segunda-feira, janeiro 11, 2010

Frida Kahlo, o tempo como catarse dos nossos vícios


Ainda não tinha visto o filme de Julie Taymor, com Salma Hayek (e a sua brutal e desconcertante semelhança com a pintora mexicana Frida Kahlo). Era um dos DVD´s que estavam esquecidos no armário de casa dos meus pais e que recordo ter comprado numa dessas promoções de fim de ano. Três anos depois, num segundo “round” depois do “À Prova de Morte” do Tarantino, ontem, enrolada na manta, com o vento frio a rugir lá Poderia falar da fotografia, das cenas espectaculares que recriam quadros da Frida, da representação brilhante de Hayek e Alfred Molina (Diego Rivera), e outras observações intelectuais exigidas por quem se preze a criticar um filme. Deixo isso para quem entende realmente da coisa, até porque é o "invisível" que me é "essencial aos olhos".

O que é realmente belíssimo, tal como no documentário de Vinicius de Moraes (Miguel Faria Jr), ou no “Into the Wild” do Sean Penn, são as várias lições de tempo do filme sobre a Frida, da importância da procura da insatisfação pela constante satisfação de nadas e agoras, do amor, do sexo por sexo, ou do sexo por contextos, da criação, da ansiedade como procura do interior, e da cegueira do nosso quotidiano, que nos vicia numa imensa redoma em contraluz que nos arranca do essencial. Talvez “a condição humana” seja mesmo essa (perdoe-me o André Malraux) que nos torna realmente mais sartrianos do que sabemos ser (somos profundamente estrangeiros de nós): a dos vícios que toldam a nossa história em recriações deturpadas do essencial (e por elas, no nosso contexto ou até mesmo nas utopias interiores, recriamos um mundo só nosso, que nos fecha num hermético globo de percepções individuais).

É como se em todas as lições de tempo precisássemos de um choque de contrariedades que nos questionem os vícios de personalidade, do dia-a-dia, dos nossos, dos outros. Por exemplo, há um momento em que Kahlo recebe um telegrama, nos EUA, sobre a mãe doente, no México, e se apressa a abraçá-la na casa da sua infância. Depois, já lá, vai ter com o pai, angustiado, que tenta arranjar as flores do jardim que a mãe diligentemente cuidava, para que não se morram, com receio de que esposa lhe ralhe, ainda que enferma. Ele quase nunca cuidou das flores; desabafa que houve momentos em que achava que nunca tinha gostado dela, que a detestava, até; confidencia-lhe que, depois de tantos anos juntos, as pessoas já nem sabem o que sentem, discutem muito, e num embalo de uma relação deteriorada, como muitas, tantas, desses vícios da intimidade, que nos podem tornar tão desumanamente frios e pérfidos (estrangeiros de nós?) com alguém que partilhou tanto da nossa intimidade, deixam-se estar quietinhas à espera de sobreviver até ao fim, e a fazer mal um ao outro, por medos e, paradoxalmente, pelos mesmos vícios interiores. Frida abraça-o, põe a flor morta no ouvido. Ela própria viveria o dilema da relação deteriorada (pelas constantes infidelidades) com Diego Rivera (“É melhor separarmo-nos. Damos-nos melhor como amigos e companheiros do que como marido e mulher”). Kahlo fica destroçada. Anos mais tarde envolver-se-ia com Trotsky, exilado na casa do pai dela, a pedido de Rivera. Mais outro punhado de anos e Diego volta para ela, como quem volta para o útero (e Kahlo já estava, nessa altura, muito debilitada, cheia de dívidas, mais azeda, amarga, mas intensamente lutadora pelo tempo em si). Só que o essencial é isso, o tempo em nós. Visto assim, numa retrospectiva de uma vida, com uma hora e cinquenta minutos, com cortes e recriações do que possa ter sido a vida de uma mulher, que nos momentos de maior angústia pintava com as dores de dentro, parindo sempre as catárses que a libertavam dos vícios de um mundo hiperbolicamente pessoal, sofrido e destroçado, é uma imensa lição de vida, de tempo, de leves adormeceres para um imenso e mais maduro amanhã. O essencial é sempre esse, na realidade, o aprendermos a gerir o caos que há em nós, promovermos as contrariedades constantes para ver o essencial, para quem sabe pouparmos anos de azedume, porque sabemos que o mais importante está sempre ao redor de nós, contrariando os nossos vícios de teimar em ser estrangeiros de nós...

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