quinta-feira, novembro 10, 2011

Bestiário privado, para quem tem tempo

1. Não receio o que os (bons ) livros me podem dar, inusitadamente; ou os caminhos para onde me podem levar, pois, como respostas a perguntas que não surgiriam, acaso não os tivesse folheado. De resto, procuramos, acredito, inspirações para continuarmos a trilhar um caminho que nos deixa, mais ou menos, em equilíbrio para que acreditemos que tudo isto vale realmente a pena. Muito. E criar já é valer a pena. Ontem o Pako dizia-me, algo, semelhante: que se todo o ser humano descobrisse a criação artística, entre outras coisas, não haveria televisão e andaríamos todas na rua a conversar e a trocar ideias. Achei a imagem bonita. 


2. Há umas semanas, em conversa com a Patrícia Lino, que começou a sacar da mochila e da saca plástica, na esplanada do café, clássicos gregos e um poeta um pouco desconhecido entre nós, Daniel Faria (arranjar a obra dele é tarefa quase impossível), os gregos e os Latinos vieram ao Porto. 
Ela, estudante de Clássicas, disse-me que até o ano passado era a única aluna da Faculdade de Letras desse ramo. E que, por isso, teve um estudo personalizado e rico. Certa vez, numa aula, mesmo no início da aventura exploratória de uma miúda com 18 anos, a mergulhar na densidade dos clássicos greco-latinos, um professor disse-lhe, conta-me: 


- "No final, vais ficar um pouco mais triste". 


Ela não percebeu, in illo tempore. Mas, agora, que está já no mestrado, e com os vigorosos e sábios 21 (a cultura literária dela é assustadoramente rica e consolidada) ela diz que entendeu. E eu também entendi, um bocadinho, acho. Não me arrependo em nada de ter estudado três anos de Latim, nessas Humanidades. Deu-me, isso sim, fibra para a Língua Portuguesa e uma cultura histórica e literária maravilhosa sobre esses clássicos greco-latinos. A magnânime e insigne professora Isabel Pereira era, ela própria, um Ateneu de sabedoria, e brilhozinho nos olhos. 


Tive, aliás, por causa das Letras e dispersão em artes e ofícios, algumas hesitações de rumo profissional, na hora da escolha, ainda que desde o sétimo andasse com o lead na cabeça: psicologia (imagine-se), Filosofia (ainda hoje há um bicho carpinteiro), esse tal de Jornalismo e Letras. Neste último cenário, todavia, não me imaginava nas gavetas da Linguística, nas excepções da Gramática, e na solidão e silêncios profundos das salas de biblioteca (tudo que é demais, molesta, né?). 
Na realidade (não que fosse mentira, mas oh!), não foi nada disso: achei que eram muitas gajas para a minha paciência, e muita teoria para a minha hiperactividade. 

Logo - e porque é isto no final do silogismo-, toda essa bagagem clássica valeu para entender que os autores gregos e os latinos já cogitavam sobre temas tão profundos como a existência, a coisa pública, a boa convivência, as frustaçõe sexuais, as relações humanas, o tempo, a alma, enfim... todo um cardápio sobre aquilo que nos atormenta e sobre a nossas ponderações intelectuais, quando as temos. Mas mesmo o pior da revista "Maria" são dúvidas existenciais, intrínsecas ao ser humano.

3. É para todo esse estímulo, e porque adoro escrever e enrijecer no punho que leio. E, depois, porque me sinto um pouco mais eu, mais livre, mais autónomo, indo a caminhos aonde não iria, caso não lesse isto ou aquilo. E dá-me ganas, tantas, de desatar a rebolar no ecrã do computador, mas tenho péssima relação com a solidão comigo, por horas a fio, para escrever. Sou voraz e faminta, estratega silenciosa no trabalho - para mais nada esse adjectivo -, mas um pouco sôfrega nos resultados. Não tenho a paciência dos sábios para o lento resultado. Sei bem que o processo é fibra, mas essa vontade de ver e apalpar as coisas, deixa-me sem fôlego e desmotivo.

4. Sobre as leituras, por vezes, faço até o exercício de agarrar um livro pela lombada e, à sorte, abrir a página. De lá podem vir personagens incríveis, fantásticos, a transpirar realismo mágico, monstros, bestas, toda uma imaginação surrealista que tange como cinzel uma marca que se imprime de imediato. Todo um labirinto. Um labirinto de miradas. 

Por isso, tive de fazer algum esforço para me concentrar no labirinto dos corredores de uma biblioteca, onde sei muito bem do que ando à procura, embora a tarefa, de mochila às costas e casaco na mão, hoje, possa ser um pouco mais morosa e meticulosa do que eu pensava. Pensei mesmo tirar um livro à sorte, já dentro da caixa-corredor que é a secção de Literatura espanhola desta biblioteca. 

5. Como um curso de espanhol fosse muito caro, resolvi empreender a tarefa de ler os melhores da Língua, no original, e assim aprender como deve de ser, considero, a aprendizagem de uma Língua que nos é familiar, mas cujas ferramentas ainda não dominamos por completo para fazer a cirurgia com exímio profissionalismo e rigoroso detalhe que só os mais expeditos e dedicados são capazes de fazer. 

Esclarecidos neste ponto, passo à página seguinte.

6. Foi Marías quem primeiro me chamou a atenção, mas logo desmaiei o olhar em Miguel Delibes (recordo-me do Clemente Barahona, em 2005, num Festival de Vinho do Douro, me falar deste autor premiado de Valladolid), veio El Lado de Sombra - apesar da luz imensa que saía das janelas - do argentino Adolfo Bioy Casares, e do qual só li a Invenção de Morel, e depois entusiasmei-me e saquei uns seis da estante do Julio Cortázar e um de Borges. E para Borges é preciso muitos grãos da areia da ampulheta, um librar para outras dimensões e a máquina disponível para a rede em que ele nos intrinca. 

7. Cá estou eu, folheando, folheando, enquanto não me vem a inspiração para o término de um texto. Cá estou e vem isto: esta coisa que nunca me sai da cabeça e que já aqui falei vezes intermináveis: o tempo. É justamente sobre assunto que discorre Borges nesta "Historia de la eternidad". 
Poderia destacar centenas de frases deste livro, que apesar de tudo, é possível ler de um fôlego único - eu avisei que não tinha paciência, há esta urgência sempre - mas foi esta que abre a prosa que me rasga para se deter: "El tempo es un problema para nosotros, un tembloroso y exigente problema, acaso em más vital de la metafísica; la eternidad, un juego o una fatigada esperanza. Leemos en el Timeo de Platon que el tiempo es una imagen móvil de la eternidad; y ello es apenas un acorde que a ninguno distral de la convicción de que la eternidad es una imagen hecha con sustancia de tiempo." 

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