Voltámos à Hilda. Às vezes não tenho pitada de inveja dela. Imagino-lhe o turbilhão de vida e prefiro o meu aparente sossego, o sol de verão, os livros pachorrentos e as amenidades. Aliás, não sei se deva começar por elas, falando da sinfonia descoordenada dos chilreares que ainda ouço (não sei se cá dentro, se lá fora), do trabalho que me pede uma certa dança de limbo e permanente jogo de cintura (e logo eu que estou a perdê-la), a ansiedade, a aprovação do povo pelo governo Lula, das praias do Rio, ou da crise esmagadora que nos atrofia a respiração. Não sei. Esqueci-me de falar disso tudo a Hilda. Com ela as amenidades perdem, realmente, todo o sentido. São desnecessárias. Leio-lhe as palavras inteligentes, secas, maduras e absorvo-lhe as densidades como lições de vida.
Hilda inquietou-me. Inquieta-me sempre. Ela não anda bem. Aquele karma com os homens é um desassossego e, por isso, a miúda mergulha em doses de fluoxetina. Desta vez está apaixonada pelos dois. Chegou a haver três. Chegou a falar-me de quatro. Quatro? Oh, Hilda, o Diabo! Aquela paixão antiga, mal resolvida, que lhe revolve os sentimentos numa anarquia: acorda de peito apertado e olhos humedecidos, como lhe dói.
Tento sempre, firme.
- Hilda, temos afastar-nos de tudo aquilo que nos faz sentir mal!”; Depois ele é um imaturo, um rude, um parvo, contigo, mulher!”.
Depois, é esse amor, pesado, que a deixa ainda mais densa.
- “Pois, Hilda, não sei. Tens de pesar o que te faz sentir bem. O que vocês têm de bom e único quando estão juntos e entender-se. O importante é procurar os pontos comuns para lidar com as diferenças. E ceder naquilo que é relativo e não essencial”.
Hilda sufoca. As palavras não ajudam.
Um dia disse-me que gostaria de ser eu. Disse-lhe que ela não estava a funcionar muito bem dos neurónios.
-“Eu, Hilda?”
Não lhe recomendei em nada esta vida de apneia.
- “Hilda, todos temos os nossos problemas. Paciência. Concentra-te em ti e nos teus projectos: é o mais importante e permite-te crescer; despender energia numa construção autónoma”, aconselhei-a.
Ela é linda. Todas gostariam de ser Hilda. Ela discordou. Pegou-me na mão. Riu-se e deu-me um abraço. Pude, por isso, sentir-lhe o bafo de tabaco e um certo desespero no peito. Desânimo, talvez. Com a vida. E ela já lhe tentou pôr fim algumas vezes, sem querer. Sem querer. Ou por greve de fome, por achar o corpo esquelético gordo. Ou por causa de litradas de Coca-Cola com whisky que lhe trazia gastrites críticas para a cama, de estômago vazio. (“Oh, Hilda, cuida de ti, miúda!”)
Desta vez inquietou-me forte. Não que haja qualquer sinal de perigo real na vida dela, mas porque uma mulher assim não terá sossego nunca. Esta mulher é intensa. Um pouco insegura, com uma certa indecisão lá dentro. Arrebatada, apaixonada. Viva. Oh, Hilda, o Diabo! Está dilacerada, sempre, entre um dever antigo, um passado, do qual não se desvincula, e um presente que a deixa, por vezes, amargurada. Mandou-me o e-mail dos dois. Aconselhei-a a apagar tudo.
- "Mensagens, e-mails, fotos. Tudo, tudo. Em nada te acrescenta. Pelo contário. Infla-te a amargura. A tristeza. O desassossego desnecessário. Sai dessa. Sai de casa. Faz outras coisas. Comigo sempre resultou esse corte radical. É um remédio essencial, para seguir em frente" - disse-lhe, sem querer parecer dona das curas sentimentais.
- “Se quiseres”.
Como pode ela amar tantos homens em simultâneo? Aquela cabeça. Aquele coração. Aquele desatino. Aquele karma! Acho que foi por isso que me lembrei da brincadeira que ela sempre fazia, das poucas vezes que fui a casa dela. Desafiava.
- Queres ver como tenho um karma que não controlo?
Dava-me o baralho do tarot, e pousava o livro com a explicação dos símbolos na mesa, para que lhe lesse em voz alta o que ela já sabia, assim que a carta saísse. No início entrava de boa, na brincadeira. Depois aquilo começou a assustar-me, mas não podia contrariar-lhe os humores. Ela andava sempre sensível.
Eu baralhava as 78 cartas. Fazia questão de misturar quase uma a uma. Ela não teria como saber. Inspeccionava as marcas. Mas depois, para que não houvesse dúvidas, a Hilda fazia-o de olhos vendados.
Das cinco vezes que ela o fez, em cegueira infligida, saiu-lhe o Diabo. Era a carta dela. Hilda, o Diabo. Ela ria-se em voz alta. E eu lia-lhe o que ela já sabia.
- “O Diabo manifesta o destino (bom ou mau). Revela poder de sedução, impulso cego, tentação, obsessão. Manifesta desvio sexual. Estado mental (confessional). As paixões carnais descontroladas. Posição invertida revela carta daninha, fatalidade, mau uso da força. Fraqueza , cegueira, desordem. Efeitos maléficos. A patética condição humana que prefere a ilusão, à verdade”.
- Desvio sexual; patética condição: sabes que patético vem de Pathos, Van? É sofrimento, em grego; que simpatia é partilha de dor?
- Sei, Hilda, sei. Mas já chega destas parvoíces.
Ontem, ela reforçou-o.
– O Diabo, Van. Saiu o Diabo. Ahahahah.
E parece que lhe ouvia as gargalhadas. Penso nela e estilhaça-se-me uma certa condição de ansiedade, por ela. E por aquilo que a vida pode ser, quando o tempo de infância e de tolerância para sermos alguém passa. E não acho que isso possa ser delimitado. Por muito que tentemos nunca estamos preparados para o ser. Ah, Hilda, o Diabo!
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