Há sinais que começam de manhã e que devemos interpretar como um prelúdio para a sequência das horas até o que há-de ser o fim do dia. O peditório: um destes dias comecei as horas a ser pedida. Saltei do autocarro ainda meia ensonada para repor o stock das cigarrilhas, antes de entrar no metro. Pedi o costume e ele entrou a pedir-me.
Uma moeda. Uns trocos. Pedia com jeito implorante e sotaque carregado de um peso eslavo, de quem ameaça evoluir para pedinte profissional se não rogar à sorte alguma clemência para a viragem dos dados da vida que para ali, para esta manhã, para esta cidade, o trouxe. O peditório há-de ser linguagem universal, como o medo, o frio, o amor e coisas tão terrenas como a fome.
Pediu-me na voz de quem roga a um deus em quem acreditasse, como se naquele instante eu fosse heroína para lhe salvar da aflição de quem anseia resolver, no instante decisivo, aquilo que lhe enchia de vazio o estômago.
Encolhi-me, porque a figura impressionou-se. Encolhi-me e baixo disse-lhe que não. Não sei se por ter interiorizado que responder "não tenho" é muito pior e mais hipócrita do que dizer a verdade com a voracidade frontal da negativa.
Fiz-lo e, como insistisse, arrastando ainda mais a voz clemente, cadenciada por um tom monocórdico e com a homogeneidade dos pedintes, a mulher a quem pedi as cigarilhas a troco de dinheiro bisou-lhe um não.
Vestia uma camisola azul-marinha de lã, puída, na gola. As mãos estavam secas e enrubescidas de um frio que o vento primaveril trouxe, sem que pedíssemos. Se o fizéssemos, por estes dias, pediríamos sol, sol com voz clemente e rogando a esse mesmo deus que fingíssemos acreditar, acreditando.
Ele saiu. Eu fiquei. Eu saí, hesitei entre um café à direita, um café à esquerda, como quem anda à procura de norte. De sul.
Fui para norte. Vi Buondi em letras gordas. Entrei. Um café com cheiro a café encafuado em fumo de cigarro velho, pó e sujidade escura que haverá de estar entranhada nos poros das paredes. Isto e a linguagem universal para saber que os inquilinos daquelas mesas, ficariam colados ao programa da televisão até ser hora de comer o conduto, à hora de almoço.
Entrei e vi-o a pedir, de novo. Entre o norte e o sul, acabei, sem querer por escolhê-lo a ele, de novo. O mesmo pedinte. Agora familiar. Olhou-me tímido. Pediu um leite quente. A mulher do outro lado balcão, desta vez, disse-lhe que sim, mas que esperasse porque tinha de me servir primeiro. Eu disse que não. Escolhi o norte, outra vez, e disse que ele tinha pedido primeiro. Deu-lho. Mas antes ele veio sentar-se no balcão, no banco ao lado, onde eu mantinha a espinha hirta preparada para o café.
Ajeitei-lhe a cadeira para ter mais espaço. Bebi o café e voltei a subir o norte, em direcção ao metro. Este foi o primeiro Acto.
2. Sol de meio-dia. Os inquilinos do café da manhã devem estar a movimentar-se para o conduto. Som de autocarro. Bip do leitor de andante. 602. Sento-me lá atrás e há um rosto, no primeiro banco do autocarro, à retaguarda do condutor que não tirou os olhos de mim. Seguiu-me e mantém-se fisgado na minha direcção. Até mim o olhar dele. Até mim, o olhar dos passageiros, indignados com o enigma do olhar dela até mim. De longe, já me pede alguma coisa e eu ainda não sei bem o quê. E não sei que tenha que lhe possa ser útil.
Levanta-se. Pernas à mostra, esguias, pequenas, de menina. Cabelo apanhando, num puxo, e um malmequer de plástico perto da orelha. Um preto-casaco a acabar-lhe milímetros antes do vestido, ou da saia por baixo. E uma mala de serapilheira escura, numa orgia de castanho preto e cinza. Vem. Como se o olhar levantasse e seguisse o traço que até ali fazia certeiro ao final do autocarro. Vem e olha-me de esguelha levando-me a pensar que se sentará ao meu lado. Vem, insinuada a sentar-se. E já pede algo com o olhar. Senta-se atrás, na diagonal e chama-me.
- Não se assuste. Queria pedir-lhe uma coisa. Reparei que tem um andante. E eu ando a ver as pessoas que têm andantes. É que tenho um que não uso e queria ver se havia alguém que me pudesse comprar esse bilhete que não uso para comer. Para comprar, por exemplo, um pacote de bolachas.
Enquanto fala, a pequena, nuns lábios rosa-flor, carregados de batom esborratado, a sair-lhe pela linha dos contornos da boca, exala um hálito podre, demasiado podre para a tenra idade. E percebo-lhe uns dentes tão amarelos e encrustados que me dá pena, num limbo sem saber o que fazer. Talvez lhe devesse perguntar algo mais. Talvez lhe devesse ter respondido que sim e, se calhar, era a minha segunda crueldade do dia. Eu fiquei tão surpreendida que fiquei demasiado tempo em silêncio. Se calhar mais do que é aceitável na boa convivência com os outros, mas o meu instinto deu-me o impulso de agradecer e dizer que não queria.
- Obrigada, ainda respondeu. Exalando o último bafo, enquanto a voz se matinha no mesmo tom, como quem acaba de receber um sim.
E ficou em silêncio, a observar-me na diagonal, talvez a pedir-me para trocar com ela a pele, por instantes. E a única coisa que me ocorria era se deveria ou não dar-lhe dinheiro, simplesmente. Passou a primeira paragem. Demorei mais uma a pensar naquilo e no que poderia passar uma miúda assim tão bonita e tão estragada, nas mãos erradas, a jogar com o lado mau dos dados cruéis da vida. Nascida em má sorte e a jogar para mudar o tabuleiro da trama.
Ela precipitou-se para a porta de saída. Hesitou. Foi para a porta de entrada. Sussurrou alguma coisa ao motorista e saiu. Saiu e pude ver-lhe um olhar tão absorto e focado num horizonte de nada que cheguei a ponderar se aquela miúda realmente teria existido ali e naquele momento e se, afinal, não teria sido eu a única a ver-lhe. Não posso estar certa de que não fosse apenas um espectro.
3. Saí do supermercado e a mulher precipitou-se do parque de estacionamento na minha direcção, enquanto me apressava para a paragem de autocarro. 16h.
- Senhora, Senhora.
Tinha a mesma clemência arrastada do homem da manhã. O mesmo puxo da mulher do meio-dia. E saias compridas, a tapar as pernas. Arrastou-se até mim a pedir. Queria comer. Sacos plásticos nos braços. Havia comida neles. Havia bolachas. Havia leite. Rogava. Eu era a deusa desconhecida, ali em carne e osso. Seguiu-me com voz clemente, desesperada, arrastada num português bebido de palavras.
4. O homem da Casa da Música, sempre me pede ao fim do dia, aos dias do costume. Desta vez tinha uma gabardine escura e o cabelo mais escorrido, enquanto a chuva lhe lambia os fios. Pediu-me ajuda. Algo para comer. Por antiguidade, talvez, acabei por lhe pôr um euro na mão enfarruscada. Disse um obrigada senhora, como quem acaba de ganhar a lotaria. E eu segui cabisbaixa, ciente de que nada tinha feito. Dúbia se haverá alguma coisa para fazer.
Pensei no que poderiam ter em comum estes quatro pedintes além da obviedade da miséria e, por mais triste que seja a minha resposta, neste peditório público, têm em comum a coragem, para continuar a jogar os dados, à espera que um dia o tabuleiro mude.
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