Eles vão-se amontoando nas estantes como se fossem obras-primas literárias. Relíquias inauditas, representantes de um espólio de obras póstumas que alguém há-de encontrar para lhe dar uma nova roupagem de papel, dar-lhe páginas como deve de ser, outros cheiros, mais industriais, e pô-los por aí a circular no mundo.
Com sorte, ainda hão-de parar a uma estante decente, onde alguém generosamente, há-de guardar e retirar para ler e reler o que contêm assim pequenas páginas que de pequenos cadernos viraram literatura a sério. Penso tudo isto e outras coisas que sempre acontecem por milésimos de segundo no cérebro quando mexemos em memórias, enquanto folheava cadernos antigos, pequenos, onde, apercebo-me estão pedaços da minha vivência, da minha passagem por São Paulo, das minhas inquietações aqui, como lá. São listas, exposições, notas culturais, reflexões absurdas, poemas soltos, crónicas de cidade, reportagens-conto durante uma viagem de metro, desejos, contactos de e-mail, mais listas, ideias, reportagens, e mais resoluções para o ano que decorre.
Releio tudo isto e apercebo-me que os desenhos são quase sempre os mesmos, as ansiedades também, a ânsia de criar também, como se de uma espécie de padrão se tratasse: mudaste, mas não mudaste assim tanto.
Releio tudo isto e encontro uma carta de amor. Encontro poemas a dois, surrealistas, palavras de amor, trocas e promessas até ao fim, ternuras sobre tecidos mornos.
Releio tudo isto e não ganho coragem para me livrar dos cadernos que generosamente se vão amontoando nas estantes do quarto entre livros de Filosofia, a Terceira Vaga, Amor Líquido, Geopolitique du chaos, Hegemony or Survival, o Poder em Cena, os Talibãs, Globalização, Palestina e Israel, Pequena História Abreviada da Desinformação, as Palavras e as Coisas...e por aí vai (sim os cadernos estão amigados com a estante de Teorias da comunicação)...
Penso em tudo isto e ocorre-me que estes pedacinhos de vida em papel são prova de que vivi tanto, com muitos cadernos ainda por vir. É essa, talvez, a importância de ser caderno...
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