Tem fogo e ardência de terra. Tem ventre e terra humana no esvaziar de um filho; útero fértil e de águas estragadas. Hão-de jorrar! Tem cheiro a pele e a cadência do lirismo, o estilo da poética, porque é verso transformado em prosa.
Vide do que falo:
"Nico ficou um rapaz loiro e sólido, recebeu permissão para as festas noturnas. O desejo pinicava a roupa íntima, penteava o cabelo devagar em dia de festa. Com a pele lisa, vermelha nos pomos do rosto, Nico estava uma macieira. "
Terminei, esta semana, o livro "Os Malaquias" (2010, Língua Geral) de Andrea del Fuego, que o Prémio Saramago distinguiu este ano, num golpe de justiça reveladora da fibra prosaica desta autora.
A entrevista de 45 minutos que lhe fiz, há um mês, com direito a câmara de programa de internet, por onde víamos uma Andrea de generosas formas maternas (está grávida de seis meses) e de golpe gargalhal em cada frase, não fez jus ao espaço ali paginado em míseras linhas castradas de entrevista que a Notícias Magazine lhe dedicou.
Hei-de aqui jorrar, à falta de outro veículo lucrativo (que agora nós, jornalistas freelancers, por amor, ou sei lá o que é, e um certo romantismo à camisola, porque apercebo-me ainda apaixonada masoquista por aquilo que faço, embora em crise crónica sobre o abandono - somos vendedores vampíricos de mercadorias) para publicar as belíssimas palavras e reflexões que saíram desta conversa com esta paulistana, agora a estudar Filosofia, ensaiando prosa.
"Os Malaquias", em certa medida, remete-me para a própria infância, passada quinzenalmente em Braga, onde os meus bisavós moravam, entre milharal, cabras, vacas e galinhas e algum vindima, couves e margaridas, olivais e o frio rigoroso do Minho, fumando carnes, e aquecendo o corpo dos netos, filhos e bisnetos, numa fogueira da cozinha, com sopas de cavalo cansado, pão caseiro com chouriço e verde tinto.
Nesta literatura, uma saga de família, encontros e desencontros, ao acaso da morte dos pais de Júlia, Nico e António, que é anão, por um relâmpago, recordo-me da morte misteriosa dos meus bisavós que se foram no mesmo dia, sem saberem da morte de um e outro, com diferença de 12 horas.
Há em "Os Malaquias" uma força emocional que me move, que me empurra para a terra. Não fosse esta natural identificação, seria pelas vívidas descrições, pela densidade genuína e tão simples do linguajar interior mineiro, tão português, que a Andrea verte no livro, que sairá apenas entre nós no próximo ano.
Mas esta é apenas uma primeira nota. Hei-de voltar a ela, porque hoje, sem querer, deparei-me a folhear até a página 100 de novo o livro, como quisesse sentir, novamente, a textura, a viscosidade das palavras tão bem esgalhadas, envoltas em terra literária...
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