segunda-feira, agosto 05, 2013

Dona Rosa e os Vasos de Flores

A luz das manhãs de Verão são sempre mais generosas nos telhados da Sé. Primeiro rasa as telhas, diafanamente, como se ganhasse pés de algodão, afagando a humidade que se entranha durante a noite. A culpa é do rio, que se evapora em partículas vadias que se querem escapar numa espécie de emancipação. Mal sabem que nunca mais desta cidade sairão, porque quando se erguem mais alto, na subida molecular, plasmando-se na invisibilidade dos olhos nus, amadurecem e vêem do alto a beleza incontestável das texturas da cidade. São camadas, senhoras e senhores, são camadas. Estratos, sedimentos. Um mosaico ora conforme ora disforme.
Em manhãs como essas, enquanto a Rosa ainda boceja, e os olhos remelentos, remelados, remelosos (o caramelo das lágrimas), se deixam descolar, a luz picota formas das pequenas casas. Dona Rosa abre as portadas, como quem autoriza o solar fluxo radiante a entrar. Ele polariza-se nas íngremes vielas, entranha-se na tinta a estalar, nos pigmentos que sobram dessas cores agoniadas.
Numa dessas manhãs, em que o sol a pino ameaça escalar os telhados com luz dura, Dona Rosa - que respeito por esta sessentona se quer - é ofuscada por tamanha claridade tão precoce. Cega, fechando os olhos, reagindo a íris à tirana do clarão, do brilho, do fulgor, quem sabe rebeldia adolescente desse sol de estio, esparrama as portadas de madeira irritada, áspera, desabrida, mais áustera que as mãos calejadas desta peixeira. E aqueles vasos, onde se enterram violetas, malmequeres, lírios e brincos-de-princesa que ainda só agora começaram a viver, precipitam-se, frágeis e ingénuas, para uma liberdade aparente, bem junto à medieval porta do Sol. Irónica sina esta, a das flores da Rosinha.  
Dona Rosa, ainda mal recomposta da sonolência e do choque põe-se a berrar, esbraceja com voz de quem sonhou pesadelo com o Zé pescador, como se estivesse embalado em tempestade em alto mar. Lá em baixo, terra espalhada, flores derramadas. E o sol, culpado infalível neste crime, inamovível. Nem pasmo se lhe viu no rosto iluminado. Dizem, contudo, as más línguas que se regozijou do feito.

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