Os cursos de jornalismo não servem para nada, sobretudo na hora de edição. A mancha turva sobre o que é ou não notícia passou de regra escrita, intrinsecamente estrutural, a regra tácita, comercial: se não vende não é notícia, se não é bonito não é negócio. Atestado de "basura" escreveriam nuestros hermanos, "for a certain journalism", para de um fôlego sabermos que isso será, à primeira, tudo menos notícia.
Pelo menos tem-me acontecido, regularmente, deparar-me com doutos editores especializados nessa especialidade médica. Acrescento: Medicina para charlatões, de faca e de alguidar, bisturis limpos a pano sujo, para iludir um certo brilho do ferro. Direi: alguns editores que certamente se aprimoraram em cirurgia plástica, e que estando deste lado, eram acérrimos defensores de valores bem opostos àqueles que interiorizaram em nome da sobrevivência e de um glamour que a mim me causa regurgitações e um peso nos nervos.
Têm eles até verborreia e vocabulário com o papel a que se prestam: o de coadores de uma realidade fantasiada, maquilhada de pozinhos e essas coisas que o Photoshop social muito bem cumpre, como se a carne não tivesse poros por onde respira a vida.
Recentemente fui acusada de ser demasiado neorrealista, o que significa que, nas entrelinhas, deveria deixar-me dessas coisas e exercitar o lifestyle.
Depois, que quero, sempre, dar voz aos que não têm voz (na ditadura da estética comercial do Jornalismo). E, ainda mais fresco, um editor, no seu mais primoroso exercício da cirurgia plástica, desabafou:
- Olha, aquela reportagem que mandaste é gira, está muito boa, mas a senhora é muito feia.
- Não estás a falar a sério? Vais comprometer uma reportagem por essa razão?
- Eu sei, eu sei. As pessoas feias também têm direito...
- O quê?
- É que há um outro trabalho parecido aqui em Lisboa e a rapariga é muito mais gira...
- Eu vou fingir que tu não me disseste isso e que estás sob o efeito de stress de fecho porque esse argumento é tudo menos jornalismo, a não ser que me tenha enganado no telefone e tenha ligado para o editor de uma revista cor-de-rosa e não de uma newsmagazine...
- Tens razão, tens razão, mas talvez se puser a foto dela mais pequena e aumentar as ilustrações...
Nesta altura já eu estava com um esgar inquieto e os nervos aflorados. Comentei o caso com o meu amigo R. que me contou uma história semelhante: há uns anos, foi incumbido de fazer umas fotos de crianças, Pai Natal, e os pais. No final, os editores disseram que as pessoas que ele tinha escolhido tinham todas um ar de indigentes e, por isso, foram à Getty Images e escolheram uma criancinha loira, modelito, para a capa.
Não estou a propalar um atestado de incredulidade. Isto acontece diariamente em todas as redacções, na cabeça de todos os editores, com os cifrões a fustigar a lógica, só estou a reforçar que isto está tudo errado e que é grave que nos cargos de chefia esteja gente que pensa assim. E que crise meus caros, isso sim, é de incompetência. E são estes que têm muita culpa que a imprensa esteja com a corda ao pescoço, não só por esta retracção económica, mas porque o jornalismo de qualidade não se verga, e tudo aquilo que andamos para aqui a vender não tem qualidade alguma porque quando consumimos e vendemos produtos fracos, sabemos, a durabilidade tem os dias, a muito curto prazo, contados. E com cirurgiões plásticos a pensar assim, há que convir: os operários deslocalizados e amordaçados somos nós, ovelhas negras de um sistema tão normal, quanto a aliança do Cristiano Ronaldo abrir telejornais. O risco é de contágio.
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