quinta-feira, março 31, 2011

"Estou a descobrir para onde vamos"

A frase não é minha. Roubei-a de uma aula de Literatura sobre exílio, mas achei conveniente que, à procura do slide certo, A.P. a tivesse dito sem pensar na carga simbólica do contexto. 

Pareceu-me muito conveniente que a tivesse disparado, gracejando, enquanto discutíamos autores à procura de si, desenraizados, arrancados da pátria por razões extremas, vivenciados na dureza degenerativa dos campos de concentração; regressados e sobreviventes mudos, silenciosos e, cronicamente, incomunicáveis pelo vazio da experiência exilada, quando a condição humana, parece, dizem "os especialistas" (o famoso cliché actual da imprensa que nada significa, pois ninguém vai averiguar que universo amostral de entendidos é esse, quando podem ser apenas meia dúzia: a mesma meia dúzia de planos de corte errados, quando usados na manipulação cinematográfica, quem sabe) é toda ela um desterro. 

Desenraizamo-nos de nós, pelos outros, por nós próprios, ou estamos desconexamente desviados do lugar onde vivemos, dos valores que não partilhamos, da rejeição que, às vezes, nos é auto-imposta. 

"Estou a descobrir para onde vamos" é lírico numa aula sobre exílio, cria desconforto, porque demasiado invasivo, como se me levasse ali também carregada, sem que eu o tivesse pedido, sem que eu me desse conta que, da mesma forma, eu ia ali embarcada, sem náuseas do mar atribulado, procurando uma ilha comum onde pudéssemos descansar do balanço para discernir a resposta. Encontrar coordenadas comuns para problemas diversos. 

Ali, nós, igualmente, íamos meio náufragos, como um Caim peregrino do Saramago, constantemente exilado, como se o sufoco do enraizamento fosse, porém, um limite para ele ser, para ele cumprir uma missão quase fenomenológica para convir uma certa neurobiologia da consciência: Penso, sinto (sou, acrescento), logo existo. 

Por isso, Caim tem sempre de partir. E se, por um lado, nessa equação cartesiana a que António Damásio acrescentou o afecto "sinto", o "sou" dá-se, conjecturo, quando vivemos segundo preceitos que nos fazem sentir liberdade nas veias. 

Ocorre-me isto e, a propósito de "estou a descobrir para onde vamos", o Saramago ensaia uma resposta em "A Memória do Elefante" - sendo o paquiderme também ele, uma espécie de exilado. "Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam." É para aí que vamos!

segunda-feira, março 28, 2011

peditório público...(e isto não tem nada a ver com o PEC)

Há sinais que começam de manhã e que devemos interpretar como um prelúdio para a sequência das horas até o que há-de ser o fim do dia. O peditório: um destes dias comecei as horas a ser pedida. Saltei do autocarro ainda meia ensonada para repor o stock das cigarrilhas, antes de entrar no metro. Pedi o costume e ele entrou a pedir-me. 

Uma moeda. Uns trocos. Pedia com jeito implorante e sotaque carregado de um peso eslavo, de quem ameaça evoluir para pedinte profissional se não rogar à sorte alguma clemência para a viragem dos dados da vida que para ali, para esta manhã, para esta cidade, o trouxe. O peditório há-de ser linguagem universal, como o medo, o frio, o amor e coisas tão terrenas como a fome.

Pediu-me na voz de quem roga a um deus em quem acreditasse, como se naquele instante eu fosse heroína para lhe salvar da aflição de quem anseia resolver, no instante decisivo, aquilo que lhe enchia de vazio o estômago.

Encolhi-me, porque a figura impressionou-se. Encolhi-me e baixo disse-lhe que não. Não sei se por ter interiorizado que responder "não tenho" é muito pior e mais hipócrita do que dizer a verdade com a voracidade frontal da negativa.

Fiz-lo e, como insistisse, arrastando ainda mais a voz clemente, cadenciada por um tom monocórdico e com a homogeneidade dos pedintes, a mulher a quem pedi as cigarilhas a troco de dinheiro bisou-lhe um não.

Vestia uma camisola azul-marinha de lã, puída, na gola. As mãos estavam secas e enrubescidas de um frio que o vento primaveril trouxe, sem que pedíssemos. Se o fizéssemos, por estes dias, pediríamos sol, sol com voz clemente e rogando a esse mesmo deus que fingíssemos acreditar, acreditando.

Ele saiu. Eu fiquei. Eu saí, hesitei entre um café à direita, um café à esquerda, como quem anda à procura de norte. De sul. 

Fui para norte. Vi Buondi em letras gordas. Entrei. Um café com cheiro a café encafuado em fumo de cigarro velho, pó e sujidade escura que haverá de estar entranhada nos poros das paredes. Isto e a linguagem universal para saber que os inquilinos daquelas mesas, ficariam colados ao programa da televisão até ser hora de comer o conduto, à hora de almoço.

Entrei e vi-o a pedir, de novo. Entre o norte e o sul, acabei, sem querer por escolhê-lo a ele, de novo. O mesmo pedinte. Agora familiar. Olhou-me tímido. Pediu um leite quente. A mulher do outro lado balcão, desta vez, disse-lhe que sim, mas que esperasse porque tinha de me servir primeiro. Eu disse que não. Escolhi o norte, outra vez, e disse que ele tinha pedido primeiro. Deu-lho. Mas antes ele veio sentar-se no balcão, no banco ao lado, onde eu mantinha a espinha hirta preparada para o café. 

Ajeitei-lhe a cadeira para ter mais espaço. Bebi o café e voltei a subir o norte, em direcção ao metro. Este foi o primeiro Acto.

2. Sol de meio-dia. Os inquilinos do café da manhã devem estar a movimentar-se para o conduto. Som de autocarro. Bip do leitor de andante. 602. Sento-me lá atrás e há um rosto, no primeiro banco do autocarro, à retaguarda do condutor que não tirou os olhos de mim. Seguiu-me e mantém-se fisgado na minha direcção. Até mim o olhar dele. Até mim, o olhar dos passageiros, indignados com o enigma do olhar dela até mim. De longe, já me pede alguma coisa e eu ainda não sei bem o quê. E não sei que tenha que lhe possa ser útil. 

Levanta-se. Pernas à mostra, esguias, pequenas, de menina. Cabelo apanhando, num puxo, e um malmequer de plástico perto da orelha. Um preto-casaco a acabar-lhe milímetros antes do vestido, ou da saia por baixo. E uma mala de serapilheira escura, numa orgia de castanho preto e cinza. Vem. Como se o olhar levantasse e seguisse o traço que até ali fazia certeiro ao final do autocarro. Vem e olha-me de esguelha levando-me a pensar que se sentará ao meu lado. Vem, insinuada a sentar-se. E já pede algo com o olhar. Senta-se atrás, na diagonal e chama-me.

- Não se assuste. Queria pedir-lhe uma coisa. Reparei que tem um andante. E eu ando a ver as pessoas que têm andantes. É que tenho um que não uso e queria ver se havia alguém que me pudesse comprar esse bilhete que não uso para comer. Para comprar, por exemplo, um pacote de bolachas.

Enquanto fala, a pequena, nuns lábios rosa-flor, carregados de batom esborratado, a sair-lhe pela linha dos contornos da boca, exala um hálito podre, demasiado podre para a tenra idade. E percebo-lhe uns dentes tão amarelos e encrustados que me dá pena, num limbo sem saber o que fazer. Talvez lhe devesse perguntar algo mais. Talvez lhe devesse ter respondido que sim e, se calhar, era a minha segunda crueldade do dia. Eu fiquei tão surpreendida que fiquei demasiado tempo em silêncio. Se calhar mais do que é aceitável na boa convivência com os outros, mas o meu instinto deu-me o impulso de agradecer e dizer que não queria.

- Obrigada, ainda respondeu. Exalando o último bafo, enquanto a voz se matinha no mesmo tom, como quem acaba de receber um sim.

E ficou em silêncio, a observar-me na diagonal, talvez a pedir-me para trocar com ela a pele, por instantes. E a única coisa que me ocorria era se deveria ou não dar-lhe dinheiro, simplesmente. Passou a primeira paragem. Demorei mais uma a pensar naquilo e no que poderia passar uma miúda assim tão bonita e tão estragada, nas mãos erradas, a jogar com o lado mau dos dados cruéis da vida. Nascida em má sorte e a jogar para mudar o tabuleiro da trama. 

Ela precipitou-se para a porta de saída. Hesitou. Foi para a porta de entrada. Sussurrou alguma coisa ao motorista e saiu. Saiu e pude ver-lhe um olhar tão absorto e focado num horizonte de nada que cheguei a ponderar se aquela miúda realmente teria existido ali e naquele momento e se, afinal, não teria sido eu a única a ver-lhe. Não posso estar certa de que não fosse apenas um espectro.

3. Saí do supermercado e a mulher precipitou-se do parque de estacionamento na minha direcção, enquanto me apressava para a paragem de autocarro. 16h.

- Senhora, Senhora.

Tinha a mesma clemência arrastada do homem da manhã. O mesmo puxo da mulher do meio-dia. E saias compridas, a tapar as pernas. Arrastou-se até mim a pedir. Queria comer. Sacos plásticos nos braços. Havia comida neles. Havia bolachas. Havia leite. Rogava. Eu era a deusa desconhecida, ali em carne e osso. Seguiu-me com voz clemente, desesperada, arrastada num português bebido de palavras. 

4. O homem da Casa da Música, sempre me pede ao fim do dia, aos dias do costume. Desta vez tinha uma gabardine escura e o cabelo mais escorrido, enquanto a chuva lhe lambia os fios. Pediu-me ajuda. Algo para comer. Por antiguidade, talvez, acabei por lhe pôr um euro na mão enfarruscada. Disse um obrigada senhora, como quem acaba de ganhar a lotaria. E eu segui cabisbaixa, ciente de que nada tinha feito. Dúbia se haverá alguma coisa para fazer.

Pensei no que poderiam ter em comum estes quatro pedintes além da obviedade da miséria e, por mais triste que seja a minha resposta, neste peditório público, têm em comum a coragem, para continuar a jogar os dados, à espera que um dia o tabuleiro mude.

Xaiane, a prometida

Saia preta. Lenço preto. Sol quente. Cabelos de um negro brilhante, seboso, compridos. Saco plástico amarfanhado suspenso pela mão, pesado. Um preto telemóvel colado ao ouvido e ficamos a saber como se cusca à maneira cigana, sem dó, nem pudor, à espera do próximo metro, enquanto a filha salta da linha amarela, para a linha de ferro e volta, em camisola rosa-choque, com carapuço. (Avisa-se que o seguinte monólogo é passível de tradução, mas desconheço se haverá dicionário de dialecto cigano).

- Ela vai falari com ele para dar cabaças! Quem a quis prometida foi o pai dela. Ela não queri. Nã queria não senhora. Mas espera, não desligues. Há muito p'ra contari. Ainda não sabes. Ah não que não sabes. E depois de almoçaris já vou saber mais coisas. É hoje que se sabe. Que vão falari. Atão ela não quer casari. O rapaz é filho do mê tio. Bom rapaz. Mas quem a quis prometida foi o pai dela. Já lhe dei cabaças. Para empatari nã vale a pena. 20 anos são muitos novos. Agora não é como antigamente. Não era quando houve dos nossos que tentaram fugir. Não era com faca de feira. Nã é não senhora. São muito novos.

...
Deixo de fingir estar atenta ao livro que leio. "O Mandarim" é um pequeno livro, que cabe nas minhas duas mãos, com páginas amareladas, secas e cheiro a estante envelhecida. Tem capa estranha, expressionista, e tem o diabo. O diabo há-de ser uma coisa escura. E o Mandarim não há-de ser primo de ciganos, mas amigou-se com o demo. Nem Eça de Queirós queria tamanha confusão à volta de uma obra. A magia da literatura há-se ser, para os escritores, uma metadiegese (palavra inventada na pressão da noite). Eu explico: o tempo em que se lê, estará sempre além do seu: no espaço, na cronologia. Não se saberá nunca em que circunstâncias foi lido, quem o leu e por que bolsos, estantes e bolsas viajaram. Por isso, Eça nunca saberá que a pequena de rosa-choque se interessou pelo seu mandarim:

- Que livro é esse e por que tem um homem tão feio na capa?
-Chama-se Mandarim, e o que vês é esse chinês feio que faz parte da história. É de um escritor português chamado Eça de Queirós.
-Mas é muito feio. Não devia haver livros com caras feias como essa. Esse senhor Queirós também apanha o metro?
- Não. Ele já morreu.
- Ainda bem, senão tinha de lhe dar cabaças.


E fugiu. Não fiquei saber o que era dar cabaças. Ouvi-lhe ao longe pronunciar um nome quando um casal de miúdos lhe perguntou:

- Charane, e já estou prometida... ao Mandarim.

O metro veio. O Mandarim foi para a bolsa e o Eça entrou, assim, no metropolitano. Com certeza terá dado umas cabeçadas no túmulo por causa dessa coisa da metadiegese. Disso e do metro, essa minhoca gigante do diabo.

sexta-feira, março 18, 2011

Diário do Aníbal, aka PR, inquilino de Belém

- 18 de março: o Passos Coelho anda a dar muito nas vistas, armado em betinho da Foz, com pitada de sabichão. Preciso diminuir-lhe a semanada e pô-lo de castigo. Mas que há-de ter posto o engenheiro a xanax, há-de, há-de. Mas essa coisa de falar já como "futuro primeiro ministro" pode levantar suspeitas sobre o meu plano para a bomba atómica e lá se vai a minha estratégia de enganar o povo por água abaixo.

- É a quinta vez que a Maria vai ao cabeleireiro esta semana. Gastou a miserável reforma de 800 euros logo nas primeiras duas semanas no salão e agora pede-me que lhe aumente o cheque especial. Ando irritado: não vá o povo perceber. Pedi-lhe um sacrifício nestes difíceis tempos, e ela disse-me que em vez de usar YSaint Laurent, passou a pôr o transparente-Givenchy.

- Vi "O Discurso do Rei" e tenho de arranjar urgentemente um terapeuta da fala, a ver se em vez de voz de cana rachada, consigo um tom de Sarkozy, impositivo. Nunca é tarde demais. Embora a Maria confesse que me acha um certo charme.

- Por falar em Sarkozy que andou metido em imbróglios com a família do Kadhafi  (e parece que o homem afirma que o francês tem problemas psíquicos) e suspeitas de campanha financiada (a Carlinha já tinha ligado à Maria a dizer que não queria devolver o vison e os diamantes) espero que o filho do Khadafi, que ainda considera Portugal um amigo, não se lembre de andar por aí a espalhar que o nosso país foi um dos que mais venderam armas à Líbia, senão lá vem mais uma crise política;

- Já que me lembrei de crise política, é uma boa ideia este fim-de-semana convidar o António Costa para um whisquezinho, há-de haver uns bons cubanos aqui em casa, e a Maria faz um rancho com todos, a ver se agudizo a dissidência interna dos socialistas. O que ele disse sobre o Teixeira dos Santos, nem a nossa oposição faria melhor.

quinta-feira, março 17, 2011

AVISO

Avisa que dispensa e-mails sensacionalistas, empolados, pesados de adjectivos feios, com presumíveis escândalos de contas públicas portuguesas (nada de novo, portanto), correios electrónicos em cadeia sobre salários milionários, tabelas sobre Censos em que apenas se pede uma certa vergonhosa verdade (a polémica pela polémica faz de nós mais pequeninos) e vai ali olhar para um Portugal mais solarengo, porque este nosso país tem, também, grandes cérebros, inovações, gente séria e que faz acontecer soluções. Perdemos demasiada energia com recalcamentos dos problemas. Metade dela injectada em ideias, há-de pôr a física quântica a dar alguma coisa que se aproveite. Não contem comigo para nublar o país. Contem comigo para fazer dele um lugar mais bem frequentado, a caminhar. Ao menos a caminhar e não sentado.

quarta-feira, março 16, 2011

impressões nipónicas

Eu choro, enterneço-me, arrepio-me, rezo à minha maneira, se é que isto é rezar, ou lá o que isso significa, comovo-me, revejo-me no lugar dos japoneses que perderam familiares, casa, um pouco de vida, vivem um sufocante agora e amanhã e, depois, sob uma ameaça nuclear, ali ao lado, a qualquer momento, depois da devastação do tsunami que praticamente tem engolido o norte do Japão. 

Passo por todo esse processo diário de catárse, de querer saber, pelo que leio nas notícias, pelo que vejo nas agências de fotografia internacionais, pelo que ouço na rádio, pelo que vou vendo na televisão e nos vídeos online. E parece, no entanto, que isto tudo não é suficiente, como se percebesse que nada pode reflectir a dor, o sofrimento, a angústia e o choro engasgado que aqueles seres quase impávidos e serenos que vemos nas notícias, escondem. Alguém ouviu o sofrimento? (Não o desejo, mas há um silêncio atípico. Alguém se apercebeu de grandes manifestações apocalíticas dos japoneses, a não ser ordeiras filas para gasolina, supermercado, por ora, e para tentar ir para algum lugar? 

Impressionou-me hoje, por exemplo, uma imagem em que um homem protegido da ponta do cabelo à ponta da unha dos pés, com um fato especial, anti-radioactividade, estava com uma ferramenta qualquer a medir níveis radioactivos (dez vezes acima da média tolerada, embora a Cruz Vermelha assegure que "não há problema"), numa menina ao colo da mãe (presumo), com uma máscara na boca (daqueles que nos habituamos a ver, em 2009, quando o vírus da gripe H1N1 andou por aí a viajar pelo mundo).

Impressionou-me o modo como essa pequena olhava para a lente do fotógrafo, apática, indiferente ao homem e à ferramenta, curiosa por entrar nessa lente, e com uma acerta anestesia pelo mundo ao redor. Podemos dizer que é medo, ansiedade, um jeito de defesa pelo pesado fardo que a natureza lhe deu. Podemos alegar tudo isso, mas o rosto dela é uma síntese do rosto dos japoneses. 

Como é que um povo, num apocalipse como este - sob o risco de desaparecer num estalo de dedos, sob a guilhotina radioactiva, de um novo sismo, de uma epidemia, de um caos, num estado de excepção - consegue pois manter uma certa e desconcertante calma? Fazer desse estado de excepção um pseudo-estado-zen. Não saberei dizer o que isto significa, haverá muitos que dirão que é uma extensão da cultura de progressão anterior, e também de uma certa subserviência e resignação da factualidade. 

Ontem, por exemplo, uma senhora num abrigo, no início de uma entrevista com uma jornalista estrangeira disse: "Claro que posso responder-lhe. Muito Prazer em conhecê-la". Ao redor, colchões alinhados num polivalente, e rostos cabisbaixos. Em silêncio.

Depois, tenho um receio maior. As repercussões que este desastre natural terá para todos. Não há nada no mundo que esteja dissociado do nosso quotidiano. E, afinal, o Japão é a terceira maior potência mundial. Mas não me atenho ao impacto da já débil economia mundial (e seus quocientes capitalistas), mas sim às repercussões que estas ondas radioactivas podem ter para nós, e os fios invisíveis que estão na senda de uma catástrofe assim. 

Este 2011 está a acordar pesado e conturbado. Amargo e com sabor a ruptura. Este 2011 começou muito esquisito (e também não sei se as revoluções em alguns países árabes há-de boa coisa ser). Este 2011 ando muito barulhento, mas há silêncios nele, que não conseguiremos nunca decifrar, e são os mais perigosos.

Desejo, do fundo do meu coração, do meu enternecimento, da minha solidariedade, que os japoneses e suas famílias tenham o auxílio e a força necessários para reconstruir este 2011.

Frenesia-frenesia, o retrato das palavras

Irma não tem irmãos. 
É uma bela italiana de cabelos longos e negros, olhos grandes e fartos, bem recortados, como boneca de moda, atentos ao mundo, atentos à irmandade entre Itália e Portugal. Fala um português adocicado, quase sem ser afectado pela sonoridade italiana e, quando a palavra ameaça vir amarga, como um tempero mal colocado na cozedura, neste caldo de Língua Portuguesa, e de uma certa latinidade, pede ajuda a Dávide. 

Nada se perde, na tradução. Ela pensa, já, em português, na estrutura das frases, mas quando lhe falha a doçura, vai à gaveta italiana. Somos todos, latinos, feitos de Cozinha Mediterrânica. Crescemos e aprendemos quase a falar na cozinha (enquanto a mãe prepara o biberão, enquanto os vizinhos aparecem para a visita, enquanto...), é a nossa grande-sala-materna para onde vamos, com frequência, instintivamente. É onde nos encontramos e reencontramos. Há-de haver, por isso, sempre um bálsamo que nos salve, entre latinos, quando nos perdemos na nossa latinidade de língua, quando nos falha a doçura das palavras, como aquele que Dávide poria na salada de Literatura Brasileira, ontem ao fim da tarde, para aliviar um certa obsessão de Irma, quando se viu a perder o doce da língua. 


A sala era, pois, a cozinha. Nós cozinheiros literários. Cozinhava-se palavras, teorias, conversas. Inventava-se receitas, à procura de ingredientes.

-"Frenesia. Frenesia".

Falávamos do cronista brasileiro João do Rio. E a única palavra, degustada, que saía da boca carnuda de Irma era essa.

- "Frene-sia. Frene-sia. Aiuitame!"

Dávide fechou os olhos. Reclinou a cadeira para trás levando corpo e pensamento. Nada lhe ocorria. 


Alguém soltou:

- "Frescura. Será frescura o que você quer dizer?"

Outra doçura aportuguesada saía da boca de Débora, a carioca. E minutos antes de um começo de aula discuta-se, curiosamente, os belos e inexoráveis equívocos da Língua Portuguesa entre o Brasil e Portugal. Quando "Durex" por aqui é marca de preservativos e do outro lado do Atlântico é significado de fita-cola, a coisa há-de sempre urdir histórias hilariantes, crónicas a la Luís Fernando Veríssimo, com um urgente "aiutame" no processo de tradução semântica, dentro da mesma língua, mas com outra doçura na fonética da latinidade.

- "Ah! Obsessões".

- "Fren-e-sias, isso, obsessões. João do Rio descreve as obsessões".

Confesso que quando Irma soltava as "frenesias" com tamanha aflição, na procura incessante e justa de se fazer entender, só me ocorria colar a palavra a "frenesim-frenesim", que evidente, na etimologia é prima da dita. E porque era assim que ela estava. Em frenesia: um certo delírio! Por isso, como ela insistisse com os olhos ainda mais abertos à procura de mundo, na geografia da Linguagem, ocorreu-me que ali na "frenesia-frenesia" ela estava a ser o mais latina, a mais genuína italiana, na sua obsessão, sem o saber, de retratar com o corpo, o que ela queria significar. E a nossa latinidade é isto: uma frenesia! "Ah, isso, a obsessão".

a viagem

terça-feira, março 15, 2011

Angola-Angola...Brasil



Está sol. O pátio tem granito cinzento e fartas ervas daninhas. Inspectoras de olho atento às entrevistas. Inspectoras-mulheres, impositivas, a ralhar a mulheres, subservientes. T-shirts brancas. Calças azuis. E o sol no alto a ameaçar calor. E o cinzento do chão a agarrar a densa realidade. Há educação pela pedra.
Ela já vem de rosto abatido. Parece o chão. Já vem o brilho do olhar quando enche a boca e diz, repetidamente:

-Angola, Angola.

Aqui ela é sol.
Angola-Angola. Está na pele. Na modorrenta forma arrastada do português falado. Está na cabeça. No pensamento. Está no BI. Agora está aqui, nesta espécie de quadrado que a Talavera Bruce reserva para as prevaricadoras. É penitenciária de mulheres, ao lado de Bangu, no Rio. Vizinhança da pesada. Narcotraficantes, 157 (assalto à mão armada), tráfico de droga, crimes leves, crimes pesados, mulas.

Catarina Ângela Martins, 21 anos: uma mula encomendada a Angola para o eixo São Paulo-Rio de Janeiro. Não quer ser fotografada. Quer ser fotografada. Assina. Autoriza. Uma forma de limpar a mágoa.

Agora ouvem-se gritos. Mulheres exaltadas. Às vezes exaltam-se. Os ânimos encarcerados.

-Desde o momento em que cheguei não me sentia bem: sentia que algo me ia acontecer, mas não podia desistir: a viagem já estava paga desde Luanda. Esse era o contrato.

O contrato, ou o passaporte que a enfiaria no cárcere: cinco anos por tráfico de droga internacional. Foi em 2009. O estômago estava inchado. As cápsulas demoraram a sair de lá. Mais célere foi o momento em que a Polícia Federal a topou. E haveria mais à volta do corpo. Cinco quilos de heroína. Não sabia de onde. Nem para quem. Mas a grana era boa. E ia ajudar os três filhos que ficaram com a mãe lá em Angola-Angola.

- Só tinha de entregar no aeroporto, quando chegasse a Luanda. Esse era o combinado.

Só queria voltar a casa. Angola-Angola. É de fala sintética. Anui. Foi enganada? Hum, hum!

-Tenho saudades da minha terra. A comida brasileira é muito diferente da comida angolana. E os fins de semana são os mais difíceis para uma estrangeira. Sinto-me muito sozinha. Custa a passar o tempo.

Do outro lado da cerca, sozinho, e a respirar liberdade, está o filho que pariu na prisão, a conhecer o tempo. Meses, até ser ano e meio.

- Não sabia que estava grávida quando vim. O meu filho nasceu numa maternidade. Ficou comigo até aos seis meses. Agora está numa família de acolhimento que cuida dele até eu sair.

Faltam 4 meses. A pena foi atenuada. O cabelo cresceu-lhe mais. A voz endureceu. Entristeceu. Ganha alegria nisto: Angola-Angola: lá! E batuca-batuca. Batuca pelo Afroreggae, dentro da prisão. A passar tempo. Cada batucada um salto quântico.

- Fiquei um mês. Apanhei o ônibus para São Paulo. Ficava no hotel. Fazia compras. Nunca fui à casa de quem me contratou. Até que um dia ela me disse: vais viajar. Prepara-te!

Foi uma ela. Houve também um ele. Não há nomes. Não se lembra de nomes. Não quer lembrar. O único nome é o do país, em bis! Preparou-se para voltar. Mas não para ser presa, nem para os dias que viriam. Chorou! Pensou nos filhos.

-É muito sofrimento estar aqui. E tens de negociar tudo: é preciso biscoitos, sabonetes, cigarros, escovas de dentes, sabão em pó.

Em Angola-Angola não lhe faltava nada. Mas a grana era boa. O processo parecia simples. Seria rápido. E nem por segundos lhe passou a prisão pela mesma cabeça que pensa na terra onde há calulu e galinha com muamba...Saudade!

- Faço tapetes para passar o tempo e passei à final do concurso de Garota TV aqui na prisão.

É a garota de Angola-Angola. De fala arrastada. Pensamento lento. Vai fazer sol no dia da Garota. O dia em que ninguém se lembrará do cinzento do granito do chão. Não haverá vozes impositivas, mulheres subservientes. O tempo será suspenso. Parecerá liberdade. Umas horas a menos para esgarçar o tempo até poder voltar para Angola-Angola.


*Texto baseado numa entrevista a Catarina Martins, em Novembro 2010, que se encontra a cumprir pena na Penitenciária Talavera Bruce, no Rio de Janeiro.   O Afroreggae tem lá um projecto de percussão com reclusas. 

O que pode ser mais criativo: deixar de prestar atenção...

segunda-feira, março 14, 2011

Paixão

Começa com um formigueirozinho, os olhos dengosos a quererem fechar quando se aproxima o beijo, o peito a arfar-arfar, as mãos a suar em seco, embora a humidade esteja quase a explodir nos poros das linhas de quiromância, um estado de arrebata-arrebata e, parece, quase já estamos em efeito de algodão doce e ser comido, com palpitações e o sorriso a ser uma espécie de boba incontinência, essa mesma de que é feita a filosofia de botequim. 

A paixão também é isso, o amor é outra coisa. E prometi-me, fiz juramento sob risco de exílio auto-inflingido, que viveria de paixão. Faria as coisas com paixão, viesse a dificuldade que viesse. Viesse o cinzentismo que viesse. Haveria sol, sempre, aqui dentro. E sol é paixão. Fiz jura em pequenina, quando abri o primeiro diário, com doce olor a folhas cheirosinhas: uma espécie de água-de-colónia de meninas mimadas, que a vida vale pela paixão pelas coisas.

Andei, certa vez, a rabiscar nesse diário e, quando me dei conta, já grandinha, tinha escrito a sentença que me haveria de perseguir os fôlegos e retardar o efeito contínuo a algodão doce. É fazer as coisas com paixão, minha menina. Até ir ouvindo a primeira, a segunda e por aí em diante; de ouvir os outros a me ouvir vibrar. De fazer com que os outros, também vibrassem com as coisas que lhes dão o incontinente e genuíno sorriso bobo pelas coisas que não sabemos explicar e que nos fazem tão bem!

E, com respeito ao pragmatismo do mundo, não consigo fazer as coisas do mundo que amo, sem ela. Sem a paixão. Não consigo. É assim com os amores, é assim com as minhas pequenas coisas que, agora, ocorre-me têm cheiro a velho. As minhas paixões têm cheiro a velho, daquele velho-lar, quase telúrico, e que ainda me fazem ficar com os olhos dengosos, efeito de algodão doce, palpitações e um sorriso bobo, incontinente. 

Ocorre-me tudo isto porque saio das aulas de Literatura com paixão arrebatada, com vontade de mudar as coisas, sendo um pouco mais eu, e que esse pragmatismo torpe e errado impõe-se-me, tirando fôlego, causando-me arritmias e ansiedades, amarguras e tenazes desalentos como se me arrancasse um pouco mais de mim. É como se precisássemos de injecções de paixão, para degustar um certo optimismo.

Ando tristonha, porque há esta pressão de mundo que não me deixa ser um pouco mais eu. E esforço-me. Só a consciência, se falasse, sabe as noites brancas com cedos acordares de investidas que já contam aqui dentro (ando um pouco cansada, confesso). 

E ocorre-me isto porque vi de novo o mendigo, a conta bancária, olhei para o presente, cheirei o futuro como tábua rasa, respirei, e porque, para bálsamo das tormentas, andei a ler as minhas Etiquetas Negras, as minhas Piauís, as minhas Replicantes e Bravos da vida e aí sinto-me um pouco mais próxima de mim, do meu algodão doce, da minha essência que é escrever. Escrever e ser apaixonada por coisas tão velhas como máquinas de escrever, rádios antigos, polaroids, vinyl, tintas permanentes, cadernos de notas e sebentas, sabonetes do armário da avó, baús, águas-de-colónia, assemblages, os clássicos, slides e vespas. Coisas sem importância, de tão pequeno e singular peso na minha balança. Haverá outras coisas, enquanto, ao mesmo tempo tenho a high tech paixão de coisas como i-phonices com o bobo sorriso incontinente.

Talvez seja o retorno de Saturno. Talvez seja um golpe de azar. Talvez seja um teste para alguma coisa, sobretudo para a minha capacidade de aguentar os golpes ou mudar a estrada e caminhar para outro lado. Ou simplesmente nada, porque há momentos assim, de contínua rejeição. Em que o mundo nos rejeita com tamanha transparência como quem diz que não vale a pena esforçarmo-nos porque tudo está escrito. Resta-me, pois, continuar a acreditar na paixão.

Biblofagia

A propósito de comer os escritores, comer livros, degustar letras, saborear papel timbrado a literatura. Comer histórias, com gente lá dentro...

Medidas de austeridade...ou como dar tacadas a ver se nos enfiamos um pouquinho mais no buraco

Numa altura em que se pede mais sacrifícios aos bolsos das famílias portuguesas, o primeiro-ministro mostra-se "sensível", avança o Jornal de Negócios, "a argumentos do sector": esses produtivos verdes campos de luxo, preparando-se para reduzir o IVA para o Golfe, tributando a 6% em vez dos actuais 23%, como se a coisa fosse metáfora da conjuntura actual: vamos dar tacadas a ver se nos enfiamos um pouco mais no buraco. Há prioridades, caro primeiro-ministro, e não consigo encontrar um argumento sequer (e a coisa até poderia ser amenidade do dia 1 de Abril) que justifique mais um número de circo deste executivo.

domingo, março 13, 2011

a sintonizar-me...


A sinfonia de quase chegar


Começou com um grunhido quase inaudível. Um lamento baixinho, no barulho da rua, dos passos, das buzinas, dos pneus em asfalto molhado. Quem quisesse ouvi-lo teria de se desabituar, por instantes, aos vícios que a rua nos habituou, enganando a audição. Ele vem, chegando a nós, sempre à mesma hora. Quase a chegar às oito, à noite. Quando a maioria está quase a chegar a casa. Quase a chegar ao jantar. Quase a chegar à cama para chegar às oito do dia seguinte. Da manhã. Da noite.

Este homem inquilino da rua chega quase-quase às oito, às segundas, às terças e às quintas-feiras, à porta da Casa da Música. Não sei se quase chega às oito nos outros dias, porque nunca estou ali. E quando não estou, ele para mim não existe, embora eu, para ele, não exista nunca. 

E ele tem vindo a chegar cada vez mais carregado, cada vez mais perto daqueles que estão quase a descer as escadas para o metro, na rotineira itinerância de quase, àquela hora, querer chegar a casa.  

Tem vindo cada vez mais perto, mais ousado, mais destemido, seguro e barulhento (aumentou o tom da voz para concorrer com a sinfonia da rua, porque percebeu que não conseguimos desabituar a audição aos graves e agudos da urbanidade, para ouvi-lo melhor). 

Primeiro, escrevi-o já, veio de voz baixa. Depois de lamento audível, pedindo esmola, trocos para comer, um galão, um leite, um molete. Já o vi de papel nas mãos, à porta daquela mesma entrada para o metro, falando de sua condição para, calado, deixar que o escrito cumpra o preceito de chegar, se calhar, mais perto aos outros, despertada a curiosidade de ler o que dirá aquele pedaço de branco a letras negras, ensaiando um resumido curriculum vitae.

Naquela entrada, certa vez, quase a chegar às dez da manhã, na sua terceira idade, também uma senhora de meias brancas de lã, dobradinhas, a chegar à fivela dos pretos chinelos, cabelo curto, escovado a pente, que lhe aparta a risca numa valsa a dois: cinzento e branco, pedia. Pedia numa caixa de plástico de cotonetes. Pedia trocos para comprar medicamentos. Pedia, envergonhada. Pedia limpa, a bondade alheia no corpo de uma moeda. No papel de uma nota. 

E ele, sujo, de barba a servir-lhe de esconderijo para o rosto jovem, o cabelo oleoso a servir-lhe de tecto. E quando o cabelo é tecto, os pés hão-de ser alicerce de uma casa imaginária, com o corpo a ser estrutura dos dias. E, com isso, nós a sermos mais do que nunca inquilinos de nós próprios. E a rua pode exigir um preço muito alto, demasiado, pelo uso dele, nela. Ele pedia e evoluía na aproximação alheia. 

As mãos enfarruscadas. As unhas ainda mais tisnadas. O odor azedo. O lamento desesperado. A mão estendida. O sobretudo verde-musgo, acastanhado, rasgado nas dobras, sem bolsos, de forro desfeito. Pés em botas negras, que se arrastam em direcção de quase a chegar a alguém que passa, se vencer a ousadia de pedir mais perto. Os olhos: aqueles olhos amarelados não se sabe se de qualquer doença, ou se febril de vida. 

Da última vez que o vi arrastava um caixote com ele, com os pés, com a voz, com as mãos que tentam chegar a alguém, em troca de um placebo para aquela noite. Como se a vida ganhasse novo alento com o brilho de uma moeda, e perdesse de novo, no instante em que nos despedimos dela em troca de um paliativo para uma voraz necessidade. 

Ele  quis alcançar-me, mas o meu olhar baixou, anestesiado, para o caixote, onde dobrado estava um edredão. Um edredão dobrado como síntese das telhas da casa daquele homem. Para lhe cobrir o tecto e os alicerces, caso o frio venha. Caso o frio esteja quase a chegar. 

Vi aquele edredão, num caixote que se arrastava em mãos tisnadas, e ocorreu-me pensar como poderia haver tamanha desafino humano, na Orquestra da Vida, à porta de uma estação a chamar-se Casa da Música. 

Hilda, o equilíbrio



Uma pessoa atravessa o Atlântico e parece que traz com ela a tristeza dos outros. Uma pessoa, faz ao contrário e parece que carrega de novo a melancolia dos outros. 

A Hilda tem dias em que parece que carrega o peso dos outros mais o seu. Há-de ficar com um crónico problema de costas, ou a fibra lombar cederá mais rápido, que nem tudo se aguenta a analgésicos e paninhos quentes. Já lhe disse para se cuidar. Já lhe disse, inúmeras vezes, que ninguém merece arrancar-nos energia assim. 

Se passamos o tempo inteiro a levantar os outros, mais depressa cairemos nós. Se passamos a maioria do nosso precioso tempo a injectar auto-estima e adrenalina nos outros, havemos de querer enfiar-nos na cama para dormir mais depressa, para que o dia passe, o peso adormeça até ao dia seguinte, e nos sintamos um pouco mais rejuvenescidos do cinzento alheio. 

Mas ninguém aguenta tanto, Hilda. Ninguém aguenta anular-se assim, mostrar que tudo está bem, engolir rudezas e ausências de carinho, quando dás tanto. Ninguém aguenta estar sozinho, estando acompanhado. Estando tão mal acompanhado. Já te disse Hilda. Mas tu retrucas que nunca foste boa na escolha dos afectos. Falaste-me em dedo podre para escolher. Não te recrimines. Amacia com generosidade, e ensaia a presunção da inocência. 

Eu sei que te digo muitas coisas que tu sabes, mas que não consegues encontrar a fórmula que te permita dar-lhe prática no dia-a-dia. Estás em casa, agora, por exemplo. Na inércia do desafecto. Estás em casa, a querer dormir, apagar o dia, com os olhos a quererem jorrar água salgada, mas não consegues, porque estás envergonhada de ti, o suficiente, para teres a certeza de que deixaste que te tirassem a energia. Deixaste que te tirassem o equilíbrio, quando tinhas prometido que não irias deixar fazê-lo. Demora tanto para chegarmos a esse estado. 

Por que é que deixaste? Por que perdeste o equilíbrio Hilda? A demasia dos afectos é uma overdose que leva à perda de fôlego saudável. Respira. A uma anulação que te pesa, te faz cair e desejar adormecer até ao dia em que tudo passe. Para te regenerares mais um bocadinho e arranjares forças para o equilíbrio. Para não deixar que te roubem o equilíbrio de novo. É um volte-face, Hilda, eu sei. Eu avisei-te. Tu sabias. Mas estou aqui, de novo, para o que precisares. 

Protegeste-te até teres uma incerta certeza de que valia a pena voltares a cair de novo para viver. Tiveste provas disso. O salto inesquecível que palpita de vida. Só assim valeria a pena, disseste. Quando tiveste a incerta certeza de que valeria a queda, porque alguém estaria ali para te apanhar ao colo. 

E, agora, caíste, pelo excesso, pela demasia. E, quando viste, havia um vazio no final e nem uma sombra para te amparar. Eu estou aqui, Hilda, se quiseres. A uma certa distância, a praticar também a arte do funambulismo com alguma perícia e cansaço e, também, eu não estou certa - porque receio olhar lá para baixo; em frente, respirando, está uma certa superação - se haverá braços suficientes para me amortecer o corpo, caso não chegue ao outro lado da corda. Hei-de chegar Hilda. Havemos de lá chegar!

tinta fresca...









© fotos Vanessa Rodrigues

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quinta-feira, março 10, 2011

Twilight zone, ou o gozo do sublime, o outro, em nós

Pode ser efeito do álcool, mas de manhã não bebo. Pode ser efeito do cansaço, e a Primavera pode ter conspirado para isso. Pode ser efeito de alucinógenos, mas só se injectados às escondidas, quando eu não der conta. Que fique bem claro: desconheço quem poderá estar por trás de tais conspirações que me fazem andar pela rua, como se deambulasse num filme inventado, numa realidade paralela, por vontade alheia, vendo os outros ao meu redor ainda mais estranhos que o habitual. É como se este quotidiano estivesse a ser degustado a preceitos oníricos (ponham surrealismo nisto) e que, de repente, vou, de imediato, acordar. Ando assim, como se vivesse um mundo paralelo e aquela realidade não fosse a minha: quem sabe ando a mudar a carapaça, a sair-me a casca, a mudar-me a pele, ou as folhas, em breve, vão florir. A mesma sensação aconteceu-me pela primeira vez que mergulhei de garrafa e andava com as barbatanas a dar a dar no meio do Oceano Atlântico, na costa de Ilha Grande. Aí pode ter sido efeito da mistura no oxigénio da garrafa, mas nunca saberei. 

Calhou-me dizer ao instrutor: 

- No mergulho perco um pouco a fronteira entre o imaginário e o real. Parece que estou dentro de um outro mundo a ser espectadora dele. 

O instrutor achou aquilo perigoso e achei melhor ficar calada o resto do curso. Limitei-me a respirar e a fazer bolhinhas no fundo do mar, sempre que a água me enchia os óculos. 

Na rua tem acontecido mais ou menos o mesmo. As pessoas passam e, de imediato, dou conta que estou a pensar se elas existirão na verdade: se algumas delas sou só eu que as vejo, se outras passam por nós e realmente não existem de carne e osso. São uma espécie de seres espirituais, mas com carne e figura humana como os de "Les jeux sont faits" de Jean-Paul Sartre, e que lhes foi dada a oportunidade de cumprirem ou resolverem alguma coisa que ficou inacabada, num mundo à parte, que acontece ser o meu. Sem esoterismos e espiritualidades (que pelos vistos até estão na moda nos filmes actuais: até Clint Eastwood foi apanhado na trama), apenas recordo Sartrianas conspirações e a ironia do acaso. 

Penso nisso, no mundo paralelo que pode haver, à luz do dia, ao redor de nós, em alta convivialidade com os nossos bafos e ocorre-me um "por que não?", se quando eles passam, iguaizinhos a nós, ninguém vai conferir mais tarde se eles têm uma vida, casa, contas para pagar, angústias, alucinógenos, cansaço, e saca-rolhas para abrir um "JP" de Azeitão e perceber se oxidou ou não.

Penso nisso depois de saber que na Estética Comparada (a ver se percebi bem a aula da hoje que isto de mexer em Filosofia, Literatura e teorias comparadas não há-de ter bom efeito no cérebro: pluff!) o Sublime tem pendurado às costas (pode ser o "esse" o primeiro ombro e o "eme" o segundo) o espanto e o gozo como fruição estética de uma certa fealdade, enquanto categoria da coisa: ou seja, trocado em miúdos, que gostaríamos mais de ser carrascos implacáveis do que nos compadecemos com a vítima. Sociedade do Espectáculo ou a ascensão de Crash à la J.G. Ballard. É uma espécie de Olhar a Dor dos Outros by Susan Sontag, ou a mutilação genital a entrar pelo ecrã à hora em que comemos. Blazé! A ideia ficou a ser ruminada enquanto enfrentava há pouco uma série de seres-zombie que vagueiam pela cidade do Porto à noite.

Mas, a verdade é que o meu encontro real com o Sublime começou a semana passada e têm-se sucedido, compondo uma geografia dos seres estranhos que habitam este filme que não realizei, e dando viço à teoria do Sublime no mundo paralelo.

1. Primeira hipótese, em plano sequência, zoom in, zoom out e travelling. 
Ele vinha na minha direcção na Rua de Cedofeita. Era manhã cedo. Trazia um chapéu estilo entre o panamá de sambista carioca e o ar de mafioso desde pequenino. Era negro. Um negro pardo. Era de um alto invejável. Vestia gabardine escura e um fato irrepreensível ajudado por uma gravata lilás. Olhou-me e arrepiei-me. Continuou na minha direcção e como quem ousa enfrentar um diabo, destemida, olhei de novo e senti-me desfalecer se não tirasse os olhos daqueles outros magnéticos, a chispar peso, um certo chumbo. Olhar vazio, no horizonte. E tão pesado. Um peso que nos cai no corpo, nos ombros, como quem nos empurra para terra até que enterremos os pés. Passou ao lado, e quase poderia ter tido um efeito abrasivo se eu não me tivesse desviado. Foi como se não me visse, do alto da sua negritude, do librar daquele olhar tão azul, que o chapéu protegia da luz. Foi-se. Olhei para trás e lá ia ele, de andar pesado, como se quisesse poupar léguas na caminhada, com passos largos. Podia jurar que ele não me tinha visto, e como não o tivesse, pesou tanto. Aí veio a primeira hipótese: a probabilidade de me ter cruzado com um não-ser,  a quem deram o guarda-roupa desadequado para a época. Estava provada a primeira ideia do sublime e levantada a questão da minha twilight zone pessoal.

2. A segunda hipótese. Fade in. Plano Geral. Jump Cut e plano lateral a imitar o olhar de esguelha. Apaixonei-me de tal forma pelo "Assassina Ilustre" de Enrique Vila-Matas que hoje comi-o, enquanto andava de metro que deixei passar a minha estação. Quando me apercebi (e, inevitavelmente no mundo paralelo a que fui parar: eu estava ali, mas não estava: vivia a vida do livro) resolvi seguir mais um pouco viagem até à Maia. No regresso, enquanto lia "Assassina Ilustre", um outro homem, negro, cabelo muito curto, blusa azul-céu, sentado do meu lado direito, emitia uns sons guturais, que oscilava com a língua, quase a querer imitar os cascos de cavalo, quando queremos contar às crianças os contos que exigem tais onomatopeias. Pensei que imitava a música que ouvia, mas não tinha auscultadores. Simplesmente transbordava o som gutural e de língua solta e, de repente, saiu-lhe um "Fantástico". Não percebi por que cantava, nem o Fantástico, mas talvez fosse outra espécie de Sublime naquele seu mundo e eu fosse o mundo paralelo. Ele não estava certo se eu existia. Nem eu.

3. Terceira hipótese. O plano de esguelha, essencialmente. 
A miúda caminhava cabisbaixa. Óculos de hastes pontiagudas no final, casaco cinzento, mãos nos bolsos e o rosto a querer ir para lá, se também pudesse. Os olhos queriam cair. Olhava o chão. Fungava, como se escondesse um choro. E as lágrimas não podiam descer porque a vergonha berrava-lhes. Ela estava ali. Mas não estava. Eu sei que não estava. Porque quando alguém passou por mim depois foi na direcção dela e ninguém se desviou. Apeteceu-me perguntar-lhe por que razão estava triste. Por que razão os olhos lhe queriam cair e lhe apetecia amordaçar a vergonha para fazer a festa com lágrimas e beber o sal delas. Ultrapassei-a a pensar tudo isto e fiquei na dúvida sobre o que haveria de sublime na tristeza de alguém.

4. Quarta hipótese. O Plano Americano. Plano Próximo. E fade out. 
Ele cambaleia muito. Tem a muleta. Um pé torto. O outro com as solas gastos e o fato-de-treino puído. Rugas da rua. Sim, a rua rasga ru(g)as na derme e erode um pouco mais a máscara que carregamos. Estende o boné para quem passa. Uma ajudinha, se faz favor. Uma ajudinha para um pobre homem, com tom de desespero, um homem que pode desmoronar a qualquer momento, na imprevisibilidade da angústia. Uma ajudinha que sai da boca desdentada. Das cáries que nunca tratará. Da vida possível que nunca teve e que nunca saberemos. Temos sempre duas: a que sonhamos, e a que vivemos. A que construímos como queremos é outra história e aqui não cabe. Mas pode ser uma dessas vidas paralelas, se formos capazes, como Pessoa, de nos despersonalizar.  

poesia-profunda: cavo, cavas, cavamos...

quarta-feira, março 02, 2011

Malandragem



Com cinco anos de Brasil nas hormonas e nos neurónios, poderei suspeitar que haverá, certamente, resquícios de malandragem brasileira no meu ADN, mas não sei ainda bem quais. O Tarica uma vez advertiu-me: 

"-Van, você 'tá muito brasileira, vai ver ainda pega a malandragem carioca!"

Pedi-lhe que me explicasse essa estirpe de malandragem e recordo-me que houve algum brilho no olhar: 

-"Ah,  é um boémio incorrigível, faz samba de manhã, à hora de almoço, depois de almoço, à tarde, final do dia, à noite e entra pela madrugada dentro... E, claro, com o elixir âmbar num copo americano. Essa geladinha!". 

Evidente que era o lado lírico da estirpe a que o Tarica se referia. Malandragem exige outros artifícies, uma Grande Arte, ao jeito dos naturalistas (o ambiente e a hereditariedade: certa tirania do contexto), ou seja, uma boa dose de esperteza e artimanha que não tenho, não herdei, nem se aprende, assim, tão facilmente. Digamos que, apesar de tudo, esses cinco anos foram uma espécie de rito de passagem. Um estágio, cumprido com louvor e distinção, como quem diz: sobrevivi à malandragem brasileira. 

A semana passada, pedi ao J. que me oferecesse um livro da feira improvisada na Póvoa de Varzim, a propósito do Correntes d'Escritas. Estava indecisa entre a Maria Velho da Costa, Roberto Bolaño e Mário Zambujal. O J., talvez a pensar na hipótese de que eu poderia levar dali um livro autografado, escolheu a "Crónica dos Bons Malandros" do Zambujal na antiga edição da Leya (2008). 


Vi o Zambujal passar várias vezes por mim, depois da obra em mão, mas achei sempre que não era o momento - ou ele fumava, ou conversava, ou estava de olhar circunspecto e, sabemos, temos de aprender a ler os sinais dessa raça que são os escritores, antes de meter conversa. Depois, era acometida, recorrentemente, por aquele sentimento de me sentir um pouco ridícula e envergonhada para lhe pedir uma dedicatória. 

No dia seguinte, quando o Mário Zambujal estava na apresentação de um livro passou em frente, cumprimentou-nos (beijo; passou bem) e achei que o momento era, então, aquele. Pegou no livro. Pediu caneta. Sentou-se sozinho numa das cadeiras e, alguns minutos depois, entregou-me o livro. Disse: -"Espero que se divirta!" 
Beijo. Sorriso. Um olhar grato.
Agarrei o livro para guardá-lo. O J. perguntou se não ia ler, já de sorriso jocoso. Sentia-me, de novo, um pouco ridícula, mas voltei a abrir o livro. 
Na primeira página com o título, o Mário Zambujal tinha feito isto:

"Estes
 Crónica dos Bons Malandros 
pedem asilo na estante da Vanessa - para quem levam um beijo carinhoso do Mário Zambujal".

Se essa dedicatória (ignoro se repetida vezes sem conta nas páginas de outros pedidos, mas também para o caso não importa) já valia por si uma espécie de atestado da minha condição de malandragem, o que veio à noite seria, então, a "honoris causa" na virtude da boémia. Zambujal saiu para fumar no hotel. Veio na minha direcção enquanto eu já baforava uma cigarrilha. Beijo. Sorriso. Olhar subtil. 
"-Ah, com que então você também é uma malandra!" 

A partir daqui já não há mais nada a contestar. Se o mestre disse, malandra ergo sum!