O último romance de Camilo Castelo Branco chama-se "Vulcões de Lama" e anda a ser manuseado por esta vossa escrava, num puro deleite que há-de denominar o acto de leitura, em sua essência luxuriante, de um oitavo pecado mortal. Isto porque cada um de nós, um dia, há-de ter pensado que não terá nem um terço do tempo para ler tudo aquilo quanto gostaria antes do ponto final das nossas vidas.
Quis o douto escritor de "Amor de Perdição", nessa obra supracitada, explicar ao seu editor Eduardo da Costa Santos, na época, da Livraria Civilização, em idos finais do século que sagrou o romantismo - embora Camilo entrasse nos meandros realistas, também -, a razão do título. E nada melhor do que a transcrição para encher as mentes interessadas do brio da melhor prosa que um homem pode ter para sacudir a modorra e enrijecer a Língua. Eis Camilo em jeito de prefácio.
"Razão do Título
Ordinariamente quando, em etsilo metafórico, usamos comparar as férvidas paixões de alguns homens aos vulcões, a comparação vau buscar o símile às crateras do Etna, do Hecla e do Vesúvio. Presume-se pois que os antros do coração humano resfolgam fogo de paixões assoladoras como os intestinos do nosso globo jorram arroios de lava candente que subvertem, devastam, devoram, pulverizam ou petrificam toda a natureza viva e morta que abrangem nos seus braços de lavaredas.
Todavia, há aí na casca do planeta paixões cujo símile não o dá o Vesúvio, o Hecla nem o Etna. É de Java que ele vem - de Java onde estuam convulsionados uns vulcões de lama que expluem o seu lodo sobre as coisas e as pessoas, primeiro emporcalhando-as, depois asfixiando-as na sua esterqueira espapaçada.
Neste romance estão em actividade permanente, sempre acesas, as crateras das paixões da aldeia, também vulcânicas, exterminadoras; mas sujas de porcaria nauseabunda - "vulcões de lama", enfim.
Tal é a razão do título"
in "Vulcões de Lama", "Obras Escolhidas de Camilo Castelo Branco, vigésimo quarto volume, Selecção e Notas de Alexandre Cabral, Cículo de Leitores, 1983
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