nunca se sabia quanto – descascava esse vermelho com os dentes. Vi a Cris muitas vezes enraivecida, intransigente, alheia ao redor para se dedicar ao fosso voluntário sem razões aparentes. As razões de nós desconhecem-se, basta um nada aparente (que é sempre um acumular de nadas como o Universo) para que se nos ponham numa arca gelada de letargia. Chegou a explicar-nos que tinha um planeta astrológico que pairava sob o signo solar dela. Chegou a dar-nos explicações místicas, mas em nada isso a ajudou alguma vez. Consultou uma astróloga, uma psicóloga, uma taróloga; fez reiki, shiatsu, astrologia védica, astrologia cigana, runas. Enfim. Foi até onde pôde com a curiosidade mística que lhe explicasse um pouco daquilo que era. 

A única coisa que, realmente, a ajudava era a paciência de Isadora em trazê-la de volta às outras divisões da casa, para começar, e depois porta fora como conquista final. Sol: os dias de sol eram sempre um bom pretexto. E com Cris precisava de Isadora. Era toda a mística, karma, numerologia humana...

Desta vez a Isadora, com um gesto de quem não quer falar demasiado alto para que Cris não ouça, disse que era o fim. E foi aí que começaram as mensagens. A Cloé era leve, solta, primaveril. Uma flor de mulher disposta a dar as pétalas só para que lhe sentíssemos o cheiro. “Vês como a vida é perfumada”. E isso para lhe dizer, no fundo, que o cheiro de pântano não era vida para ninguém. Nada sério, porém. Apenas um cardápio de odores mais diversificados que lhe acometeriam de vez em quando. "Queres?"; "Vamos?"; "Fazemos?"

O primeiro encontro foi na livraria. Depois veio o café, o cinema, o teatro, o mar, a praia, a piscina, o chá, a casa de campo, o jardim no centro, os pastéis de fim de tarde, as exposições, os passeios pela orla, os almoços, as mãos, os abraços, os beijos e a cama. Bom, veio quase a cama. Isadora apenas queria sentir-se viva. Não queria apaixonar-se. 

Amar, amar, Isadora já sabia a quem amava, apesar do pântano. Queria tudo isso, queria a leveza, queria a degustação, o encantamento, os odores de Primavera na mulher-flor, mas logo percebeu que não queria nada sério, a não ser a terapia invísível que nos faz sentir vivos e amados, noutros perfumes. 

Isadora, tão doce e conciliadora. Isadora tremeu. Até hoje não consegue falar com Cloé, que acabou por se mudar para a Europa. Budapeste, talvez. Isadora não se lembra bem, embora aquela carta perfumada (“Se mudares de ideias, estou à tua espera") evidenciasse que a história mal resolvida poderia um dia voltar à superfície. Se tivesse deixado ir-se, certamente Isadora ter-se-ia afundado em areias movediças para a qual não estava preparada. Uma mulher assim, tão leve, abnegada, e fácil de seduzir, é mais difícil de se agarrar os afectos; é demasiado leal ao que sente. "A fidelidade é uma balela", dizia. Mulheres como Isadora são de uma só. E Isadora tinha de ir tirar a Cris do pântano, durasse o tempo que durasse.

Sem comentários: