O Diabo não existe, é tudo fruto da nossa imaginação. É uma artimanha da cuca, embora muito boa gente diga que ele por aí vagueia, com ar empertigado, silencioso, e xereteiro pelas ruas, tal qual um cobrador de fraque, disfarçado; fantasma a tentar moços e moças de boa estirpe, criados no mais fino e douto berço familiar. Já ouvi dizer que ele veste Prada. Que dá uma de padeiro, amassando pão. Discreteia nos mais requintados lugares para recrutar tripulação para a sua barca, encarcerar almas em contratos eternos, tentar pactos com os mais argutos dos argumentos. A retórica é uma coisa diabólica! Oh, diabo!
Sei que não devia duvidar, assim, como herege, da aguçada e vivida sabedoria do popular. Ai, o diabo! Mas imaginar a maldade e a ardileza numa síntese de um espírito das trevas é, desde já, assumir a existência de um ser que se fosse matéria-aqui-e-agora haveria de querer aparecer em todas as capas de revista contemporâneas. Não nego que ele respire o mesmo ar que eu! Apenas desconfio! E, se não for um? Forem muitos? Uma raça travessa do Capeta! Já sei: uma tribo dos diabos!
Acto de contrição: Não assumo, no entanto, que ele, realmente, exista, pois seria cair já na rede ardilosa dos charlatões diabólicos. Está, pois, Lúcifer, na nossa cabeça: o pensamento pode ser essa espécie de cozinhado em lume brando, ao qual, às vezes, juntamos os ingredientes errados e, claro está, resultará, sempre, num intragável prato. Quanto mais lhe aumentarmos a temperatura, mais aceleramos o esturricado certo.
Porém, a criatura infernal serviu já de inspiração para muitas sínteses sobre a vida e a relação com os outros. Um paradigma de advertência sobre a efemeridade das coisas e de que, estando mal alguma coisa, poderá sempre piorar.
O diabo está, sim, na nossa na cabeça. No fértil imaginação para explicar a tentação (quem, diabo, o terá inventado?), a soberba, a tirania, e o riso agudo da malícia e do azar como se fosse pai pródigo no pecador ofício para povoar a geografia da vida, daquela em que andamos sempre a evitar angariar lenha para nos queimarmos. Está no imaginário, pois, de uma expiação interna. Não vamos por ali, para que o carrasco não nos apanhe. Não percas a cabeça!
Mas essa suposta antiteodiceia alimentou, já, grandiosas obras literárias como "O Mandarim" e "O Senhor Diabo" de Eça de Queirós; "Fausto" de Goethe; "A Igreja do Diabo" de Machado de Assis, "O Exorcista" de William Peter Blatty, "Auto da Barca do Inferno" de Gil Vicente, "A Hora do Diabo" de Fernando Pessoa, '"O Evangelho Segundo Jesus Cristo" de José Saramago, '"A Divina Comédia" de Dante, as "Litanias de Satanás" de Charles Baudelaire, "O Arquiinimigo de Belfegor" de Maquiavel, "O recibo do Diabo" de Walter Scott, "O diabo no Campanário" de Edgar Allan Poe... Bem como entronizações infantis às artes de Mefistófeles com os irmãos Grimm, Christian Andersen e, claro, a saga Harry Potter, de forma mais velada e dispersa em vários personagens... Outra tribo do diabo!
Somos por isso, mesmo que não queiramos, ou sequer tenhamos a mais ténue pista consciente, instruídos na cultura do diabo. Satânicos silenciosos. Além de estar, por isso, na nossa cabeça, posso atestar que o diabo, pois, evidentemente, está nos outros. O diabo está sempre nos outros.
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