Há uma estranheza tão entranhada neste espanto que me parece que deva, de alguma forma, figurar nalgum livro de mitologia onomástica. E esta história tem até cronologia verificável, documentos e outras nuances subtis que podem ser usadas como provas. Poderia, inclusive, com tudo isto, ensaiar uma genealogia credível que fizesse dela o sublime estético de uma questão existencialista: Eu sou?
Poderia, se não desse um certo medo, misturado com um q.b. de divertimento e constatação de que os nomes são um mimetismo, também, do acaso.
No Brasil chama-se xará (os índios é que sabiam), e neste caso, então, é um duplo xará.
A primeira vez que isto me aconteceu foi há sete anos. Outrora habitante frequente de biblioteca pública agarrei um livro de Filosofia, onde ainda constava o nome do último requisitante: Vanessa Rodrigues. Isto poderia ser meta-literatura, se não fosse realidade. Apanhei um susto, claro, mas recordo que ainda levei uns segundos para perceber o que se passava.
A assinatura não era a mesma, mas o nome próprio e o final sim. Guardei a cópia do talão no bolso e ainda o detive umas quantas vezes na palma da minha mão, mirando, como se meditasse numa qualquer teoria que pudesse revolucionar o mundo.
O senhor da requisição não deu pela coincidência: ainda esperei que reparasse. Guardei o livro e procurei no bolso aquele papel com o nome que era o meu e não me pertencia. Ainda devo ter esse papel algures, no labirinto bibliófilo em que forro as paredes do meu quarto. Deixei-me a librar naquilo por uns tempos, até, anos depois, ter recebido um e-mail de um conhecido investigador e político de Sociologia do Porto (pelos vistos amigo em comum), convocando-me para uma reunião de departamento, sem falta, no dia seguinte, para discutir as linhas mestras de um projecto qualquer.
De imediato, a luz fez-se no filamento cerebral como se fosse a primeira vez, desde aquele episódio, que aquela coincidência sucedia. Aquela Vanessa Rodrigues era investigadora de Sociologia da Faculdade de Letras e, em dada altura, precisara daquele livro de Filosofia numa qualquer diatribe interdisciplinar, presumo, ou poderia ser como eu: uma curiosa que ainda pode ser salva pela Filosofia. E, por acaso, nesse dia, o tal professor, enganara-se no correio electrónico para a Vanessa.
Claro o nome era o mesmo, a terminação de e-mail parecida (o meu mete um "ene"), mas a mala tinha sido enviada para o porto errado. Adverti-o, evidentemente, e o equívoco desfez-se.
Acontece que, agora, apercebo-me de que sei mais dela do que ela saberá de mim (sim, uma especulação porque nunca falámos, mas talvez devêssemos). Pois quis o destino que uma página de fotografia com o nome dela aterrasse num e-mail de um amigo, o ano passado, que me perguntou se a página era minha, apesar de indicar que a garota em Matosinhos city morava.
Pois, como não? Mas não, realmente eu não era. E dizer eu não era, reparem, é diferente de dizer que eu não sou.
A semana passada, numa conferência de imprensa, cruzei o olhar com um rapaz que conheço de um workshop de teatro e, no final, cumprimentamo-nos, naquele tempo, ainda sem saber de onde nos conhecíamos. Até que me apresentei: primeiro e último nome. E ele afirmou um convicto claro e acrescentou: de Sociologia.
- Não, Vanessa Rodrigues sou eu.
Bem lhe vi a cara desconcertada. A realidade indefinida. Uma evidente turvez lógica e os olhos a denunciarem um "não-estou-a-entender-nada-mas-tu-não-és-a-vanessa-rodrigues". Pois sim, era, mas não sou a que ele queria que eu fosse.
Em rigor, tudo isto pode ser um exercício filosófico, porque a coisa começa com um livro de Filosofia que toda a confusão pode ter lançado (quem sabe não terei aberto uma caixa de pandora), não fosse esta a realidade-real com que agarro o etéreo temporal. É-o. Vejam bem.
E tudo poderia ter ficado por aí, não fosse dar-se o caso disto acontecer num Facebook perto de mim: uma janela do lado direito, uma fotografia e o meu nome escrito: Adicionar Vanessa Rodrigues como amiga. O mais curioso é que há seis meses, recebi uma mensagem de uma rede social de uns amigos em comum de uma outra VR que me dizia que tinha apanhado um susto, quando viu alguém com o mesmo nome a comentar uma frase de uma amiga em comum. Toda esta trama me relembra o Homem Duplicado de Saramago. Quem sabe um dia também trocaremos de vidas: porque somos íntimas do nome, embora não o sejamos.