
Agora, as janelas das casas assobiam com rajadas de ares que trespassam os tecidos de Inverno colados aos corpos impreparados e arrepiados como rugas de pele de galinha. Eles não reparam. Olham-se. Engasgam palavras. Cada um mergulhado em silêncios abstractos. Deixam passar. Lá fora, milhões de formigas humanas, passam ininterruptamente agarradas aos casacos impermeáveis, como salvação do frio que esgarça a réstia de calor. Ouve-se o tilintar das chávenas. Os passos arrebatados na calçada. A máquina de café em som locomotiva –a-vapor.
– Todas histórias de amor deveriam ser breves.
- Como assim?
- Princípio, meio e fim.
- Mas isso tiraria os efeitos secundários.
- Por isso mesmo, não deveria haver. Já não temos idade para isso. E deveríamos saber quando seria a hora de deixar ir. Até que outro vício nos arrebatasse a alma.
- Beauvoir e Sartre viviam assim, separados, não só por princípio, mas porque não queriam ficar “estranhos” ao amor. À sensação de liberdade. Ou seja estrangeiros à vida.
- Nunca tinha pensado nisso. Mas não é disso que falo. Quero dizer: mais do que liberdade. Uma certa leveza que as histórias independentes nos dão, antes de se tornarem comuns. Com a idade deixamos de ter paciência para as histórias em comum e apenas nos satisfazemos na autonomia de um e outro, para cruzarmos, por vezes as experiências, as singularidades e, claro, aquilo que nos une. Como curiosos pela anatomia do outro.
- E à medida que deixares ir, vais agregando.
- Claro! Há dezenas de pessoas que te enchem a alma e que por decoro social não te permites estender a elas.
- Goethe falava disso ao falar do jovem Werther: “Nada melhor do que uma alma que se estende a nós”.
- Mas Werther era escravo da obsessão. Esses amores arrebatados são pesados e não libertam. É ainda mais sobre aquilo que dizes: quantos não se estendem a nós? Vê lá. Quantas pessoas já se estenderam a ti? Como se fossem, realmente, parte de ti?
- Três.
- E no final?
- Nenhuma.
- É isso. Perde-se a leveza com o desgaste. Não estamos ainda preparados para reinventar a paixão. E é nessa liberdade que nunca chegaremos lá. O encantamento é um vício que só se vive um momento em cada história. Se descobríssemos como reviver isso sem efeitos secundários, seríamos mais leves.
- O problema é que tudo é líquido. Não estamos preparados para partilhar. O que dizes é uma tentativa de fugires de ti.
- Nada! É a minha curiosidade pelos outros, e de achar que há sempre mais para viver. E que não temos de ficar presos a nada, a não ser à nossa liberdade de viver e olhar, exactamente como estamos preparados para ser.
O guardanapo voou. Caiu na calçada. Em segundos embebeu-se de chuva, que nunca tinha provado. Em segundos os passos apressados desfizeram-no. Em segundos respirou e voou. Viveu efémero. Um fôlego. Um rasgo.
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