quarta-feira, fevereiro 23, 2011
terça-feira, fevereiro 22, 2011
Miau, directamente da Gatolândia!
O Ferreira Gullar adora escrever sobre o gato dele. Bom: há nele, diz, uma coisa de espanto. E ele só escreve quando há espanto. E há sempre o espanto com o bicho, com as coisas que o bicho faz, que o inspira para pensar na vida e, depois, por um mero acaso parir um filho em jeito lírico. Pode nascer poesia só de olhar para o gatinho. Dá-lhe leite, mimo, até que ele ronrone de regozijo.
Às vezes, dou por mim a pensar que gostaria de ser um gato. Felino diligente, frio e com certo calculismo, a reivindicar mimo e a tomar banho de língua. Um gato doméstico. Sim, felino macho, porque as fêmeas são pachorrentas.
A vida de gatos domésticos não há-de ser nada difícil. O dos meus pais, por exemplo, começa cedo a saga diária, mas quando quer, à hora que quiser, deita-se em qualquer recanto quentinho (concordemos que eles sabem escolher o lugar onde o lombo felpudo se deita) e esparrama-se até não haver amanhã. Olho-o e penso. Ah, também eu gato gostaria de ser. No cogito, ergo gatum sum.
Não é bem verdade, mas por instantes, a vida de gatice poderia ser um momento de deleite do nadismo. Eu tenho um problema com nadismo. Não consigo estar sem fazer nada, sinto uma espécie de pulgas a percorrerem-me o corpo. Posso jurar que se entranham no couro cabeludo. Talvez, por isso, o nadismo não me tenha pegado, como apanhou o Alf e muito boa gente no Brasil. Seria, talvez, um gato hiperactivo.
Tal como dizia, a saga do Junior começou cedo hoje. Como o expulsasse ontem do quarto, refastelou-se a dormir na sala durante a noite (ainda me arranhou a porta a ver se vacilava) e às 9h da matina, já me atacava as folhas de papel que saiam da impressora como se pelejasse implacável contra um desconhecido inimigo da Gatolândia. Assustava-se um pouco com o barulho dela, mas mal as folhitas saltavam ele estava pronto com a pata para desferir o golpe final.
Berrei-lhe a ver se ele parava com aquelas fitas. Depois, impressas as folhas para as aulas de Literatura, miou em direcção da porta para que lha abrisse, como quem diz: "Está na hora de me adestrar na selva lá fora. Humana Vanessa, abre-me esta porta, agora". Qual serva obediente, abri a porta a Dom Gato, um tal de animal irracional. Ele voltaria ao chamamento da minha mãe, à hora de almoço, e, agora, dorme que nem um abade na parte detrás do meu computador, portanto, na minha secretária, onde lhe dá o sol no lombo, enquanto pauso o trabalho para escrever sobre sua Excelência.
Ouço-lhe o respirar e observo a cabecita inclinada numa caixa de CD que lhe serve de almofada. Não se queixa e até parece faustamente confortável. Nunca saberá que escrevi sobre ele. Que teve ele, também, o seu quinhão de fama, por instantes no mundo virtual. Mas não importa. É essa a tirania do gato.
Laura, tríplice fronteira I
- Alô? Boa tarde, estou a ligar de São Paulo, faz reserva de quartos? Vi aqui na internet várias referências de estrangeiros à sua pousada e estou interessada em reservar um.
Uma voz esganiçada, de um tom velho-jovial anui, reserva e dá dicas logo à primeira depois de saber que a inquilina apenas ficará por 3 noites.
- Quando chegar vá directa do aeroporto para as cataratas Foz de Iguaçu. Fica a 10 minutos do aeroporto e assim você já poupa tempo. Se você chega às duas da tarde tem até às seis para visitar e é mais do que suficiente.
- Sim, claro. Estava a pensar fazer isso.
- Você vai perceber: Foz de iguaçu é uma cidade muito pequena, mas tem os seus encantos. Você vai gostar e qualquer dúvida estarei aqui para ajudar você.
Um dia depois. Duas horas de voo São Paulo-Foz de Iguaçu. Terra de tríplice fronteira: Brasil-Argentina-Paraguai. Chegamos ao reduto da muamba, do tráfico de mulheres, de droga, de armas, de produtos electrónicos, da falsificação. Um paraíso fiscal quando se atravessa a Ponte da Amizade para o Paraguai. Facções criminosas brasileiras têm aqui base, e um relatório da Defesa norte-americana garante que há um célula islâmica terrorista ali a trabalhar à disposição de todos. Há que revide. Que diga que é mito, fundamentando as supostas provas. Um paraíso para a imprensa estrangeira: com tantas histórias, dá para escrever vários livros, sem o risco de as repetir.
Depois, há ali, no Rio Iguaçu, 300 portos clandestinos, buracos na rede da ponte para atirar mercadorias lacradas ao rio, para que a alfândega não as retenha. Milhares de pessoas a atravessar, por dia, aquela fronteira. Rostos cansados. Rostos que já passam despercebidos. Vidas pela metade.
A rodoviária é feita de simples plataformas de autocarros velhos. Placas: Puerto Iguazu. Ciudad del Este. As ruas silenciosas e quase desertas. Mulheres de véus pretos páram em frente a uma escola. Falam em árabe. Recolhem as crianças. Sorriem. A pousada da Laura é uma casa simples-vivenda. Por trás da casa dela a rua acaba e há rio. Antes, um descampado.
O cabelo dela é louro-seco. Algumas brancas de raiz a denunciar tinta. Os olhos expressivos de algum desgaste, sofrimento. Mas um sorriso por ter companhia. Voltou a abrir o negócio há dois meses. Já não pôs mais anúncios na internet. Não precisa de divulgação. Ganhou o marketing boca-a-boca. Há simpatia. A casa já esteve cheia. É recomendada por vários cantos do mundo. Vem no Routard. Mas há qualquer coisa que me arrepia nela. Há qualquer coisa que me deixa com o pé atrás. Não teria nunca, nos próximos dias, quaisquer razões de queixa. Mas há qualquer coisa dissonante. Que me avisa e põe em estado de alerta. E alguma pele de galinha. Cheguei a pensar que ela não existia. Que era fruto da minha imaginação. E se fosse um fantasma? Talvez uma bruxa boa. A mente pode ter divagações labirínticas quando estamos sozinhos, exilados nem que por uns dias, para tratar de um visto, como se houvesse algo de ilegal na nossa condição. E a condição dela era de uma certa solidão. E a solidão pode ser alarme de luz mortiça na tentativa de cativar o outro.
Fez questão de me mostrar os despojos do dia. Como se tivesse ido à guerra e sobrado pechinchas. No Paraguai, tudo tem preço de saldo. Na mão dela: um estojo de batons de cor: roxo, preto, verde, vermelho, laranja. Uma cabeleira.
- "Veja, como me fica bem e parece natural, oh. Não é um espectáculo? E agora com estes óculos que lá comprei. Posso substituir as lentes para umas da minha graduação. E as roupas? Uma fineza. Sabe quanto custou? Sabe. Vá, tem de comer esta empada de frango. Não é deliciosa? E estes vernizes. Estes lenços. Mais estas coisas".
A overdose estava só a começar e eu precisava de descanso. A Laura precisava de conversar. Aliás foi por isso que disponibilizou a casa para ser pousada. Foi por isso que instalou, mais quatro quartos extra. Foi por isso que foi continuando a conhecer o mundo, sem sair do sítio, com tantos estrangeiros de passagem. O marido morreu. Foi médico. Ela viajou pelo mundo. Conheceu-o de lés a lés. Agora é uma senhora simpática, nos seus 70, que recebe visitas para jogar cartas, visitas para conversar. É uma espécie de entretenimento local. E quase me implora que a entretenha. Não consigo. Não tenho tempo. E, para ser sincera, não me apetece. A paciência nestes casos não é o meu forte, sobretudo quando me soa algo de errado na falta de brilho de alguém. No limite entre o amistoso e o implorar de uma atenção. Há aquele sorriso de tom velho-jovial. Um desespero de atenção. De angústias. De vida por cumprir como se isso estivesse directamente ligado com o que a cidade, em si, encerra: uma urbanidade inacabada, na qual os seus habitantes, imploram desesperadamente por serem entretidos. E isso, ali, parece, resume-se às peregrinações, em velhos autocarros, para cruzar a fronteira até ao Paraguai. Ali, o Brasil é made in Paraguai. Ali, o Brasil, parece - eu sei que é forte a imagem- parece ter um vazio genuíno, preenchido com ilusões contrafeitas, como se a luz mortiça da esperança de que algo se cumpra (não se sabe muito bem o quê) estivesse a ameaçar, frequentemente, apagar-se.
Etiquetas:
foz de iguaçu,
tríplice fronteira
sonhos, o dia seguinte
Numa paragem de autocarro, uma velha agarra a minha melhor amiga e pede-lhe para a acompanhar a casa. Como? A casa. Já ali ao dobrar da esquina. Depois do firmamento, do muro maior, das doze casas, do relógio, da praça. Haveria um fundamento qualquer para a imposição, mas não me recordo. A minha melhor amiga hesita. Eu não a deixo ir. A velha ensaia bater-me. Acompanho-as a contragosto da outra e digo que sou irmã dela. Ah, bom assim, pode ser.
Ela quer que durmamos lá. Quer companhia, mas o cheiro dos móveis incomoda-me. Quando me apercebo a melhor amiga desapareceu e eu estou cativa dentro daquela casa. Atendo a campaínha. Crianças num autocarro. Crianças bolivianas num autocarro e uma carta para mim. Não há nome. Porque soube que era para mim? Um velho entra, depois, ca casa, não me reconhece e não sabe o que ali faço. Marido, amante, irmão, um velho. O que seria ele para aquela mulher? Dormem em quartos separados. Ex-casados que decidem partilhar a mesma casa, apesar do amor se ter ido. Ficou caduco, e foi-se. Talvez cativar o novo para reviver uma vida que não queremos que se vá. Ela só quer companhia. Fim.
Ela quer que durmamos lá. Quer companhia, mas o cheiro dos móveis incomoda-me. Quando me apercebo a melhor amiga desapareceu e eu estou cativa dentro daquela casa. Atendo a campaínha. Crianças num autocarro. Crianças bolivianas num autocarro e uma carta para mim. Não há nome. Porque soube que era para mim? Um velho entra, depois, ca casa, não me reconhece e não sabe o que ali faço. Marido, amante, irmão, um velho. O que seria ele para aquela mulher? Dormem em quartos separados. Ex-casados que decidem partilhar a mesma casa, apesar do amor se ter ido. Ficou caduco, e foi-se. Talvez cativar o novo para reviver uma vida que não queremos que se vá. Ela só quer companhia. Fim.
segunda-feira, fevereiro 21, 2011
Cartas da Hilda
Os estados abruptos desta mulher que vive a mil rotações são um paradoxo. Ora desejamos viver tanto como ela, ora nos enternecemos, ora angustiamos com as ansiedades dela, ora não queremos, nem por um segundo, estar na pele do que possa Hilda ser. Um misto de Virgínia Wolf com Clarice Lispector, onde, certamente, haverá ainda, um dedo de Hilda Hilst.
Abri de manhã o e-mail. Ela escreveu-me. Tem-me escrito todos os dias. Houve a Hilda Furacão, sabemos, essa mulher arrebatada de vida, na vida, a fulgir dela, na sedução contínua de luxúria e homens. Também gostaríamos de ser um pouco como ela, mas falta-nos coragem. Há-de ser coragem, sei lá. A monogamia, parece, é uma treta. Os olhos dos outros dizem-nos tudo. A Hilda contou-me que todos os amigos lhe contam que não faltam escapadas de fim-de-semana, ou aventuras. Ou haverá a pornografia (e sobre isto a Hilda também me escreveu, a pedir conselhos). Ela consegue ser mais fiel do que os homens dela. A Hilda! Sobretudo aqueles que se queixam de que as mulheres não os compreendem. Faltar-lhes-à um pouquinho de sensibilidade. Dizia, a Hilda escreveu-me. Omito algumas partes e passo ao essencial:
"Eu não sei pensar. É uma bestialidade, assim, quando o pensamento se dá em espasmos e tentamos controlá-lo a ver se lhe desvelamos alguma coisa. Uma coisa que seja. Vão. Em vão. Há-de haver uma saída, mas só labirintos surgem pelo corredor. Temos sempre de escolher pelos labirintos. As portas estão fechadas. E sempre que tento abri-las ocorre-me olhar para o molho de chaves que tenho na mão. Elas chacoalham e não as decifro. Eu não as decifro. Parece uma charada e hei-de ver a Alice, o coelho apressado, o relógio, e o gato que ri, mas nunca encontrarei a geografia da maravilha. É o espanto que resiste. A maravilha é o espanto da nossa fantasia. Eu vejo as portas e sei que nenhuma delas me há-de levar, lá, onde quero."Há-de haver uma saída", penso. E, enquanto penso, vem-me o labirinto, como se fosse uma composição barroca.
Mas, Van, eu não sei pensar. Não sei. Como se pensa? Não podes dizer-me porque o labirinto de ti é muito diferente do meu. Eu não acredito nos meus padrões mentais. Esta cultura. Esta coisa arraigada de sermos assim porque fomos influenciados pelo enredo ao redor. Olha só: o enredo ao redor. Um labirinto. Outra bestialidade. Eu não sei pensar, ou os pensamentos são sempre miríades das possibilidades que temos. Depende da geografia. E onde queremos chegar? Onde queremos chegar? Também não sabes. Eu sei. Mas lê-me. As hipóteses que temos. Porque não escrevo eu sobre coisas banais e me debruço, agora, sobre que não sei pensar? Se soubesse, haveria de encontrar uma saída. Há homens tão pequeninos que as encontram e vêem logo. Mas quanto mais vemos, menos sabemos, e mais queremos saber-lhe. Mas ficamos sempre demasiadamente anestesiados para decifrar. Para reagir. Pois, turva-se-nos tudo. Até no labirinto vemos nevoeiro.
Van, isto assim não pode ser. Havemos de encontrar uma saída juntas. E que eu não sei pensar é uma bestialidade. Vês? Não achas que devíamos ter uma dessas pastas de arquivo computorizadas para que as pudéssemos procurar com um simples "find"? Assim não nos perderíamos, jamais, no labirinto. As portas mais importantes abrir-se-iam. Quando espreito pelos buracos está sempre escuro. E as portas entreabertas já as conhecemos. Queremos ir, sempre, um passo depois pelas portas trancadas. Quero parar e nunca consigo. Até que vem a taquicardia: o bacanal do coração. E já não vemos as portas, as chaves, o corredor, nem o labirinto. Eu sei que não sei pensar, já mo disseste, não é uma bestialidade?"
Etiquetas:
as CArtas de Hilda,
eu não sei pensar,
Hida
sonhos
Que perco o avião e urge mudar o voo. Peço uma segunda oportunidade. Que na mala cabe o essencial, mas que o essencial é relativo. Que voo: deve ser o efeito "Hancock" de fim de domingo à tarde com o Will Smith. Voo uma e outra vez. Haverá terceira e quarta (um voo acelerado sem ser uma Van alada) e devo acertar na terceira janela, onde gente me olha com cara de espanto. E o espanto é, também, uma coisa relativa. As paredes desse prédio são de granito. Há gente que conheço e houve gente que não conheço. Houve sensação estranha de sonho sonhado. Não me lembro de mais nada. Aterragem forçada e acordo de madrugada a ver as horas que ainda faltam para descansar de sono e desejar não sonhar com nada só para poder dormir.
sexta-feira, fevereiro 18, 2011
Mais uma vez, todo o futebol que há em mim (III)
A Cris lembrou-me, há bem pouco tempo, que gostou muito deste texto, que os comentários no fim dele foram animadores, e que houve mais gente a interessar-se pela prosa. Na época, o Alf teve uma espécie de ataque de generosidade exacerbada e elevou o caso a elogios rasgados, divulgando o pequeno texto sempre que pudesse, como se ganhasse à percentagem por peça lida; o Veiga entusiasmou-se e chegou mesmo a ligar-me, impressionado, pelo facto de esse ser o texto que ele me viu a parir num sprint de 10 minutos depois do jogo PortugalxBRasil, com o "deadline" a apertar pela diferença horária. Percebo muito pouco de futebol, aliás não tenho interesse algum no desporto (deve ser coisa de mulheres mesmo, tudo bem!), mas em tudo o que há emoção eu acho que até me vou safando, porque, parece, especializei-me em observar os outros e a fazer deles meus personagens principais. Depois, as melhores coisas que podemos ter dos amigos e das pessoas mais próximas, em relação ao nosso trabalho é, em primeiro lugar, a sincera crítica severa, ou, com sorte, o elogio. Nunca a indiferença. Nunca a indiferença.
Recordo a prosa. Obrigada Cris.
O coração palpita, as mãos suam, os olhos arregalam-se magnetizados pelo ecrã, para seguir a bola, as fintas e o gingado das pernas a manipular a Jabulani.
Há o remate: quase golo. E neste quase-golo, aos 17", a Tânia começou a roer as unhas. Voltou a elas várias vezes. Prendeu o cabelo, mexeu no lenço atado ao pescoço com as cores da selecção portuguesa, levantou-se da cadeira e tirou a bandeira atada à cintura. Foi buscar mais uma cerveja para acalmar os nervos. Bebeu e não funcionou. Já não se sentou mais, solidária, com a meia centena de portugueses, que assistiam ao jogo Portugal-Brasil numa sala de uma pizzaria em São Paulo, em pé. Fervilhavam, de um lado para o outro, com pele de galinha.
Ninguém se sentou nas cadeiras à volta da mesa. Espalharam-nas pelo centro da sala: "bagunçaram", para poder ver melhor o "onze" do "telão". Houve alguns "traidores": sentaram-se na janela, decorada com as cores da equipa canarinha, para fumar. Só os brasileiros, da sala ao lado, conseguiam conter a ansiedade do corpo. Barulhentos, mas sentados. Quando o José passou por eles, para descer as escadas e fumar um cigarro, como paliativo para o corpo suado, inquieto, relaxou. "E aí, portuga, você vai levar um cartão amarelo, se voltar a passar aqui". Sorriu, gracejou com eles e já não desceu as escadas. Ficou "batendo um papo" para "não levar um amarelo" e juntou-se à torcida da equipa de Dunga, do outro lado da sala. Quando a bola dos navegantes roçou ao lado da baliza da selecção brasileira, não se conteve. Gritou: "A culpa é daJabulani. Aquela rotação está errada! Isto tem de acabar, temos de marcar". Culpa: tinha encontrado o bode expiatório para a tensão que estava na ponta da língua, pronta a disparar, depois da desilusão que não o beneficiava no marcador. Aí, os brasileiros da sala ficaram tensos. Não acharam "engraçado" ter um português na mesma sala que eles. Deram-lhe um cartão vermelho. "Melhor você voltar para lá, junto com seus amigos", ouviu-se. Voltou. Encontrou o Alfredo a mexer no telemóvel, irritado: "A ligarem-me a uma hora destas, com o jogo a decorrer?".
Mais calmo, o brasileiro Rodrigo, descendente de portugueses, torcia por Portugal em silêncio. Só se denunciava aqui, desassossegado: enrubescia sempre que o Brasil tomava a posse da bola. Susteve a respiração, inúmeras vezes. Tal como o Justin, luso-americano que cirandava pela sala, entre os "tugas". O oxigénio voltou no final: marcador "zerado" foi, no fundo, "um alívio". É que, no futebol, como na vida, os nervos não têm nação. Ganham sempre!
Texto publicado no jornal Público, editoria de Desporto, no dia 26 de Junho de 2010
Etiquetas:
jornal público,
mundial portugalxbrasil
Crónicas Amazónicas, lá, onde a gente tem sinais
Sai uma arca frigorífica da Kaiser da Igreja Matriz de Manaus. Vende-se Coca-Cola à porta. Magistral, também, esse Guaraná do Amazonas. Ela vem de top transparente, assim preto rendinhas, legging cor-de-laranja, roçado e sujo na bunda. Meneia a anca. A tribal dança feminina. Olha gulosa o rapaz sentado na escada. Lá atrás filmam a Igreja. E o carro de Carnes Fino Corte espera, aguarda. Reserva-se, entretanto, comida num placard ali tão perto, numa praça que quer ser adro de Igreja matriz, mas empresta em vez a uma esplanada improvisada para a festa. Haverá festa, portanto por ali. Por isso, também se reserva comida: 3621-0443, o DDD é 92, Manaus, Amazonas.
Quanto de vida há em cada canto do mundo, num segundo? Nos minutos vagarosos da Amazónia? Nos minutos de vida improvisada. Pó. Há pó. E quantos segundos são tudo na mesma escada, na mesma porta de Igreja de onde sai a arca frigorífica. Este homem passa de novo agora com camisola levantada. A barriga está nua. A nudez da barriga é sinal de festa. Há festa. Haverá festa. O palco está montado, por isso, falta o entretenimento para a malta. Já limpaste o palco? Oh, mulher, que ali limpas o palco. Varres, devagarinho. Quem te sujou o palco? Para que festa? Ah. O placard da comida que se reserva: Prato completo a $ 55; Arroz, Vatapá, Frango desfiado, farofa, Tacacá. Lá tem. Vinagrete, ora, a três reais. Fatia de Pudim ou Brigadeiro a um real. Fatia de bolo de macaxeira a dois reais. Pode encher-se a boca só a dizê-los: Macaxeira, Tacacá, Vatapá. E há porção de três salgadinhos para enganar a fome. Creme de Cupuaçu...Banana Fruta. OBS.: pratos sujeitos a alteração sem aviso prévio. A comida pode mesmo ser um imprevisto.
Quanto de vida há em cada canto do mundo, num segundo? Nos minutos vagarosos da Amazónia? Nos minutos de vida improvisada. Pó. Há pó. E quantos segundos são tudo na mesma escada, na mesma porta de Igreja de onde sai a arca frigorífica. Este homem passa de novo agora com camisola levantada. A barriga está nua. A nudez da barriga é sinal de festa. Há festa. Haverá festa. O palco está montado, por isso, falta o entretenimento para a malta. Já limpaste o palco? Oh, mulher, que ali limpas o palco. Varres, devagarinho. Quem te sujou o palco? Para que festa? Ah. O placard da comida que se reserva: Prato completo a $ 55; Arroz, Vatapá, Frango desfiado, farofa, Tacacá. Lá tem. Vinagrete, ora, a três reais. Fatia de Pudim ou Brigadeiro a um real. Fatia de bolo de macaxeira a dois reais. Pode encher-se a boca só a dizê-los: Macaxeira, Tacacá, Vatapá. E há porção de três salgadinhos para enganar a fome. Creme de Cupuaçu...Banana Fruta. OBS.: pratos sujeitos a alteração sem aviso prévio. A comida pode mesmo ser um imprevisto.
Há música. Agora há música. A "louvar a Deus, Jesus Evangélico" na praça ali em baixo, antes do adro que é esplanada, antes, muito antes de se subir a escada onde está sentado o rapaz que a outra, a do legging laranja-roçado, galou. Há folhas secas, tão secas, no chão do jardim onde se louva a Deus.
Destak. Calçados, Algodão. Lojão TEM-TEM. Ah, tem. Como tem. Uma cidade enlatada como Manaus há-de ter tudo: tropicalidade a ser urbana, interior a querer ser genuíno - e o porto ali ao longe mal-cheiroso! Welcome to Manaus. Na hora certa para você: Condomínio Ajuricaba; Falcony´s Piercing; Luane compra e venda de electrodomésticos, componentes eletrônicos. E o 126 vai para o centro, terminal 1, Via conjunto Manoa; Punta Negra, Guaraná Real. Jolie Madame: Ótica e Jóias Óris. Hotel Paracatu. Tem promoções? Banheiro? Água quente? Cama de roupa lavada? Colchão como deve de ser? Assembleia de Deus dias de culto. Educandos. Cachoeirinha, Centro Educacional Santa Terezinha. Gasoduto-Coari-Manaus. Forró da Cabeça. Escola Estadual Euclides da Cunha (Os Sertões não estão um pouco longe?). Transmanaus. Vila Felicidade. Marapatã. "Prefeitura de Manaus mostrando trabalho" - ah o Mundial a semear o marketing. Espírita vidente Dona Valda, Tarô, Búzios. Pernoite com pole-dance por apenas $68; Banda GLS VIP com Realização de Bruna La Close, no Rio Negro Club. Shows de Drag Queen...A parede da casa de banho do Shopping: "A prática de ato obsceno em lugar público, aberto ou exposto ao público é passível de pena de detenção de 3 meses a 1 ano: art. 233 do Código Penal". Igreja Pentecostal Santuário dos Milagres. Fim de Linha.
Ai, o diabo!
O Diabo não existe, é tudo fruto da nossa imaginação. É uma artimanha da cuca, embora muito boa gente diga que ele por aí vagueia, com ar empertigado, silencioso, e xereteiro pelas ruas, tal qual um cobrador de fraque, disfarçado; fantasma a tentar moços e moças de boa estirpe, criados no mais fino e douto berço familiar. Já ouvi dizer que ele veste Prada. Que dá uma de padeiro, amassando pão. Discreteia nos mais requintados lugares para recrutar tripulação para a sua barca, encarcerar almas em contratos eternos, tentar pactos com os mais argutos dos argumentos. A retórica é uma coisa diabólica! Oh, diabo!
Sei que não devia duvidar, assim, como herege, da aguçada e vivida sabedoria do popular. Ai, o diabo! Mas imaginar a maldade e a ardileza numa síntese de um espírito das trevas é, desde já, assumir a existência de um ser que se fosse matéria-aqui-e-agora haveria de querer aparecer em todas as capas de revista contemporâneas. Não nego que ele respire o mesmo ar que eu! Apenas desconfio! E, se não for um? Forem muitos? Uma raça travessa do Capeta! Já sei: uma tribo dos diabos!
Acto de contrição: Não assumo, no entanto, que ele, realmente, exista, pois seria cair já na rede ardilosa dos charlatões diabólicos. Está, pois, Lúcifer, na nossa cabeça: o pensamento pode ser essa espécie de cozinhado em lume brando, ao qual, às vezes, juntamos os ingredientes errados e, claro está, resultará, sempre, num intragável prato. Quanto mais lhe aumentarmos a temperatura, mais aceleramos o esturricado certo.
Porém, a criatura infernal serviu já de inspiração para muitas sínteses sobre a vida e a relação com os outros. Um paradigma de advertência sobre a efemeridade das coisas e de que, estando mal alguma coisa, poderá sempre piorar.
O diabo está, sim, na nossa na cabeça. No fértil imaginação para explicar a tentação (quem, diabo, o terá inventado?), a soberba, a tirania, e o riso agudo da malícia e do azar como se fosse pai pródigo no pecador ofício para povoar a geografia da vida, daquela em que andamos sempre a evitar angariar lenha para nos queimarmos. Está no imaginário, pois, de uma expiação interna. Não vamos por ali, para que o carrasco não nos apanhe. Não percas a cabeça!
Mas essa suposta antiteodiceia alimentou, já, grandiosas obras literárias como "O Mandarim" e "O Senhor Diabo" de Eça de Queirós; "Fausto" de Goethe; "A Igreja do Diabo" de Machado de Assis, "O Exorcista" de William Peter Blatty, "Auto da Barca do Inferno" de Gil Vicente, "A Hora do Diabo" de Fernando Pessoa, '"O Evangelho Segundo Jesus Cristo" de José Saramago, '"A Divina Comédia" de Dante, as "Litanias de Satanás" de Charles Baudelaire, "O Arquiinimigo de Belfegor" de Maquiavel, "O recibo do Diabo" de Walter Scott, "O diabo no Campanário" de Edgar Allan Poe... Bem como entronizações infantis às artes de Mefistófeles com os irmãos Grimm, Christian Andersen e, claro, a saga Harry Potter, de forma mais velada e dispersa em vários personagens... Outra tribo do diabo!
Somos por isso, mesmo que não queiramos, ou sequer tenhamos a mais ténue pista consciente, instruídos na cultura do diabo. Satânicos silenciosos. Além de estar, por isso, na nossa cabeça, posso atestar que o diabo, pois, evidentemente, está nos outros. O diabo está sempre nos outros.
Etiquetas:
antiteodiceia,
o diabo está nos outros,
o diabo na literatura
Cidade de Deus 1.2.
Lama, a lama. Lixo. Jacarés de papo amarelo a comer restos de corpos, se não os comerem antes os porcos (anagrama acidental). Pântano. A lama movediça. Fim de dia com luz mortiça. Cortiço a céu aberto, de rio-esgoto cinza-escuro-turvo, em ácida putrefacção. Uma janela para o Hades, ou isto é apenas um afluente da líquida escatologia a rasgar a Cidade de Deus. Rio de Janeiro.
© Vanessa Rodrigues |
Etiquetas:
cidade de deus,
Rio de Janeiro
quinta-feira, fevereiro 17, 2011
A conspiração brasileira
Acho que estou a ser seguida. Evito olhar para trás, para me aliviar de uma certa paranóia, mas começo a desfazer as dúvidas, como se esmagasse conchas nas mãos. Sinto suores frios, ventos pessoais, arrepios na espinha e borboletas no estômago.
Há uma conspiração contra mim, digna das mais exímias investigações policiais. Não se pode, por isso, integrar na equipa aspirantes a inspectores da PJ ou detectives amadores, por mais conceituados que sejam - e mesmo já consgrados pelos jornais, nas páginas dos classificados. Alguém me acuda!
Há uma conspiração contra mim, digna das mais exímias investigações policiais. Não se pode, por isso, integrar na equipa aspirantes a inspectores da PJ ou detectives amadores, por mais conceituados que sejam - e mesmo já consgrados pelos jornais, nas páginas dos classificados. Alguém me acuda!
Sim, há, pois, uma conspiração brasileira contra mim. A todo o lado que vou, há brasilidade a espreitar-me. No metro do Porto, sempre há uma conversa com gingado na Língua, na rua, haverá de aparecer um suor a "tudo bom, por gentileza" a perguntar-me as horas; o filme "Palavra e Utopia" (Manoel de Oliveira) de ontem era sobre o Padre António Vieira, no Brasil (com o Lima Duarte quase no leito derradeiro); o meu irmão insiste em fazer um sotaque retumbante e ridículo à hora de jantar para dizer que sabe falar português do Brasil e, de vez em quando, ainda me saem uns gingaditos sambados da boca. Oi?
Mas o caso mais crónico que prova a teoria da conspiração brasileira foi há mais de um mês. É como a jabuticaba: só é boa, quando amadurece. A percepção das coisas é como a fruta. Era manhã a meio, alguma chuva, a estação da Trindade quase vazia, eu sentada nos frios bancos de granito, quase no fim da linha da estação a já querer ser Lapa, e um senhor de madura idade a arrastar os pés na minha direcção. Como ele se aproximasse e foi como que sentisse que ele haveria de me dirigir palavra.
Veio, vagarosamente e perguntou-me se o metro para a Póvoa ainda ia demorar. Expliquei-lhe que não sabia dizer, que o placard anunciava os próximos metros, dissertou um pouco sobre como antes era possível ver os horários dos comboios e agora não, mas que o metro era uma coisa boa. Falou que estava mais lento desde uma operação. Que convalescia. Até que lhe ocorreu comparar o metro do Porto ao METRO de São Paulo (estão a ver, né? Qual era a probabilidade de um senhor de tenra idade me falar do metro de Sampa, onde vivi 5 anos? "Aqui há gato", pensei.)
Veio, vagarosamente e perguntou-me se o metro para a Póvoa ainda ia demorar. Expliquei-lhe que não sabia dizer, que o placard anunciava os próximos metros, dissertou um pouco sobre como antes era possível ver os horários dos comboios e agora não, mas que o metro era uma coisa boa. Falou que estava mais lento desde uma operação. Que convalescia. Até que lhe ocorreu comparar o metro do Porto ao METRO de São Paulo (estão a ver, né? Qual era a probabilidade de um senhor de tenra idade me falar do metro de Sampa, onde vivi 5 anos? "Aqui há gato", pensei.)
- Como?
- O metro de São Paulo. É enorme. O do Rio também. Gosto muito de andar no do Rio, mas o de São Paulo é muito grande.
Ainda meio aturdida, condescendi a conversa. Dei trela.
-Conhece bem São Paulo?
- Então não? Os meus filhos moram lá. Volta-e-meia lá vou eu. Duas vezes, por ano, claro, que depois vêm eles.
-Ah, bom! É que eu morei 5 anos em São Paulo.
- Não me diga! Olhe que coincidência.
(Aqui, confesso, tentei descortinar através de métodos psicológicos de observação, para aferir o quão espontânea era esta reacção e perceber se desvelava a mando de quem aquele idoso me espiava e seguia, ainda que a passos lentos.)
- Sim, pertinho do centro.
-Ah, onde?
- Morei em tantos sítios que é difícil enumerar, mas recentemente estava perto da Avenida Paulista. Mas já morei em Vila Madalena, Perdizes, Pinheiros, no...
- Ah os meus filhos moram em Pinheiros, bom bairro. Até acho que me lembro da rua é qualquer coisa com Valente. O Calote Valente? Valente...
Já meia desconfiada por aquela cabala se estar a unir numa espécie de dose a mais de coincidências deixei que ele encontrasse lá o nome, não fosse eu influenciar a solução, desviando-a da verdade...Até que..
-É isso. Já me lembrei: Rua Capote Valente....
- Ah, que giro. Também morei na Capote, mesmo do lado...
- Da praça Benedito Calixto...
A teia estava montada. Se houver um Rubem Fonseca ou Garcia-Roza disponíveis, que venham em meu auxílio...
Etiquetas:
conspiração brasileira,
garcia-roza,
rubem fonseca,
São Paulo
Concorrência, ou arte de tirar a roupixa!
"Ex-quadros do Santander põem a nu esquema para reduzir factura fiscal". Voltamos ao striptease da banca, ou então abrimos a época da guerra aberta à Playboy...
Etiquetas:
notícias,
playboy,
striptease da banca
quarta-feira, fevereiro 16, 2011
O meu lado pseudo-intelectual, ou isto está bonito está...
Memória e Literatura, A Desordem do Mundo - Literatura e Estados de Excepção; Estudos Comparatistas, exílios, Poética e Modernidade, Estética Comparada, Bolaño, Sebald, Saramago, Júlio Cortazar, Juan José Sauer, Bachelard, Bergson, Camus, Kafka, Primo Levi, Castro Alves, Mário de Andrade, Edward Said, Deleuze, Diderot...e pronto, já chega...Mas isto é um tesão, até Junho, vamos combinar, né?
Aviso do Grande Irmão, a quem interessar....
Avisa que a probabilidade de se tornar monocontextual é grande, desde que anda de ouvido aguçado em aulas de Estudos Literários e Literatura Brasileira... Acho que as minhas próximas vítimas são, obrigatoriamente, toda a obra de Rubem Fonseca e incursões cinematográficas - todo o naturalismo que nele há; , João do Rio, e deste lado: Saramago e estados de excepção. Traduzindo: não liguem que isto um dia há-de passar, como todas as paixões arrebatadas... ou não!
indagações lispectorianas para entender o estado actual
"Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil."
Clarice Lispector
Estado de sítio
O vento passou do assobio ao rugir. Derruba caixotes do lixo que abrem a boca, vomitando restos de sacos de plástico. Ruge, daquele rugir que atravessa as frinchas e parece querer apagar lamparinas, se as houvesse. Há Romantismo por aqui. Há Goethe. Há Murnau.
Há árvores chacoalhadas, nuas, muito nuas, de secos ramos vazios. Há bátegas imponentes a jorrarem do céu. Há ramos, verduras, restos de flores, folhas secas a chocarem com o vidro, a quererem entrar onde há calor, candeeiro a ténue luz.
Há aspereza no caminhar desse vento, que hoje não levita em brisa, tacteia com passos retumbantes a terra. Há um gotejar enquanto o gato assenta cama no parapeito.
Há rugido, e uma réstia de azul ali no fim da tela que é telhado de mundo. Se telhas as tivesse, estaria nu, como já o está, em névoas que turvam o que resta de indigo.
Ruge ruge. Ruge vento, em temporal, com companheiras pingas para lhe humedecer a empreitada com a noite caída. E com a noite tombada e vento assim, haverá insónia certa para árvores, galhos, caixotes e gente que ao primeiro assobio, saberá pôr as mãos onde as deve para abafar o lamento do vento...
Há árvores chacoalhadas, nuas, muito nuas, de secos ramos vazios. Há bátegas imponentes a jorrarem do céu. Há ramos, verduras, restos de flores, folhas secas a chocarem com o vidro, a quererem entrar onde há calor, candeeiro a ténue luz.
Há aspereza no caminhar desse vento, que hoje não levita em brisa, tacteia com passos retumbantes a terra. Há um gotejar enquanto o gato assenta cama no parapeito.
Há rugido, e uma réstia de azul ali no fim da tela que é telhado de mundo. Se telhas as tivesse, estaria nu, como já o está, em névoas que turvam o que resta de indigo.
Ruge ruge. Ruge vento, em temporal, com companheiras pingas para lhe humedecer a empreitada com a noite caída. E com a noite tombada e vento assim, haverá insónia certa para árvores, galhos, caixotes e gente que ao primeiro assobio, saberá pôr as mãos onde as deve para abafar o lamento do vento...
A mulher sem cabeça, ou, ah ok, entendi: espectadores prestes a perderem-na
"La Mujer sin Cabeza" (2008) da argentina Lucrecia Martel é um daqueles filmes que, de certeza, inspirou muitas e longas críticas de pura masturbação intelectual.
O cartaz do filme tem, em letras garrafais, "elegante", "brilhante", conforme consta no site do IMDB, onde estão, pelo menos, 72 análises internacionais. A crítica portuguesa, pelo Ípsilon, arranca com um "o melhor filme que vamos ver todo este ano". Mas chega a falar em autismo, em conceptual... Nada contra os autores que transportam o universo particular para a cinematografia.
Martel, pelos vistos, chega a ser comparada a Antonioni. Vitória, com certeza. E, neste caso, são 86 minutos à procura do Wally, numa lenta valsa, de uma história que não evolui, ou melhor, apegamo-nos à lógica de encontrar a mulher decapitada, lato senso,vai! Ok, podemos sempre evocar razões conceptuais, discorrer sobre a psicologia cinematográfica, dissecar o personagem, a semiótica, a filosofia da linguagem, o sistema simbólico, desestruturar a trama à Walter Benjamim ou Roland Barthes, dar um golpe pseudo-intelectual de fenomenologia Hursseliana, mas havemos sempre de nos afastar dos filmes herméticos.
Nessa linha, chuto a conclusão: a Verónica que vemos é uma mulher frustrada, perdida, e vai perdendo a cabeça, a identidade, a partir daquele fatídico acontecimento que a faz transpor de uma espécie de mutação de personalidade. Sim, é isso, vai perdendo a cabeça.
Há algumas deixas no filme que parecem querer fazerem-nos esse desenho, como quem dá pistas para o enigma: "não parece a tua voz", diz-lhe a mãe; "eras tão bonita, por que te estragaste?"; a virgem está imunda; e, depois, passamos a vida a aperceber-nos do cabelo dela: que ora etsá louro e imundo, ora está amarrado, lavado à chinesa (que consiste apenas em passar água, sem realmente lavar), ora está pintado de preto, no final. Outra mulher. Outra cabeça.
Sim, aquela mulher vive uma elipse paralela à realidade circundante: há uma Vero antes do acidente; há outra Vero depois do Acidente. Vêem? A coisa resolve-se, posso lançar confetis e gritar vivas honras, pois o exercício do pseudo-intelectualismo é uma coisa que, afinal, se pode facilmente exercitar.
Confesso, no fim do filme (não está na lista para uma revisão mais tarde recordar), a mulher sem cabeça era, pois, eu. A patavina que era suposto estar ali perceptível- há quem acuse o filme de correr o risco de não ter espectadores à altura: Eu, Vanessa, me acuso - passou-me ao lado. E é um exercício violentamente desnecessário.
Vou ver o Barbeiro do Joel Coen. A ver se fico um bocadinho mais inteligente.
Há algumas deixas no filme que parecem querer fazerem-nos esse desenho, como quem dá pistas para o enigma: "não parece a tua voz", diz-lhe a mãe; "eras tão bonita, por que te estragaste?"; a virgem está imunda; e, depois, passamos a vida a aperceber-nos do cabelo dela: que ora etsá louro e imundo, ora está amarrado, lavado à chinesa (que consiste apenas em passar água, sem realmente lavar), ora está pintado de preto, no final. Outra mulher. Outra cabeça.
Sim, aquela mulher vive uma elipse paralela à realidade circundante: há uma Vero antes do acidente; há outra Vero depois do Acidente. Vêem? A coisa resolve-se, posso lançar confetis e gritar vivas honras, pois o exercício do pseudo-intelectualismo é uma coisa que, afinal, se pode facilmente exercitar.
Confesso, no fim do filme (não está na lista para uma revisão mais tarde recordar), a mulher sem cabeça era, pois, eu. A patavina que era suposto estar ali perceptível- há quem acuse o filme de correr o risco de não ter espectadores à altura: Eu, Vanessa, me acuso - passou-me ao lado. E é um exercício violentamente desnecessário.
Vou ver o Barbeiro do Joel Coen. A ver se fico um bocadinho mais inteligente.
Etiquetas:
crítica de cinema,
la mujer sin cabeza,
lucrecia marte
O grito
"Porque há o direito ao grito, então eu grito", Clarice Lispector.
Ontem ouvi, de novo, esta frase, numa aula sobre Literatura Brasileira dos séculos XIX e XX, a propósito do projecto fabuloso - um desses de paixão - da Patrícia Lino. Declaração de princípios: o Brasil é minha segunda pátria, que não haja dúvidas, e, por isso, tenho uma relação afectiva, manifestamente carnal (toda a antropofagia que há em mim, sosseguem), com a Literatura da terra do Machado de Assis. Faço dela amante, amor, paixão e uma desenfreada fome de a comer. Quanto ao grito da Clarice, é genial. Não a conheço tão bem quanto gostaria e ela merece; falta-me prosa suficiente para saber em que barrica maturava esta mulher de vontades viscerais e prosa asperamente perfeita.
O "grito" dela é genial porque é catártico, ainda que uma purgação silenciosa, com cheiro a tinta. É uma necessidade fisiológica que recalcamos por um certo decoro social. O grito. Verbo declinável. Presente do Indicativo. Abrir-a-boca-encher-o-peito-dar-ordem-cerebral-para-o-processo-de-metralhar-a-voz-circuitos-de-aumento-de-volume-de-voz-até-ao-berro. Gritamos porque dói, ou porque nos queremos livrar da voz abafada que ficou cá dentro. (E não consegui encontrar descrição biológica sobre o processo do grito).
Não me lembro de ter alguma vez gritado, mas deveria. Gritado, assim, com vontade profunda. O meu único grito é a paixão. De fazer as coisas com paixão. Acima de tudo, com paixão, porque intensifica-nos a vida e dá-nos a intumescência basilar para poder saltar e amortecer a queda, quando precisarmos...Mas a paixão, sabemos, dá-nos ar, mas não o pão nosso de cada dia.
A arte é, também, essa espécie de grito - como o de Edvard Munch. Um escape para os que não têm a sorte de o dar, despudora e privilegiadamente, numa Praia de São Vicente... Se o desse assim, tenho a certeza, teria sido, também, um dos daqueles dias felizes e aliviadinhos para o resto da vida, como direito e dever exercidos. Do Grito!
Etiquetas:
clarice lispector,
edvard munch,
o grito
Viagens na minha terra, ou isto é uma espécie de reminiscências dos 80's
Não há nada de absolutamente incrível e digno de registo no ano em que nasci, a não ser o parto da MTV, - e passamos a fazer festas de meias de lycra, a ter palas com laca no cabelo e a fazer figurinhas tristes em frente ao ecrã da televisão- que Ronald Reagan e o Papa João Paulo II sofreram atentados, que a revista Tribuna Espírita foi lançada em João Pessoa, e que o Belize e Antigua e Barbuda ganharam o bilhete de identidade nacional.
Assim, assim. Um ano colateral na História do Mundo...
Anda para aí um grupo de nostálgicos a atrasar os relógios, a reivindicar os tempos de inocência, da isenção de responsabilidades, das imunidades da vida adulta e da crença absoluta de que a vida há-de chegar um dia, como a propaganda da Sumol. Ah, e tal: "um dia ainda hás-de pensar que as férias são para descansar", seguido de um "mantém-te original".
Só daqui a uns bons anos esta geração dos 18 e 20 há-de entender o alcance do "teaser" e há-de ter páginas pessoais e espécie de netos high high tech dos blogues actuais com frases desse género Sumol, relembrando em epígrafes, e saudadinhas, os tempos do Facebook (ih, aquela rede social arcaica), os canais pay-per-view (que coisa mais primitiva - e eu até acho que alguns serviços já hoje são, realmente, da idade das películas de celulose, com controlos remotos em slow motion para mudar o título dos filmes); e levar um estalo de luva branca com a percepção de que a coisa da idade é relativa. Que, afinal, hoje, alguém com 30, 40, 50 está no auge da orgia vivencial, uns jovens malucos, e que velhas são as nossas nostalgias. Desnecessárias.
Estou hoje bem melhor do que estava, ou era, há 20. Tenho vivido a mil vidas. Ao tempo o que é do tempo. Se é que ele existe tal qual o percepcionamos. A nossa ideia de movimento deixa-nos sempre um pouco desconcertados, porque andamos sempre ao redor de nós, das nossas realizações, e trazemos uma bagagem precoce do que queremos nesta vida. A elipse é constante. Há reminiscências lixadas. Há memórias que, por selecção, apagamos para seguir em frente. A matéria amassa-se e molda-se. Vamos moldando o barro à nossa feição.
Aprendi mais serenamente a aceitar factos daquilo que não mais de mim depende. E guardo o melhor da infância e da adolescência como aprendizagens e lições para prolongar a leveza da vida, porque o peso envelhece e amarga. Deprime. É desnecessário. Eu não tenho paciência prolongada (a redundância é propositada) para tristezas, embora seja sensível o suficiente para me entristecer mais do que o que gostaria. Alguns minutinhos, ou uma noite bem dormida, e depois faço uma dieta radical das coisas más, fazendo sol, para habilmente aliviar a balança.
Eis, entretanto, o que me ocorre de exclusivo como post scriptum a esta prosa e que me deixam no librar do tempo da isenção das responsabilidades: marmelada de nozes que só a mãe faz, geleia barrada em molete, leite com canela, Mokambo sem açúcar no leite, Nesquik, o som da máquina de escrever, sacas de pano para ir buscar pão, plasticina, poças de água, notas de 500 escudos, postais ilustrados, vinyl, cassetes (e fita-cola para as recuperar se rebentassem), Top+, Sem Limites, Portugal Radical, Tieta do Agreste, malmequeres, milho no celeiro, vindimas e comichão nas pernas, cheiro de mosto para bagaço, o cheiro da neve de Vila Real, nuvens na estrada do Marão, sopas de cavalo cansado, pão de chouriço, bolo de coco, barriguitas, triciclo, BMX, spectrum, mel para a tosse, lotus notes, MS-DOS, Amiga, Prince of Persia, Estrunfes, figos da figueira do avô, galinhas, coelhos, piriquitos, Monopólio, Sabichão, Bingo, VHS, Beta, Reflex, slide, tranças, cabelo à tigela, chocolateira e mais um ror de pontos características de uma mundividência vanessiana pelas viagens na minha terra. Hum: quanto de continentalidade há em mim?
Etiquetas:
anos 80,
infância,
memórias,
reminiscências
terça-feira, fevereiro 15, 2011
Táxi Drive, à Hollywood, entre a Estação do Oriente e Lisboa intramuros
Nunca entrei num táxi sem antes olhar para a cara do motorista. Feeling, manias, ou simples intuição se sou capaz ou não de me deixar ser levada por um determinado rosto e não por outro. Sim, uma espécie de preconceito, mas que até agora tem funcionado como medidor de boas ou de más intenções. A manha, acredito, especializei-a em São Paulo, claro, numa espécie de Pós-Doutoramento prático, na circulação solitária em transportes urbanos. Instinto de sobrevivência: explicará algum ramo da neurobiologia, entrecruzada com os postulados da Psicologia.
Há duas semanas estive em Lisboa. O lugar onde ia era longe "pr'a chuchu"; não havia tempo, as malas pesavam, por isso, a montanha russa do momento era aquele rolante cor-de-creme com um neón sexy e exclusivo dos táxis. Deixei que me passassem à frente duas vezes. Não, não. Aquele não era o cara. Vá-se lá entender a manha, ou como funciona este medidor químico.
Veio o terceiro (para dar razão ao adágio popular) e lá engrenamos na conversa: tinha as indicações direitinhas: "por aqui e por ali; quando chegarmos mais perto digo-lhe melhor" e, assim vai, recheia-se o colóquio improvisado com amenidades, com o tempo, sobre a viatura, o GPS e o trabalho. A história principal veio por causa do tempo de chuva. Se não fosse a meteorologia - esse catalisador de conversas, um quebra-gelo indispensável para manter uma com estranhos - nunca saberia que o bom taxista, Ricardo (outra das manhas é olhar sempre para a carteira de registo do profissional), é actor de novelas.
Vá: figurante. Vá: motorista de táxi nos filmes e nas novelas portuguesas. Se começarmos a reparar com jeitinho, atenção e olhar microscópico de quem vê como deve de ser, vamos perceber que em todas as novelas da SIC e TVI, e na maioria dos filmes, aparecem sempre os mesmos 5 taxistas, com contrato de exclusividade.
Ricardo, o diligente, falou-me que a Dalila Carmo é uma simpatia. Que o Ruy de Carvalho é uma figuraça, um homem de histórias fartas, à boca cheia, e que não come com o elenco, pois na mesa dos táxistas, os figurantes, há sempre vinho. O líquido de Baco há-de sempre ser outro dos catalisadores das boas conversas. Outro quebra-gelo, paradoxo até para uma bebida que se quer sem artifícios da água para não oxidar o organismo.
Daqueles de quem não gostava, Ricardo foi sigiloso. Queixou-se que as empresas pagam tarde, que perde serviço por estar 15 dias em filmagens; que já lhe avariou o carro; que tem de andar sempre com a mesma roupa por causa dos erros de raccord; mas depois lá deixou que o brilho lhe viesse aos olhos, como só os triunfantes sabem fazer: afinal, era um dos 5 taxistas que circula pela Hollywood alfacinha.
Quase no fim da viagem, tomou coragem e disse-me que a minha cara não lhe era estranha.
Respondi: - Deve ser da televisão, na vida real sou só figurante! (Risos)
Ricardo, o diligente, falou-me que a Dalila Carmo é uma simpatia. Que o Ruy de Carvalho é uma figuraça, um homem de histórias fartas, à boca cheia, e que não come com o elenco, pois na mesa dos táxistas, os figurantes, há sempre vinho. O líquido de Baco há-de sempre ser outro dos catalisadores das boas conversas. Outro quebra-gelo, paradoxo até para uma bebida que se quer sem artifícios da água para não oxidar o organismo.
Daqueles de quem não gostava, Ricardo foi sigiloso. Queixou-se que as empresas pagam tarde, que perde serviço por estar 15 dias em filmagens; que já lhe avariou o carro; que tem de andar sempre com a mesma roupa por causa dos erros de raccord; mas depois lá deixou que o brilho lhe viesse aos olhos, como só os triunfantes sabem fazer: afinal, era um dos 5 taxistas que circula pela Hollywood alfacinha.
Quase no fim da viagem, tomou coragem e disse-me que a minha cara não lhe era estranha.
Respondi: - Deve ser da televisão, na vida real sou só figurante! (Risos)
Etiquetas:
figurante,
hollywood alfacinha,
Táxi drive,
taxista actor
segunda-feira, fevereiro 14, 2011
VanZilla, ou a extra-terrestre que há em mim
Sou do planeta Piauí, paradoxalmente lírica, sofrendo de contracções pré-prosa, boémia incorrigível, ironia visceral e destilada - talvez envelhecida em barricas de carvalho francês- fuçando, a bisturi, as histórias dos outros, pelo buraco da fechadura. Se perguntarem por mim fui à Lua e já volto, sem oxigénio, pois a gravidade dessas letras exigem pegadas lunáticas para traduzir a vida real, em apneia...
P.S. Vanzilla em modo de hibernação no seu momento Piauí...
sexta-feira, fevereiro 11, 2011
Hilda, a Carta!
Tu nunca foste mulher de conselhos e agora ela escreveu-te. Gostas mais de ser aconselhada, sabemos. Ou então finges não querer saber, blindando-te atrás de uma filosofia de botequim muito própria. Aquela que sai ao telefone, como consulta gratuita de madame Hilda.
E nós invejamos-te sempre mais um pouco porque sabes agarrá-los. Sabes de tudo isso, e fazes de conta que não, só para ouvires. E, depois, porque realmente não sabes como os agarras. É uma coisa que sai, como o suor dos poros em dias de sauna...
Queremos a tua fórmula secreta Hilda. Brincamos: vamos colar-nos à tua pele, besuntar-nos dos teus feromonas e sair por aí a ver se funciona. O isco, o isco. Ai, o isco, Hilda. Só pode ser isso. Eles correm e fluem na tua vida como resina. E tu a maltratá-los com astúcia e segurança, porque realmente não estás interessada. Aconselha-nos, pedimos. Ai, Hilda, como fazes para os agarrar asssim? Aos montes. Magricela como tu, que há-de homem querer de ti a não ser esse teu magnetismo, o charme, e esse teu jeito de não estou nem aí, para que te venham fazer soar o telemóvel em overdose. Nem lhes respondes. Um dia hás-de arrepender-te de não ter dado valor à fartura. Rogamos-te que nos contes o truque. E tu, nada!: sorris, abres os olhos ainda mais um pouco de onde sai um brilho translúcido que nos põe na dúvida se o segredo, então, não será esse olhar rasgado e profundo. Sabes olhar a alma. Vês além do óbvio e isso já faz a diferença. Um desconcerto que os atira para o sofá a quererem ser teus. Estás a ver?
-“Você tem um olhar poderoso, mulher. Você tem noção do poder de seus olhos?”.
Não sabes, mas vais sabendo mais um bocadinho. Foi D. quem te disse isso depois do teatro, lembras-te Hilda? Um Nelson Rodrigues ali esparramado no palco com o “Boca de Ouro” de um Rio corrupto, promíscuo e soturno. Batata!
Talvez seja isso, então, o olhar.
E agora que lhe vais dizer? Que lhe vais responder? Ela enviou-te a carta – e não se pode deixar uma amiga sem resposta. Vais dizer-lhe (pensa, Hilda, pensa...): - Que o peso dela é auto-comiserativo para mostrar a segurança que ela precisa? Que se solte...Age como se não devesses nada a ninguém. Mas nem tu sabes o que fazes!
-“Os homens não gostam de mulheres que não estão bem com elas. Querem-nas leves, sorridentes, autónomas, impositivas e seguras. Não têm paciência para as crises e as tristezas delas, em tensão pré-mestrual intermitente. Por isso, eles arranjam hobbies tão idiotas como puzzles de milhares de peças, aeromodelismo, tunning, e essas coisas. Há sempre a salvação pela pornografia. Tu sabes. Todos eles se contentam com as centenas de canais web para todos os gostos...
Eles têm pânico de ficar em crise... Ou, então: a arte do amor promíscuo, com uma amante!, ou, vá lá – noto agora aqui um padrão da minha obsessão – voltam sempre a essas coisas da net: embriagam-se de pornografia lesbiana ou de lolitas no chat...
Se a crise deles vier, arranjam forma de ter uma confidente, para garantir a escapada certa, e o sexo na certa!”. (Esta foi a Larissa que nos contou, depois que o argentino a trocou pela ex)...
Então, Hilda, sabemos: a segurança vem desse estado de felicidade acto contínuo que têm as mulheres de bem com elas.
-“Eu, sou, eu, sou.”
Um mantra milagroso que deveria constar de todos os manuais femininos.
E tantas vezes o repetiu ela. O mais importante, sempre, eu, e depois, ele, ou eles. A vida autónoma dentro de nós para podermos ser, com os outros. Para podermos ser nós, porra! Saquinho de chá é diferente de erva solta. Dá mais trabalho. O homem quer essa mulher pacote de chá, para não ter de a andar a coar...
Ah, a Hilda é impaciente com esse estado de protecção mulher-homem. Diz-lhe que ela lhe ligue, quando lhe apetecer. Sempre que lhe apetecer. Despudora e despretensiosamente: queres, sim; não queres, a vida é feita de estradas que levam a outros caminhos e eles continuam a ter terra batida, asfalto, paralelopípedos, lama, areia, gravilha... O ideal é que não esteja a chover, nunca...
Mas foste mais longe Hilda. Pela primeira vez respondeste-lhe...
Etiquetas:
ficções e foto por vnrodrigues,
hilda a carta
Diz-me o que lês que dir-te-ei quem sonharás...
Sonhos. Raramente me lembro deles, mas consigo perceber se foi bom ou mau, pela sensação do acordar. O aperto no peito para um pesadelo, a serenidade depois de uma onírica história.
Há dias sonhei com o escritor Miguel Torga. Andava a ler “Os Contos da Montanha” que a ditadura salazarista censurou – e Torga foi durante anos editor dos seus próprios livros.
A prosa deste livro é um caldo de mortes, acertos de contas, alguma bruxaria, traição e emigração portuguesa para o Brasil. Tem invernia, mãos gretadas, corpo amadurecido de sol-a-sol, rugas do gelo montanhoso, cristandade, desamores, republicanismos, cheiro a queimado da lenha ardida, mofo de casa de pedra húmida, silêncio gelado, resignação, mesquinhez popular. Está feita, então, a súmula do conteúdo, deixando à margem, claro, a erudita cozedura das palavras do chef Torga a partir de saberes populares, e o bom emprego da Língua Portuguesa, resgatando os adágios e a sabedoria das gentes do interior da nossa portugalidade.
Mas, voltando ao sonho, eis a razão deste post, além-literatura: sonhei com Torga e recordo que lhe dizia que não concordava com alguns contos daquele livro. Questionava-o sobre a razão da sua insistência na temática. Não me lembro do rosto dele, nem sequer da resposta, mas tive a certeza que a minha condição esponjosa, de me estender aos livros que leio, às músicas que ouço, aos filmes que vejo e, logo, à realidade que me envolve, pode ter benefícios (ou malefícios, claro) se deles souber desfrutar.
Imagino, pois, que posso escolher agora o meu usufruto cultural de acordo com o assunto que me apetece sonhar. Vou, daqui em diante, e sobretudo, ter mais cuidado com a aparência dos escritores que escolho para me entreter. Já pus de lado, por isso, os autores dos livros que esperavam na fila para este ano: Oscar Wilde, Goethe, Cesariny, Rubem Fonseca, Machado de Assis, Eça de Queirós (ao menos acaberei, por ora, o Mandarim)... Pelo menos por enquanto, numa espécie de quarentena a ver se a coisa se repete ou não. Não vá o diabo tecê-los, em sonhos, num pacto com Morfeu.
Etiquetas:
contos da montanha,
miguel torga,
os sonhos
Consultório Médico, ou então parece que voltamos à secção dos Ossos do Ofício da Secção do Reader's Digest
Os consultórios médicos podem ser laboratórios animados e, por vezes, profícuos em saberes extraordinários, pois se não os frequentássemos, nunca teríamos acesso a determinados aprendizados. É como os cabeleireiros: excelentes salas de aula em assuntos tão requintados e exclusivos como as tricas cor-de-rosa, a arte de domar maridos, amantes, namorados ou escapadelas; e outros assuntos de superior interesse para mentes desocupadas.
Esta semana, por exemplo, o tempo de espera no consultório foi maior, porque a agenda da minha médica (o pronome possessivo é meramente explanatório), excepcionalmente, tinha um corpus de palavras a negrito extra, antes do horário das habituais consultas.
Folheio, portanto, na queima do tempo, páginas do meu livro, que cautamente incluo na bagagem diária, até porque ganhei aversão a qualquer prosa em lugares públicos, numa fingida tendência obssessivo-compulsiva, por ter um certo nojo de quem terá folheado aquelas páginas de revistas. Uma herança da infância, claro, pois recordo-me perfeitamente da minha mãe dizer com asco para não pegar naquela ou naqueloutra revista, e, por isso, aprendi a olhá-las como se fossem um cadáver de papel, embora ainda, amarfanhadas, a cumprirem a função fofoqueira-informativa, como se tivesses, sim, uma existência embalsamada.
Enquanto esperava, eu e demais utentes, a funcionária, a Cândida, que me conhece desde pequenina, começou a rir desalmadamente. Em mais de 20 anos, nunca a vi mal-disposta ou arreliada, por isso, pensei que fosse mais um dos seus desvairos, ou estivesse, eventualmente, na brincadeira com alguém do outro lado da linha.
Mas não. Havia uma simples explicação. E-mails engraçados, desses que circulam de correio em correio electrónico (e para os quais nunca tive muita paciência, acabando, por apagá-los no acto de recepção).
Veio, então, a primeira anedota, mais ou menos assim:
- Um português casou com uma chinesa, mas ela morreu ao fim de um ano. Enternecidos, familiares do viúvo consolaram-no, até que alguém teve a coragem de lhe perguntar como ele se sentia. Resposta:
- Já se sabe. Os produtos chineses não duram muito tempo!
Gargalhada. Gargalhada. Gargalhada.
Veio a segunda e última anedota, que, na realidade, é a história que melhor se adapta ao cenário ali envolvente.
- Contratação: Um homem está a ser entrevistado para ocupar um lugar numa repartição pública. É aceite, mas antes o chefe sente-se impelido a cumprir protocolo e, por isso, não dispensa fazer-lhe algumas questões:
- Aqui diz que o senhor não gosta de café. É verdade?
- É sim, senhor. Espero que isso não seja nenhum entrave para ocupar o cargo, mas realmente eu nunca gostei do sabor do café.
- E há mais alguma coisa que eu deva saber?
- Bom, já que pergunta, é melhor que saiba: eu tive um problema de saúde há uns tempos e foram-me removidos os tomates.
- Ah, ainda bem que diz. Pois muito bem. Está contratado. Entra às 11h.
- Desculpe, mas às 11h? Pelo que sei aqui toda a gente entra entre as 8h30 e as 9h da manhã. Por que razão eu entro às 11h? Algum problema?
- Não, não há problema nenhum: é que das 9h às 11h tomamos café e coçamos os tomates.
Etiquetas:
consultório médico,
reader's digest
quinta-feira, fevereiro 10, 2011
Dó-mi-nó
Quando era pequena não cheguei a ser devidamente instruída nos jogos sociais, mas fui fervorosa espectadora. Aos domingos à tarde, os homens da família reuniam em campo gerações masculinas para enrijecer a fibra para o futuro.
O que é certo é que as diligências falharam. E hoje nenhum dos primos, ou primo dos primos, pais e avós praticam mais alguma dessas. A não ser eu: do sexo oposto, em pelo menos um dos jogos. Uma herege na possibilidade de salvar a honra familiar tendo inclusivé importado uma nova fórmula para o dominó...
Mas já lá vamos...
A malha era o recreio favorito do clã Antunes Rodrigues e Sequeira Ferreira: aqueles discos que pareciam moedas do tamanho da mão, pesadas, atiradas em direcção aos pinos, e o cair metálico na terra fofa, era caso para me alertarem frequentemente como se ameaçassem vomitar vísceras:
-Sai daí rapariga que ainda te aleijas. Levas uma cocada nas pernas e há-de ser um ver se te avias!"
Não adiantava muito, mas superei a prova da infância sem saber o que era um ver-se-te-avias a propósito da malha.
Depois, havia a sueca: e aquelas estratégias todas que me faziam confusão. O avô sabia quem tinha o quê, o que já tinha saído, a quantos pontos ia, e os trunfos que cada um ia jogar. Digamos que ele era uma espécie de James Bond da aldeia, no jogo, com a sueca, a sua Bond Girl - é melhor escrever devagarinho para que a minha avó não leia.
E, claro, ainda o meu favorito. O Dominó. Tradição passível de ser encontrada ainda em alguns bancos de jardim de várias cidades, praticada, sobretudo, por homens de idade avançada. Como por exemplo o senhor de alvo cabelo que entrou ontem na Tabacaria de Cedofeita para pedir um dominó novo. Qual não foi a sua desilusão quando ficou a saber que já não se fabrica dominó como antigamente (quem os tens que os guarde como relíquias). Os dominós de agora são placas homogéneas sem o polimento do rebordo, feitos em formas contínuas, com afiados finais no rectângulo. E aquele madrepérola virou um branco lixívia.
Doeu-me algo por dentro, pois, sem o prever, também eu, já passara noites brancas a jogar dominó, em São Paulo, com a Lu, a Carol, a Carolzinha e a Marta. Foi um ano difícil. (Ler isto com ironia), pois a Lu era, digamos, o meu avô. Ou melhor, tinha a verve do jogo igual à do meu avô. Enfurecia-se, sacava as estratégias e pelejava para a vitória, danada se a Carol começava a ganhar. Isso porque jogávamos dominó a múltiplos de cinco. Só assim pontuávamos. Caso contrário: siga peça para encaixe a zero.
Comecei e a embalar-me naquilo e, no meu putativo perfeccionismo, levava mais tempo que as outras para sacar um solução onde o jogo parecia fadado ao zero para mim. Qual quê? Isso levou a malta a surpreender-se com a minha rápida recuperação...
Foram muitas noites, liquefeitas a boas rolhas, Touriga Nacional, Tinta Roriz, Cabernet Sauvignon... Esses sim, cujas gotas encaixavam no palato, na perfeição. Fazíamos serão daquilo. Veio depois o Party, A mímica, o Trivial. E aquilo enrijecia a fibra cerebral.
Mas o dominó continuou a estar na nossa barra pessoal de ferramentas no separador dos favoritos. Aqueles rectângulos, polidos ao redor, madrepérola, macias, sonantes em clac seco, quando tocadas umas nas outras, ou baralhadas na rugosa velha mesa de madeira da sala antiga das meninas. Som de lazer. Uma beleza!
O tempo salta, o cuco soa, a vida roda e desde o Natal passado que importei o estilo dominó com múltiplos de cinco, ao contrário do mero encaixe de números praticado pelos meus antepassados. Ao princípio a estranheza estava plasmada na cara do avô, que mal começou a jogar logo aderiu à artimanha. Posso mesmo dizer que se viciou. Veio o primo, o pai, o tio e, ao redor, já toda a gente se tornava fervorosa assistência a dar palpites. A importação foi um sucesso, portanto. Hoje, o V., viciado em tudo o que é jogo, até joga o estilo no computador. A honra da família está salva, portanto, por uma mulher e a questão prova que, afinal, nem tudo o que é Made in China (como a origem do dó-mi-nó) acaba rápido.
Etiquetas:
avós,
carol,
centro de São Paulo,
dominó,
jogos sociais,
lu,
tradições da família
terça-feira, fevereiro 08, 2011
domingo, fevereiro 06, 2011
Manhattan, baby!
A coisa com Woody Allen não falha: as histórias cruzadas de argumento em argumento, personagens neuróticas, puerilmente enrodilhadas em dúvidas existenciais, e feitos como se fossem nossos clientes e nós, espectadores, cúmplices da filosofia "alleniana" (vejam bem como fica "spooky" a declinação do substantivo do realizador-actor), somos obrigados a reagir como diligentes psicanalistas - muito embora o divã esteja deste lado e nós bem sentados.
Capítulo 1: O filme "Manhattan" (1979) começa com belíssimos planos gerais a preto e branco da cidade, narração em off de Woody Allen, antecipando o livro que esse seu personagem anda a escrever, levando-nos ao universo indeciso de quem amassa constantemente os papéis da prosa, atirando-dos para o lixo, no fracasso do começo da história...
Isaac (Woody Allen), recém-divorciado de Jill (Meryl Streep) que o trocou por uma outra mulher, namora uma Lolita de 17 anos, Tracy (Mariel Hemmingway), que é apaixonada por ele, até que se começa a interessar pela amante (Mary - Diane Keaton) do melhor amigo, Yale (Michael Murphy).
Mary entra em neurose pela situação promíscua com Yale. Rompem. Isaac começa a sair com Mary, que acaba por voltar para Isaac, que acaba por querer de volta a sua Lolita. A sequência frenética faz sentido como se fosse o poema "Quadrilha" de Carlos Drummond de Andrade
("João amava Teresa que amava Raimundo/que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili/que não amava ninguém")
No meio, psicologia pessoal com nevróticas indecisões como se aquilo ali fosse hoje. É, Manhattan de Allen é hoje, ou pelo menos no que diz respeito ao tratado das emoções, dos afectos, desafectos. Sabemos tudo isso, mas pela fraca memória da neurobiologia da consciência somos afectados pelo síndrome do esquecimento.
("João amava Teresa que amava Raimundo/que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili/que não amava ninguém")
No meio, psicologia pessoal com nevróticas indecisões como se aquilo ali fosse hoje. É, Manhattan de Allen é hoje, ou pelo menos no que diz respeito ao tratado das emoções, dos afectos, desafectos. Sabemos tudo isso, mas pela fraca memória da neurobiologia da consciência somos afectados pelo síndrome do esquecimento.
Etiquetas:
diane keaton,
manhattan,
woody allen
[Espia como Puderes part. 1] - I Spy, de Earle Hagen, dirigido pela Roland Shaw Orchestra
A série norte-americana "I Spy" veio para dentro de casa via a caixa mágica entre os anos 1965-1968 (eu ainda não era nascida, mas gosto da banda sonora como uma espécie de vício) com 60 minutos de acção, com a assinatura da NBC.
Bill Cosby (como Alexander Scott - o primeiro afro-americano a aparecer no pequeno ecrã como grande herói) e Robert Culp (Kelly Robinson) eram a dupla imbatível contra execráveis vilões.
Sob disfarce, Cosby como treinador de ténis, e Culp como o bom aluno da raquete, galgavam mundo como heróis nacionais contra ditadores, egocêntricos com convicção de que poderiam dominar o mundo e outros maus da fita.
Os toques do cómico eram vírgulas para pontuar as páginas da acção, mas a brilhante tensão psicológica tinha a música como aliada como este tema "I Spy", composto por Earle Hagen, aqui na sintonia da britânica Roland Shaw Orchestra.
Etiquetas:
anos 60,
cinema,
filmes de espionagem,
i spy,
música de filmes de espionagem
sábado, fevereiro 05, 2011
sexta-feira, fevereiro 04, 2011
Doping do humor, vai uma picada?
Melhora o sistema imunitário, é contagiante, oxigena o cérebro, com 15 minutos diários pode dar mais 4 anos de vida e, parece, quem ri é mais feliz. Nós, portugueses, rimos e sorrimos pouco, cada vez menos, sobretudo, agora que há menos motivos para gargalharmos, todos os dias espanados pelo monstro da crise, que faz com que o pó se entranhe, tornando-nos alérgicos ao bom humor.
Hoje as rádios, ouvi há pouco na TSF, fizeram um desafio logo de manhãzinha aos ouvintes. Sorriam para um desconhecido. Sorriam porque sim, não obstante as contrariedades, o trânsito, os problemas. Riam de si. Sorriam. Os lábios no gerúndio...
Dizem que cantar espanta os males. Sorrir há-de ser bálsamo para atenuar o cinzentismo que nos ensombra a personalidade hirsuta, rija, pesada, que nos entorpece. O repto radiofónico, porém, arrancou tímidos sorrisos, ou, por vergonha, cabeças cabisbaixas com medo do ridículo. E como temos medo do ridículo, talvez por isso, sejamos menos felizes.
Recentemente, uma conhecida marca brasileira de electrodomésticos, a Brastemp, lançou um anúncio com o mote para o mesmo desafio. É talvez por isso que os brasileiros são mais felizes que nós. Riem de si, da vida, dos problemas, das contrariedades e, no final, acreditam que tudo vai dar certo. Levei essa vacina durante uns tempos. Não asseguro que ela funcione a 100%, mas algo há-de ter restado dessa pseudo-imunidade. Levei a picada, do doping do humor. Espero que à entrada em território português, as autoridades de controlo não me tenham tornado impermeável ao bom humor...
Hoje as rádios, ouvi há pouco na TSF, fizeram um desafio logo de manhãzinha aos ouvintes. Sorriam para um desconhecido. Sorriam porque sim, não obstante as contrariedades, o trânsito, os problemas. Riam de si. Sorriam. Os lábios no gerúndio...
Dizem que cantar espanta os males. Sorrir há-de ser bálsamo para atenuar o cinzentismo que nos ensombra a personalidade hirsuta, rija, pesada, que nos entorpece. O repto radiofónico, porém, arrancou tímidos sorrisos, ou, por vergonha, cabeças cabisbaixas com medo do ridículo. E como temos medo do ridículo, talvez por isso, sejamos menos felizes.
Recentemente, uma conhecida marca brasileira de electrodomésticos, a Brastemp, lançou um anúncio com o mote para o mesmo desafio. É talvez por isso que os brasileiros são mais felizes que nós. Riem de si, da vida, dos problemas, das contrariedades e, no final, acreditam que tudo vai dar certo. Levei essa vacina durante uns tempos. Não asseguro que ela funcione a 100%, mas algo há-de ter restado dessa pseudo-imunidade. Levei a picada, do doping do humor. Espero que à entrada em território português, as autoridades de controlo não me tenham tornado impermeável ao bom humor...
quinta-feira, fevereiro 03, 2011
O banho
Há-de alguém já ter escrito sobre isto. Não ouso ser virgem em assuntos tão mundanos como o banho e, sobretudo, porque já tenho algum tenro amadurecimento que me diga que nada se inventa, mas tudo se recria, ou se reinventa de uma outra forma, a partir de um princípio que pode ser semelhante para todos nós. Voltemos: o banho! Puro deleite. Há qualquer coisa de pueril nele, que me faz resgatar a infância. O Feno de Portugal, é infalível, segue-se o sabonete de Alfazema, purinho, na mnemónica sensorial...
Já vos falei como gosto de banho? Adoro! Sou camaleónica, como se todos os dias precisasse mudar a pele.
O matutino cai sempre bem (se não for gelado, como a minha mais recente experiência em educação inglesa) limpa as impurezas do dia anterior, regenera, liberta os poros das imundices e isso, e por aí vai, até ao ralo. Eventualmente, o banho da manhã limpa os fluídos da noite (bem) passada (bem mundana!), mas está prejudicado por uma inevitabilidade quotidiana. A pressa dele tem mais que ver com uma obrigação diária, porque temos que sair, ir à escola, trabalhar, ir-ir-ir e será sempre um ver-se-te-avias. Falta o desfrute q.b. Não há desfrute q.b. se não fizermos a coisa com calma.
Há, ainda, o banho depois daquela corrida, o banho do amor, o banho de verão (quem nunca tomou uma mangueirada com calor, que se vergue perante a torneira de água fria para o castigo) o banho de imersão, que é o mesmo que pôr o corpo em banho-maria (com muita espuma, se faz favor, e algumas velas à volta, apaguem-se as luzes); o banho checo; e o banho de bacia, caso tenha falhado o gás, mas que haja chaleira que aqueça mais de um litro e dê para as partes que devem, obrigatoriamente, ser limpas, nas directrizes obrigatórias do cumprimento dos mínimos olímpicos da higiene diária. Na casa antiga, no terceiro andar, até o meu pai instalar um segundo depósito, a água falhava com frequência e a bacia foi, por isso, a nossa higiene de cada dia.
Há, inclusive, sei-o, livros dedicados à história do banho, à história da tradição do banho dos povos, o banho turco, a sauna (dizem que é outra forma de banho), o banho húngaro, e quem não conhece a mui nobre e afamada tradição termal não é digno, sequer, de um esguicho de água.
E há o banho da noite. Chegamos ao ponto G, portanto. O banho da noite é o melhor, sobretudo o destes dias de invernia. O vapor da água na casa-de-banho, o corpo à temperatura ambiente, frio, a ansiar por um mercúrio mais infernal, o óleo pronto para a saída dele na prateleira, as gotas em cachoeira, borbulhantes, vaidosas dos centígrados ideais para aconchegar o corpo (quais furnas açorianas)....
Depois, um leve escorrer que vai amaciando a derme, em êxtase, um aleluia jubiloso, como se as gotas, por si, fossem deuses redentores, salvadores da geografia corporal. E eu ali, naquele instante, a liquefazer-me, em versão diáfana.
O cabelo, o primogénito na recepção da bênção vai agradecendo o milagre; haverá, certamente, pequenos Saravás a Iemanjá, enquanto as mãos já começaram a dança escorregadia pelo corpo, em busca do aroma ideal, condicente com o momento. (Sim, eu sei, ter mais de três cremes e dois sabonetes para variar é um exagero de esmero feminino, mas dizem os entendidos que não há salvação para mim).
O banho da noite, por isso, é o meu banho favorito, duração q.b., prazer, doce comprazimento que me enternece e me vinga das agruras da vida, dos problemas. Ele pode inclusive aliviar dor, auxiliar na fisioterapia das nossas preocupações, espantar o frio. Sem esoterismos, se me perguntarem o que tomo, já sei: banho nocturno, quentinho.
Subscrever:
Mensagens (Atom)