quarta-feira, maio 26, 2010

Cuidados Paliativos II


Perder Tempo, ou a tirania do relativismo proustiano (em busca do "elo" perdido)

Tenho um sério problema com filas. A espera causa-me sempre uma ansiedade tremenda. É como um vírus de acção rápida, cujos sintomas causam graves e imediatos efeitos colaterais: claustrofobia, irritação latente, alergias dérmicas, respiração acelerada e uma impaciência exacerbada que quase causa cegueira momentânea (“Tenho de sair daqui rápido”). 

Depois, conformo-me. Respiro. E disciplino a mente: “Relaxa, até trouxeste livros para ler”. O problema é que qualquer tipo de espera entranha-se-me como uma perda de tempo. É algo que foge do meu controlo. Que não depende de mim, mas sim dos outros. E isso, só por si, já causa efeitos secundários, sempre. “Estou a perder tempo, quando poderia estar a aproveitá-lo”. Tempo. Tempo. Tempo. Talvez isso explique muito da minha relação com ele, o tempo. Noutras ocasiões, muitas vezes, foram os livros que o salvaram. Foram os cúmplices fiéis para que ele não se fugisse em vão, enquanto espero em instituições públicas. Mas nestas circunstâncias há um bafo colectivo – claustrofóbico – que me agoniza. Nem o livro salvaria. Não salvou. 

É que há esse frenesim angustiante da loja de cidadão que me formiga os nervos. Há carrinhos de bebé a barrar as passagens, crianças estendidas no chão a brincar, senhoras de idade a interromper a circulação, famílias inteiras hirtas nos corredores (3 horas depois estariam no mesmo lugar). Há guichês minúsculos, paredes que são gente de perna alçada, homens a tresandar de suor que se esbarram contra nós e ainda nos olham como se fôssemos culpados (chegamos a equacionar a hipótese de estarmos, também, a atrapalhar a passagem, mas foi só impressão nossa: mais junto à parede só se fôssemos tinta). E há gente sentada de rosto esmaecido condenada à espera – e que me olha como se fosse um ser inferior. Sou-o, com certeza, porque não padeço do estado nirvánico necessário para ali permanecer de rosto esmaecido, nesse bafo colectivo de suor e olhar vazio. Triste e reféns de um estado que lhes foge do controlo, como sistema estabelecido. 

Acredito que o nível de desenvolvimento de um país se mede, essencialmente, de 4 formas, a funcionar como rápido raio-X: 1. pela maneira como tratamos o lixo em casa e cá fora; 2.  pelo acesso à saúde e tempo de espera nos hospitais; 3. pela rede de transportes; 4. pelo tempo de espera nos serviços públicos ou semi-públicos. A loja do cidadão trouxe a síntese desta última, reunindo num só espaço os serviços essenciais para o exercício da nossa portugalidade. Se no início a eficiência ainda foi madrinha da coqueluche da máquina burocrática da cidadania portuguesa, há algum tempo que no Porto, pelo menos, ela foi de férias. 

É evidente que ali não há funcionários suficientes para atender tanta gente. Já  sei que está para abrir uma outra loja. Enquanto isso, perdemos tempo. Mas além disso, o mais intenso, foi perceber o peso burocrático das emoções, por ali, e de como a espera torna as pessoas mais tristes, pesadas e conformadas com tudo isso. E tudo isso, assim, numa perda de tempo.

Conforme indicava a minha senha, só seria atendida três horas depois. Saí, comi um gelado e aproveitei para tratar de assuntos pessoais. Quando voltei, já me tinha curado da irritação, resgatara o sorriso e a leveza, e já não sabia do que era feito da ansiedade. Mas ainda faltavam seis números para o meu. Fui ao WC. Pela média do dia, ainda levaria uma meia hora, pelo menos, a ser atendida. Em 5 minutos estava de volta. Já tinha passado o meu número em quase dez. Hã? (Claro, ao fim do dia, já muito boa gente desistiu da espera e foi tentar resgatar o tempo perdido a fazer, provavelmente,  o jantar). 

Fui ao encontro da mulher do guichê. Expliquei-lhe. Ela respondeu que devia estar a gozar com ela. Que já tinha passado o número da minha senha e que não havia nada a fazer. Expliquei de novo. E sorri. O meu melhor sorriso, quando só o que me apetecia era ralhar-lhe, irritada. Psicologia invertida: "Sorri, Vanessa, sorri!", pensei. Fiz-lo. Ela acedeu. Mandou-me sentar. A meio da conversa percebeu que me conhecia. Era a mãe de um bom amigo meu de faculdade. Não o vejo há anos. Mas, nesse instante, percebi que em segundos, por afinidade, ganhara, eventualmente, o tempo que perdera a tarde toda. “Pois bem, em que posso ajudá-la?”

Sem comentários: