segunda-feira, novembro 14, 2011

Inocentes, linchadores, Fúria, Lang e Miguéis


A fórmula das coincidências é como o buraco negro do cérebro: as equações físico-químicas ideais que produzem a consciência é altar sacrossanto, insondável, das Neurociências, ainda. Deixei, portanto, de tentar explicar o que leva a que episódios tão improváveis - como aquele que vem de seguida - sucedam a dois tempos: no sideral e no técnico (porque a cosmologia racional serve pelo menos para situarmos os episódios).
Sábado dia inteiro a vasculhar relíquias no Candelabro, alfarrabista em Cedofeita,  casa com seis décadas, ainda que com novo endereço há dois anos, para pinçar qual criança num parque infantil, entre outras coisas, dois exemplares da prosa de José Rodrigues Miguéis. Dois foi aquilo que o bolso permitiu e ainda com desconto generoso do dono Luis Moutinho. JRM é autor raro nas livrarias e só com muito périplo se consegue encontrar toda a sua obra. Todavia, o Candelabro descansa a sola e recompensa os audazes da busca.

Ainda comecei a folhear "Uma Aventura Inquietante" (Editorial Estampa, 1982) nessa mesma tarde, curiosamente, no Candelabro-café/bar, a uns generosos metros de Cedofeita, onde outrora estava originalmente a casa-sebo. A luz que entrava pela janela desmaiava em tarde de Outono, enquanto a que restava era tamisada pelo vidro fosco. O suficiente para me alhear do redor e fazer do livro a cadência do pensamento ocupado. 


Página-a-página, como quem desjejua de uma noite de sono na primeira refeição da manhã, começou a ganhar-me no pulso. Já agarrada à história da burguesa assassinada e que atira um homem inocente para o cárcere. Zacarias de Almeida, um português na Bélgica. Um homem que no estrito cumprimento do bem escorregou numa série de coincidências, relatos alheios, magnetizando a polícia àquele quarto honesto e simples, onde ele de pijama já se preparava para o descanso merecido. Ainda teria tarefa hercúlea pela frente, involuntariamente, e sem saber por que razão.


Do quarto ao cárcere, com alguma pancada, saldando hematomas, lábios macerados e expectoração sanguinolenta, foi um ápice. A autoridade foi desmoralizando a palavra de um homem, baseado na sucessão de relatos dos outros. É aí, nessa clausura que mede o desespero de um homem, que JRM nos revela quem é Zacarias, entra-lhe no pensamento, para que ele conte a sua (des)graça, enquanto ele brinca às prisões, tentando encontrar uma brecha para onde possa escapar, ao menos, a agonia. 


Ele, tão espartano no dia-a-dia, esperneia, abana as grades, enquanto ouve o silêncio sepulcral da cela, ferrolhos e o eco metálico das fechaduras. O que vai acontecer de seguida, ainda está no tempo técnico de que preciso para o saber. Mas hoje pela manhã, ainda no autocarro, pude deter-me nesta frase na página 103: "Porque, em suma, a experiência mostra que é mais fácil perder-se um homem por um acto de pública honradez do que por uma patifaria bem disfarçada". 


Não sei se Zacarias, nas páginas seguintes, vai clamar por justiça e vingança como o personagem de "Fury" do realizador austríaco, Fritz Lang (1936), o primeiro filme realizado nos EUA, onde dividia o tempo. Por coincidência - agora sim - terminei a noite, antes de dormir, neste preto e branco de 1h37m, com imagens e planos expressionistas incríveis, onde a luz recorta, de cima para baixo, a densidade dos rostos, e o cross-and-dissolve cumpre uma função quase silenciosa para nos dizer: que o tempo da nossa desgraça pode ser simultâneo e numa voracidade, enquanto o resgate da inocência de um homem, anos de desgate, se a ventura, com um rasgo de sorte, assim o permitir.


Em "Fury" um homem viaja ao encontro da amada, que não vê há um ano, mas é parado por um xerife. Recentemente houvera um rapto de crianças. Um vício antigo torna-o o principal suspeito: amendoins no bolso do casaco. Um boletim de ocorrência dá conta do caso e os polícias não têm dúvidas e atiram-no para o cárcere. JRM poderia ter sido o argumentista de Fritz Lang neste Fury (assinado por Norma Krasna), porque a psicologia do personagem vem nessa consciência de castramento da liberdade. Vemos, então, Joe Wilson (Spencer Tracy) a tentar sacudir as grades, clamando inocência. Lá fora, a população faminta de vingança brama, retumbante, por um linchamento. Acabam por atear fogo à prisão, e Joe Wilson morre, pensamos porque a isso somos induzidos. Mas ele aparece em casa dos irmãos, de expressão dura, azeda, de um homem inflexível na reinvindicação de vingança, para condenar aqueles que o "mataram". 


Lang joga com a inocência, os jogos de justiça, a sede popular e a insanidade colectiva, regulada pelo mais primário dos instintos que pode ser a necessidade fisiológica por fazer justiça com as próprias mãos. E sabiamente enreda-nos numa ansiedade de gritar que aquele homem é inocente, tal como o Zacarias de JRM. É que o leitor e o espectador, na maioria das vezes, sabem sempre muito mais do que os personagens de uma obra. Somos instruídos a saber mais um pouco, como estando fora de tudo, isentos, mas um pouco mais amordaçados. Quis o acaso que tropeçasse, sem querer, nestas duas obras de crime e castigo (Dostoievski aparece, inclusive, citado no livro), adensados pela inocência dos homens. Tudo acabará por terminar bem, creio, na Aventura de JRM, tal como acabou em Fúria. Mas, sabemos, os filmes imitam a vida e não o contrário e apesar das coincidências que juntaram, na minha vida, estas duas obras, não creio que possam dar-me grande lição sobre o correr dos dias.  


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