- Alô? Boa tarde, estou a ligar de São Paulo, faz reserva de quartos? Vi aqui na internet várias referências de estrangeiros à sua pousada e estou interessada em reservar um.
Uma voz esganiçada, de um tom velho-jovial anui, reserva e dá dicas logo à primeira depois de saber que a inquilina apenas ficará por 3 noites.
- Quando chegar vá directa do aeroporto para as cataratas Foz de Iguaçu. Fica a 10 minutos do aeroporto e assim você já poupa tempo. Se você chega às duas da tarde tem até às seis para visitar e é mais do que suficiente.
- Sim, claro. Estava a pensar fazer isso.
- Você vai perceber: Foz de iguaçu é uma cidade muito pequena, mas tem os seus encantos. Você vai gostar e qualquer dúvida estarei aqui para ajudar você.
Um dia depois. Duas horas de voo São Paulo-Foz de Iguaçu. Terra de tríplice fronteira: Brasil-Argentina-Paraguai. Chegamos ao reduto da muamba, do tráfico de mulheres, de droga, de armas, de produtos electrónicos, da falsificação. Um paraíso fiscal quando se atravessa a Ponte da Amizade para o Paraguai. Facções criminosas brasileiras têm aqui base, e um relatório da Defesa norte-americana garante que há um célula islâmica terrorista ali a trabalhar à disposição de todos. Há que revide. Que diga que é mito, fundamentando as supostas provas. Um paraíso para a imprensa estrangeira: com tantas histórias, dá para escrever vários livros, sem o risco de as repetir.
Depois, há ali, no Rio Iguaçu, 300 portos clandestinos, buracos na rede da ponte para atirar mercadorias lacradas ao rio, para que a alfândega não as retenha. Milhares de pessoas a atravessar, por dia, aquela fronteira. Rostos cansados. Rostos que já passam despercebidos. Vidas pela metade.
A rodoviária é feita de simples plataformas de autocarros velhos. Placas: Puerto Iguazu. Ciudad del Este. As ruas silenciosas e quase desertas. Mulheres de véus pretos páram em frente a uma escola. Falam em árabe. Recolhem as crianças. Sorriem. A pousada da Laura é uma casa simples-vivenda. Por trás da casa dela a rua acaba e há rio. Antes, um descampado.
O cabelo dela é louro-seco. Algumas brancas de raiz a denunciar tinta. Os olhos expressivos de algum desgaste, sofrimento. Mas um sorriso por ter companhia. Voltou a abrir o negócio há dois meses. Já não pôs mais anúncios na internet. Não precisa de divulgação. Ganhou o marketing boca-a-boca. Há simpatia. A casa já esteve cheia. É recomendada por vários cantos do mundo. Vem no Routard. Mas há qualquer coisa que me arrepia nela. Há qualquer coisa que me deixa com o pé atrás. Não teria nunca, nos próximos dias, quaisquer razões de queixa. Mas há qualquer coisa dissonante. Que me avisa e põe em estado de alerta. E alguma pele de galinha. Cheguei a pensar que ela não existia. Que era fruto da minha imaginação. E se fosse um fantasma? Talvez uma bruxa boa. A mente pode ter divagações labirínticas quando estamos sozinhos, exilados nem que por uns dias, para tratar de um visto, como se houvesse algo de ilegal na nossa condição. E a condição dela era de uma certa solidão. E a solidão pode ser alarme de luz mortiça na tentativa de cativar o outro.
Fez questão de me mostrar os despojos do dia. Como se tivesse ido à guerra e sobrado pechinchas. No Paraguai, tudo tem preço de saldo. Na mão dela: um estojo de batons de cor: roxo, preto, verde, vermelho, laranja. Uma cabeleira.
- "Veja, como me fica bem e parece natural, oh. Não é um espectáculo? E agora com estes óculos que lá comprei. Posso substituir as lentes para umas da minha graduação. E as roupas? Uma fineza. Sabe quanto custou? Sabe. Vá, tem de comer esta empada de frango. Não é deliciosa? E estes vernizes. Estes lenços. Mais estas coisas".
A overdose estava só a começar e eu precisava de descanso. A Laura precisava de conversar. Aliás foi por isso que disponibilizou a casa para ser pousada. Foi por isso que instalou, mais quatro quartos extra. Foi por isso que foi continuando a conhecer o mundo, sem sair do sítio, com tantos estrangeiros de passagem. O marido morreu. Foi médico. Ela viajou pelo mundo. Conheceu-o de lés a lés. Agora é uma senhora simpática, nos seus 70, que recebe visitas para jogar cartas, visitas para conversar. É uma espécie de entretenimento local. E quase me implora que a entretenha. Não consigo. Não tenho tempo. E, para ser sincera, não me apetece. A paciência nestes casos não é o meu forte, sobretudo quando me soa algo de errado na falta de brilho de alguém. No limite entre o amistoso e o implorar de uma atenção. Há aquele sorriso de tom velho-jovial. Um desespero de atenção. De angústias. De vida por cumprir como se isso estivesse directamente ligado com o que a cidade, em si, encerra: uma urbanidade inacabada, na qual os seus habitantes, imploram desesperadamente por serem entretidos. E isso, ali, parece, resume-se às peregrinações, em velhos autocarros, para cruzar a fronteira até ao Paraguai. Ali, o Brasil é made in Paraguai. Ali, o Brasil, parece - eu sei que é forte a imagem- parece ter um vazio genuíno, preenchido com ilusões contrafeitas, como se a luz mortiça da esperança de que algo se cumpra (não se sabe muito bem o quê) estivesse a ameaçar, frequentemente, apagar-se.
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