Com cinco anos de Brasil nas hormonas e nos neurónios, poderei suspeitar que haverá, certamente, resquícios de malandragem brasileira no meu ADN, mas não sei ainda bem quais. O Tarica uma vez advertiu-me:
"-Van, você 'tá muito brasileira, vai ver ainda pega a malandragem carioca!"
Pedi-lhe que me explicasse essa estirpe de malandragem e recordo-me que houve algum brilho no olhar:
-"Ah, é um boémio incorrigível, faz samba de manhã, à hora de almoço, depois de almoço, à tarde, final do dia, à noite e entra pela madrugada dentro... E, claro, com o elixir âmbar num copo americano. Essa geladinha!".
Evidente que era o lado lírico da estirpe a que o Tarica se referia. Malandragem exige outros artifícies, uma Grande Arte, ao jeito dos naturalistas (o ambiente e a hereditariedade: certa tirania do contexto), ou seja, uma boa dose de esperteza e artimanha que não tenho, não herdei, nem se aprende, assim, tão facilmente. Digamos que, apesar de tudo, esses cinco anos foram uma espécie de rito de passagem. Um estágio, cumprido com louvor e distinção, como quem diz: sobrevivi à malandragem brasileira.
A semana passada, pedi ao J. que me oferecesse um livro da feira improvisada na Póvoa de Varzim, a propósito do Correntes d'Escritas. Estava indecisa entre a Maria Velho da Costa, Roberto Bolaño e Mário Zambujal. O J., talvez a pensar na hipótese de que eu poderia levar dali um livro autografado, escolheu a "Crónica dos Bons Malandros" do Zambujal na antiga edição da Leya (2008).
Vi o Zambujal passar várias vezes por mim, depois da obra em mão, mas achei sempre que não era o momento - ou ele fumava, ou conversava, ou estava de olhar circunspecto e, sabemos, temos de aprender a ler os sinais dessa raça que são os escritores, antes de meter conversa. Depois, era acometida, recorrentemente, por aquele sentimento de me sentir um pouco ridícula e envergonhada para lhe pedir uma dedicatória.
Vi o Zambujal passar várias vezes por mim, depois da obra em mão, mas achei sempre que não era o momento - ou ele fumava, ou conversava, ou estava de olhar circunspecto e, sabemos, temos de aprender a ler os sinais dessa raça que são os escritores, antes de meter conversa. Depois, era acometida, recorrentemente, por aquele sentimento de me sentir um pouco ridícula e envergonhada para lhe pedir uma dedicatória.
No dia seguinte, quando o Mário Zambujal estava na apresentação de um livro passou em frente, cumprimentou-nos (beijo; passou bem) e achei que o momento era, então, aquele. Pegou no livro. Pediu caneta. Sentou-se sozinho numa das cadeiras e, alguns minutos depois, entregou-me o livro. Disse: -"Espero que se divirta!"
Beijo. Sorriso. Um olhar grato.
Agarrei o livro para guardá-lo. O J. perguntou se não ia ler, já de sorriso jocoso. Sentia-me, de novo, um pouco ridícula, mas voltei a abrir o livro.
Na primeira página com o título, o Mário Zambujal tinha feito isto:
"Estes
pedem asilo na estante da Vanessa - para quem levam um beijo carinhoso do Mário Zambujal".
Se essa dedicatória (ignoro se repetida vezes sem conta nas páginas de outros pedidos, mas também para o caso não importa) já valia por si uma espécie de atestado da minha condição de malandragem, o que veio à noite seria, então, a "honoris causa" na virtude da boémia. Zambujal saiu para fumar no hotel. Veio na minha direcção enquanto eu já baforava uma cigarrilha. Beijo. Sorriso. Olhar subtil.
"-Ah, com que então você também é uma malandra!"
A partir daqui já não há mais nada a contestar. Se o mestre disse, malandra ergo sum!
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