A primeira vez que me cruzei com Clarice ainda não sabia que era Clarice, e o que isso significava. Entrou de testa nua no café - a sua grande testa farta - que se acentua quando repuxa aquele cabelão preto para a pressão de um elástico improvisado, ou mesmo para a tirania de um lápis que o agarra em espiral.
É esse mesmo lápis que, às vezes, usa para lembrar a memória. Abre o caderno, pega no lápis (no, ou fora do cabelo) rascunha-lhe um bafo que acha digno de um dia voltar a cheirar e, quando dá por ela, o lápis está na boca, e ela a roer-lhe o canto colorido. Parece uma criança animada pelo lápis de cor no papel, como se a hora assim arrastasse o tempo para um recreio eterno. Também invejo Clarice por isso. A capacidade de fazer da vida um recreio e sem recear ser apenas aquilo e não outra coisa, afastando-se, como uma criança, de tudo aquilo que lhe rouba o sorriso. E, por isso, esteja em estado mais avançado.
Mas ela não percebe sequer que haja realmente uma importância e subtileza nessa forma leve de vida. É outro mundo. É sempre ela, reinventada lá atrás, crescendo, mas nunca crescendo. Nunca lhe vi uma ruga, ou um cabelo branco. Vi-lhe, sim algumas estrias, e o branco da pele que a cobre de uma doçura genuína. Mas isso não lhe tira a importância de ser Clarice.
Observá-la é um inevitável exercício de aprendizagem e de como gostaríamos de um dia ser, ou poder ter sido Clarice, sem alguma vez termos estado próximos. E eu sei que, apesar de tudo, essa mesma reinvenção que por cá há, é-me degolada como sinal de fraqueza. Não me lembro de alguma vez a ter escrita num caderno a lápis como o de Clarice. Talvez o devesse.
Há muito tempo que não vejo Clarice. Acho que nunca mais a vou voltar a ver.
Há muito tempo que não vejo Clarice. Acho que nunca mais a vou voltar a ver.
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