Irma não tem irmãos.
É uma bela italiana de cabelos longos e negros, olhos grandes e fartos, bem recortados, como boneca de moda, atentos ao mundo, atentos à irmandade entre Itália e Portugal. Fala um português adocicado, quase sem ser afectado pela sonoridade italiana e, quando a palavra ameaça vir amarga, como um tempero mal colocado na cozedura, neste caldo de Língua Portuguesa, e de uma certa latinidade, pede ajuda a Dávide.
É uma bela italiana de cabelos longos e negros, olhos grandes e fartos, bem recortados, como boneca de moda, atentos ao mundo, atentos à irmandade entre Itália e Portugal. Fala um português adocicado, quase sem ser afectado pela sonoridade italiana e, quando a palavra ameaça vir amarga, como um tempero mal colocado na cozedura, neste caldo de Língua Portuguesa, e de uma certa latinidade, pede ajuda a Dávide.
Nada se perde, na tradução. Ela pensa, já, em português, na estrutura das frases, mas quando lhe falha a doçura, vai à gaveta italiana. Somos todos, latinos, feitos de Cozinha Mediterrânica. Crescemos e aprendemos quase a falar na cozinha (enquanto a mãe prepara o biberão, enquanto os vizinhos aparecem para a visita, enquanto...), é a nossa grande-sala-materna para onde vamos, com frequência, instintivamente. É onde nos encontramos e reencontramos. Há-de haver, por isso, sempre um bálsamo que nos salve, entre latinos, quando nos perdemos na nossa latinidade de língua, quando nos falha a doçura das palavras, como aquele que Dávide poria na salada de Literatura Brasileira, ontem ao fim da tarde, para aliviar um certa obsessão de Irma, quando se viu a perder o doce da língua.
A sala era, pois, a cozinha. Nós cozinheiros literários. Cozinhava-se palavras, teorias, conversas. Inventava-se receitas, à procura de ingredientes.
A sala era, pois, a cozinha. Nós cozinheiros literários. Cozinhava-se palavras, teorias, conversas. Inventava-se receitas, à procura de ingredientes.
-"Frenesia. Frenesia".
Falávamos do cronista brasileiro João do Rio. E a única palavra, degustada, que saía da boca carnuda de Irma era essa.
- "Frene-sia. Frene-sia. Aiuitame!"
Dávide fechou os olhos. Reclinou a cadeira para trás levando corpo e pensamento. Nada lhe ocorria.
Alguém soltou:
Alguém soltou:
- "Frescura. Será frescura o que você quer dizer?"
Outra doçura aportuguesada saía da boca de Débora, a carioca. E minutos antes de um começo de aula discuta-se, curiosamente, os belos e inexoráveis equívocos da Língua Portuguesa entre o Brasil e Portugal. Quando "Durex" por aqui é marca de preservativos e do outro lado do Atlântico é significado de fita-cola, a coisa há-de sempre urdir histórias hilariantes, crónicas a la Luís Fernando Veríssimo, com um urgente "aiutame" no processo de tradução semântica, dentro da mesma língua, mas com outra doçura na fonética da latinidade.
- "Ah! Obsessões".
- "Fren-e-sias, isso, obsessões. João do Rio descreve as obsessões".
Confesso que quando Irma soltava as "frenesias" com tamanha aflição, na procura incessante e justa de se fazer entender, só me ocorria colar a palavra a "frenesim-frenesim", que evidente, na etimologia é prima da dita. E porque era assim que ela estava. Em frenesia: um certo delírio! Por isso, como ela insistisse com os olhos ainda mais abertos à procura de mundo, na geografia da Linguagem, ocorreu-me que ali na "frenesia-frenesia" ela estava a ser o mais latina, a mais genuína italiana, na sua obsessão, sem o saber, de retratar com o corpo, o que ela queria significar. E a nossa latinidade é isto: uma frenesia! "Ah, isso, a obsessão".
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