quarta-feira, dezembro 16, 2015

Onde andará Ingrid?

1. No primeiro Natal de Alberto, os ratos roubaram o bacalhau da pia, onde o peixe estava de molho. Toda a família, que poupara o ano inteiro para poder ter um pedaço de Portugal na vida emigrada no Brasil, ficou a pão, batatas e cebola. Dias depois, como o cheiro nauseabundo infestasse o ar com a sua pestilenta marca de podridão, foram descobrir restos de bacalhau por baixo dos tacos.

2. Chego ao Brasil e a vida parece ser mais lírica. Senão vejamos: durmo num quarto onde as estantes são albergue do mais excelso legado literário do Brasil com edições lindas, antigas, ornadas de pó implacável e as cicatrizes amareladas no papel. Mais: viajo para a Ilha de Paquetá com as Anas e vamos a ler em voz alta “A Moreninha”, romance do século XIX de Joaquim Manuel de Macedo que se terá passado nesse pedaço de terra. Depois, chego a conhecer um descendente do escritor Guerra Junqueiro; outra: consigo uma edição rara do livro “Emigrantes” do Ferreira de Castro, com ilustrações de Júlio Pomar. Há qualquer coisa no ar dos trópicos!

3. Alberto foi um dos que inauguraram a estrada que rasga o Brasil do Rio de Janeiro até Brasília, em 1960, ao volante de um camião, transportando os móveis dos políticos que estavam de mudança. Achou que voltaria com o serviço pago, mas tudo o que lhe deram foi um tal de cheque. Nesses 15 dias, a mulher, que lavava roupa para fora, amealhara o suficiente para comprar o fogão que cozinharia o primeiro jantar de Natal. Ele que fosse trocar esse tal de cheque porque era preciso ir, finalmente, comprar o bacalhau. Alberto não poderia adivinhar que, dois anos depois, voaria num pássaro gigante para Portugal e que traria o bacalhau escondido numa mala.

4. É a primeira vez que Ingrid viaja de avião e que passará o Natal sem os pais, diz-me. Testemunho o seu batismo de ar, com nove horas de viagem, atravessando o Atlântico, aos 16 anos. Ela conheceu uma amiga portuguesa pela internet, os pais certificaram-se que essa amiga existia e que não era um homem mal intencionado. Lá a deixariam passar um mês em Portugal. Aterramos, separamo-nos com a promessa que nos encontraríamos do outro lado, cumpridas as formalidades fronteiriças; passo com o meu passaporte eletrónico mais rápido do que ela; perdemo-nos. E recordo a frase do livro “A menina quebrada” de Eliane Brum: “hoje, sou povoada pelos homens e mulheres extraordinários que escutei como repórter. E agora tudo o que vivi dará sentido ao que virá”. Ocorre-me, talvez por isto: “Onde andará Ingrid?”

quinta-feira, novembro 19, 2015

O feitiço


Há qualquer coisa de esperança na luz do fogo. Apesar da raiva destrutiva. Apesar do rasto avassalador. Quando o escritor Ray Bradbury escreveu Fahrenheit 451, remetendo para a temperatura a que ardem os livros, e colocou uma cena em que os homens falam, de cor, sobre eles, à volta de uma fogueira, porque a censura condenara as obras a ser pó, pela língua da labareda, ele queria era metaforizar a esperança. Quando Guy Montag, o bombeiro dissidente, protagonista do romance escrito em 1953, os encontra, clandestinos, a falarem dos livros que leram, é como se sentíssemos, que apesar da desesperança, há uma perspetiva. 

Se quando nos tiram todos os livros – privando-nos da sabedoria escrita e desse alicerce cinzelado pela mão do Homem-, algo acontece nos mecanismos de resistência de alguns homens que, com avidez e sageza, se unem à volta de uma fogueira, é porque há uma possibilidade. É que eu vejo o horizonte dessa humanidade sempre que estou à volta de uma fogueira. Uma espécie de feitiço em que os homens são somente homens, em que as mulheres são somente mulheres, estendidos à condição de existir, ali e naquele momento, usando a mais bela das tecnologias: as vivências como repositório de aventuras e relatos de ser. Talvez seja isso o que nus realmente possuímos. 

E esse feitiço acontece-me desde pequena. À luz de fogaréus respeitosos no chão da casa dos meus bisavós fiz a minha entronização. Sem televisão e depois de sopas de cavalo cansado, contavam-se histórias reais, misturadas como o imaginário popular e telúrico. Façanhas de homens que chegavam a casa com coelhos à cintura porque a caça fora boa; histórias de mulheres que criaram filhos sozinhas porque os homens à guerra foram e lá ficaram; relatos de noites em branco por causa dos lobos; contos de resistência, como o fogo. Talvez por isto, hoje, sempre que me sento ao redor delas, não resisto a perguntar aos que lá estão:

- Lembras-te de alguma história?

É como se padecesse de uma maleita dos bichos carpinteiros pelo corpo inteiro, como se a voz fosse mais rápida do que a timidez. Aconteceu a semana passada, enquanto a Sara e o Anselmo alimentavam o fogo para as castanhas e os pimentos da horta do Éden, esse Jardim do Pólo de Indústrias Criativas do Porto. Havia folhas secas a estalar como ingredientes nobres dessa labareda; havia cheiro a aldeia nos nossos cabelos, na nossa roupa, nas nossas mãos. Havia tocos secos acamados no meio do carvão. E nós a costurar no ar os fios invisíveis que deixam essas estórias soltas, pelo éter. Uma espécie de liberdade bruxuleante. 

Numa horta de um pólo de indústrias criativas creio que não poderá haver algo mais de tecnológico do que esta condição humana do que a magia da fogueira e da memória oral à volta dela. Apesar de o rasto das gestas narradas não serem visíveis, creio que é a única coisa que o fogo não destrói mas motiva: o feitiço inextinguível de sermos natos contadores de histórias.

*Crónica publicada a 19 de Novembro de 2015 no Porto24

domingo, novembro 01, 2015

Domingos suburbanos

Podem vir as HDDSLR. Podem vir os iphones. Podem vir as compactas com os seus invejáveis píxeis. Fui ao resgate. Naufragada no armário, tal qual Rapunzel esquecida, ou carcerária do esquecimento (mea culpa, seduzida pela tecnologia da imagem like a candy shop), a minha "velha" Nikon D70 (com todas as suas limitações etcetera e tal) voltou ao activo. Diz que é uma espécie de resgate vintage. É isso: a D70 virou vintage. E saiu à rua numa tarde de domingo assim; suburbana! Back to war. The hunter is back!Ladies and gentleman a vida num domingo ao fim da tarde, pelo Porto. 



















terça-feira, outubro 13, 2015

Todo o Ruído

Foto de Vanessa Rodrigues

Há os e-mails para ler, as mensagens de Facebook, os telefonemas não atendidos, as notificações de notícias, as pendências no caderno, os pop-ups de mensagens por responder. As imagens rápidas de uma realidade que acontece na televisão cortam da desigualdade social para o anúncio de automóvel sexy, do mega desconto do supermercado para o champô que promete revolucionar o couro cabeludo dos desprovidos de fios de cabelo.
Há todo este bulício intersticial que acontece, imposto, contundente, cortante, violento, antisséptico. Um estardalhaço que nos esfrangalha a capacidade de pensar. Este fragor sensorial que nos higieniza. Que não me deixa, sequer, inventar personagens para esta crónica, porque me oferece uma miríade de vidas reais com estórias que parecem inventadas.
Por exemplo, há todo este zunzum de festa psicadélica que entorpece quando leio sobre Alfred Postell, o sem-abrigo com diploma de Harvard, que acabou na rua vencido pela esquizofrenia, conta o Washington Post. Se calhar a culpa foi de todo este estrondo que nos endoidece. A história dele recorda-me a de um outro sem-abrigo, que diziam ter sido um diplomata francês, que vagueou, durante longo tempo, pela Praça da República, no Porto, há um par de anos. Arrastava-se, com um barba generosa, de esconder faces, de tornar um homem espectador da sua vida, como se habitasse outro corpo.
Tantas são as voltas retorcidas, as vontades vencidas, o rasgo de solidão, desespero e dimensão mental que, de repente, nos levam a transpor a fronteira entre algo e o nada. Entre a dimensão de uma vida que parece destinada à correnteza de um sufoco. Ténue é a fronteira da impermanência, da vulnerabilidade, deste texto e das mãos vazias. Ténue e enredada pode ser a invisível barreira de um surto psicótico, de um esgotamento nervoso, de uma afamada depressão, de um esquecimento, até de como é o barulho das coisas ao cair. Lembrem-me, por favor, de inventar um personagem que colecione sons sem endoidecer, que tal como japim imite os sons à sua volta, e que seja capaz de reproduzir o silêncio. Já imaginaram todo o silêncio?

*Crónica publicada a 7 de Outubro de 2015, no Porto24

terça-feira, setembro 15, 2015

A eterna condição de ser vento

O Homem carrega em si uma insatisfação prosaica, um dilema ancestral, que é o amor à terra e, simultaneamente, a vontade de se desprender dela, em busca de felicidade, de um eldorado, escapando a opressões, guerras e misérias, ou apenas para chegar ao pão para comer. Tamanha ilusão essa, de que podemos esquecer-nos da natureza de nós, só poderá ser filha de uma quimera mundana, em que os sonhos podem o infinito e o éter, o desamor e a esperança, tal como o palpitar de um coração apaixonado. Parece, desconfia-se, que, nesse logro de tentar enganar-se a si próprio, a vida sentencie ao Homem o cárcere maior, paulatino e contundente, que é a saudade. Mácula da insatisfação perpétua e condoída, um vazio interno que se vai alimentando com o tempo. É essa a condição intermitente daquele que migra, quaisquer que sejam as razões.
Cremos, porém, quase como militantes convictos, que o mundo salta e se adianta progressista, que de geração em geração tudo muda sofisticadamente, numa regra tácita de civilização maior, mais tecnológica. Síndrome crónico da nossa quimera ilusória de superioridade absoluta sobre a ancestralidade. Falácia!
Eu própria, embrenhada nesta reflexão, apercebo-me que embalo nesse limbo do descontentamento geográfico, apenas dissipado quando se cumprem as duas terras no mesmo ano: Brasil e Portugal. Encarcerada nessa condição de ter sido emigrante, de ter voltado, e de firmar esta ponte aérea que, felizmente, se tem cumprido. Eu, relendo um texto de 2010, onde desvelava o amanhecer em Ipanema, olhando para as Ilhas Cagarras, constato que firmei um pacto com a cidade de que voltaria, e constato esta insatisfação prosaica de precisar da dupla geografia, entre os ais e os ois. Apercebo-me, porém, que já não consigo olhar o Brasil como estrangeira, sendo-a, e que já não me desliza a caneta perante o deslumbramento, porque passou a ser terra que se estende a mim, intrínseca. É curioso, porém, que regresse ao Rio de Janeiro, na condição de insaciada emigrante que volta ao país emigrado, já com vontade de partir e saudade de cá estar, sentindo na pele o arrepio telúrico, com um projeto sobre … emigrantes. E estes dias, olhando as fichas consulares, os passaportes de outrora e agora, é como se revisitasse um passado-presente, a minha própria vida. É como se, através dos olhares das fotografias tipo passe – às vezes a preto e branco, outras a sépia –, de milhares de mulheres e de homens que vieram, também, à procura de um novo mundo, se configurasse uma imagem clara do futuro. Cristalina imagem que se cadencia com o latejar do peito, de quem sente a dupla terra, a insatisfação prosaica que se repete: essa eterna condição de ser vento.

*Crónica publicada a 15 de Setembro no Porto24, com a chancela Bairro dos Livros

quinta-feira, agosto 27, 2015

Respigar contos magistrais

Vou levar-vos a um lugar mágico. Por baixo de uma avelaneira, esguelho-me pelas folhas rendilhadas e, nas negas dos céus, os olhos conseguem entrever o infinito diluído em tintas celestes inverossímeis. Uma metamorfose tão subtil, pincelada por um rasto de brisa, formando um tecido incorpóreo que parece esfarrapar-se entre as folhas. Estou neste embalo, deitada num lameiro, ouvindo a ópera das cigarras e o ânimo dos chocalhos das vacas que, a esta hora, sob a luz dourada a rasar nos vales, ainda mascam a refeição vegetariana. Estou neste aparente marasmo telúrico, sentindo o hálito de terra molhada, cingida pelo murmúrio do ribeiro e percebo tudo. Constato que sentir Trás-os-Montes é um exercício de reconhecimento e familiaridade, como se fosse encontrar todos os personagens e mais alguns a que me habituei, nos livros de Ferreira de Castro, Bento da Cruz, Miguel Torga, Fernando Namora, Assis Esperança e Aquilino Ribeiro, apenas para citar alguns. Estou neste babujar profundo, nesta geórgica que exalta a vida nos campos e eis que ele, Aquilino, pelo livro que na mão tenho, me responde aos pensamentos.
“O romancista vai de indivíduo em indivíduo, como a abelha quando forrageia o pólen, e a um pede o físico, a outro a índole, a este uma anedota, àquele um pormenor característico, e assim amassa por aglutinação os seus figurantes. Feita a dosagem com inteligência e obtido um bom ajustamento, ninguém dirá que não foram copiados do natural e que não ’falam’. E o orgulho do criador estará em dar a ilusão de que são cópias exactas do mundo em carne e osso”.
Perante este palavreado, como pêndulo que ora se esgueira para a direita, ora para a esquerda, move-se a minha meditação, quase sonâmbula pela dengosa serenidade do campo, e pelo sol que lambe a pele, perdida nesta magia de prosa que atende às inquietações. Apetece-me, com soberba e cobiça, roubar a esta terra todas as suas histórias, para costurar personagens ou figurantes perfeitos. Personagens entre aranhas, formigas, sardaniscas-bebé que se atrevem a deitar na liteira comigo, trevos daninhos, leiras e lameiros, ameixoeiras de casca áspera e gretada, toupeiras, vespeiros secos, varejeiras, bichas-cadelas, pulgões transparentes, folhas caídas, moscas, cabras e aranhas chorudas, sapos enfronhados em severidade, piscos, lavadeiras, rumorejar de vento, caules nus, marias-café fossilizadas no parapeito das namoradeiras, castanheiros, flores-de-maracujá e tantos outros. Predisponho-me, por isso, a esquivar-me como borboleta, levando de indivíduo em indivíduo um pouco deles para as estórias magistrais. A dos bebés que rolam em altares, da cruz no pão no forno, do mito da fonte do Caílho, do filão de ouro na aldeia do Parâmio, do episódio do caga-na-velha, das lengalengas, ou canções de amor e guerra, na época do volfro, das andanças de quem madrugava para as malhadeiras de milho, da ternura da Maria das Cajatas, aventuras de saltos e contrabandos. A Fernanda, a Emília, a Lurdes, a Catarina e a Inês contam-me tudo e eu anoto. Anoto para, quem sabe, um dia agradecer à terra. Por agora, hei-de voltar para o rebusco, pelo outono.

*Crónica publicada a 27 de Agosto, no Porto24, com a chancela Bairro dos Livros

quarta-feira, agosto 05, 2015

Pessoal do meu bairro

O caso sucedeu numa destas noites, enquanto se dava o primeiro ciclo de sono REM, ou movimento rápido dos olhos, quando os sonhos se tornam mais fulgurantes. Formei a imagem idílica do meu bairro. Teria seis cabeleireiros, dois hotéis e uma hospedaria – mais uma casa semi-clandestina –, seis cafés, três restaurantes regionais (as tripas à moda do Porto, ao sábado: chamar lhe íamos um figo), sete lojas abandonadas com a placa “Vende-se”, em destaque, três frutarias à moda antiga, dois quiosques (onde também se faria a raspadinha, teria payshop e, numa delas, também se venderia geleia, tabaco e super-heróis), uma loja de roupa para mulheres ousadas (a avaliar pelos tops rosa-fúcsia que deixariam tudo ao léu), outra para aquelas mais conservadoras (denunciar se ia pelos vestidos avózinha-beata na montra: nada contra), trinta prédios de três e quatro andares (lascados, reabilitados, modernos, do século passado), quinze deles teriam varandas, das quais sete teriam vasos com sardinheiras vermelhas e oito com caninos (que cumprimentariam os transeuntes com um ladrar ora esganiçado, ora grave, dependendo da raça ou do complexo vira-lata); teria dezoito moradias (cinco delas seriam devolutas e uma já teria sido casa de meninas), duas casas fantasma (uhuhhhhh), uma mulher que passaria dia-e-noite, à janela, fizesse chuva, fizesse sol; uma farmácia que faria promoções de marcas de cosmética e de champôs para piolhos, no inverno; um padre que dividiria a casa com estudantes, uma igreja católica e outra evangélica (dica: costumaria estar sempre mais animada às quintas-feiras), cinco passadeiras (duas novas com patadas de cães, marcadas, e três com cor de burro quando foge), cinco semáforos, uma costureira (que estaria sempre à conversa com a vizinha do segundo andar e atrasaria, em meses, a entrega da roupa), uma loja de reparações de eletrodomésticos (ficaríamos na dúvida se não seria uma loja bricabraque), dois andaimes e um taipal, cem carros estacionados, oito caixotes do lixo comum, uma loja de colchões ao lado de uma sex shop, um supermercado, uma ilha que não se vê – mas eu veria –, uma escola, uma ourivesaria-que-nem-se-perceberia-que-o-era. E uma mercearia que seria o local mais internacional que conheceríamos: onde se venderia pêssegos do Paraguai, cerejas do Fundão, maçãs de Setúbal, limões do senhor Amílcar que moraria em Paredes, laranjas do Algarve, ovos da dona Adelaide da rua transversal, amante do padeiro chileno, tomates da dona Ivete da rua de baixo e que seria viúva, ameixas da casa 5, pêras do tal Rocha, alheiras de Mirandela, broa de Avintes, pão da Bairrada e morangos de proveniência incerta. Seria uma rua com cerca de 700 metros, começaria (ou acabaria), num buraco, seria sempre a subir, e terminaria (ou começaria) num jardim com uma estátua ao caixeiro viajante, onde os cães costumariam fazer as suas necessidades.
E como se acordasse desta onírica contabilidade urbana, ocorreu-me ir à janela. Pois qual não foi o meu espanto, cara leitora, caro leitor, quando me apercebi que tudo isto era a verdade. Como o sei? A mulher da janela-faça-chuva-ou-faça-sol acenou-me, lá do fundo, e posso jurar que ainda ouvi dela aquele riso cinematográfico, terror série b. Isso ou é melhor deixar de tomar sumos naturais à noite.

*Crónica publicada a 5 de Agosto, no Porto24 , com a chancela Bairro dos Livros.

quarta-feira, julho 15, 2015

A chuva do corpo

Não chove há dois dias em Bissau, a capital guineense. A terra teve tempo de secar, o bafo quente é o céu que respira e o sol exuberante vigia-nos. Está implacável e jocoso da nossa condição ofegante. Talvez seja ele que faz a terra palpitar. O maestro tribal que cadencia os passos dos homens e das mulheres, das crianças e dos recém-nascidos. O compositor das emoções, dos sonhos e dos sorrisos. Há-de ser responsável pela percussão telúrica e pela forma como o corpo de Ernesto Nambera contorna o ar, esses interstícios da respiração do infinito. Este bailarino do Ballet Nacional da Guiné-Bissau movimenta-se com explosão, gira rápido, pisa o chão com força e gravidade, desliza os pés, e salta como um funâmbulo sob o fio invisível das leis da Física. Parece que levita.
O tambor é o coração acelerado. O compasso entra-nos pelos poros, parece que nos rasga, faz-nos explodir numa espécie de catárse. A terra em transe, e o corpo a parecer que quer levantar-se, mover-se, dançar. Ernesto, aquele que dança, o engenheiro informático que está no segundo ano de gestão. O dançarino guineense que estudou três anos na École des Sables (escola de areia, essa chuva do chão), em Dakar, Senegal, com uma bolsa da embaixada norte-americana quer, um dia, ser diretor-geral de cultura, para dar o seu conhecimento ao país. Foi o número um da turma dele e o pai foi o maior impulsionar da carreira de dançarino, quando os amigos lhe chamavam “bandido” por só gostar de dançar. Começou a fazer playback, em concursos, nas festas da adolescência. Hoje é coreógrafo e um bailarino forte, robusto, com alma, de olhos focados no horizonte.
É balanta, palavra que significa literalmente “aqueles que resistem”, uma etnia dividida entre a Guiné-Bissau, o Senegal e a Gâmbia. São o maior grupo étnico guineense, representando mais de 25% da população total do país. São binhan braza, povo braza. Entre fulas, manjacos, bijagós, papéis e mandigas, reinam os balantas. Há os balantas bravos, balantas cunantes, balantas de dentro, balantas de fora, balantas manés e balantas nagas. Ernesto já nasceu em Bissau, tem esse sangue quente e foi a dança que o levou a saber mais sobre as origens, ao pesquisar sobre a música Tabanca. Redescobriu-se guerreiro. Em 2005, a coreografia que preparou para o Carnaval, mesclando folclore africano com dança contemporânea, foi vencedora. Agora, ali no palco do Centro de Cultura, é novamente a sua dança a mesclar estilos e tradições de ritmos do folclore de África. Um corrupio explosivo, que faz o corpo dos homens e das mulheres latejar.
É ele, Ernesto Nambera, sem perder o fôlego, como se homenageasse os antepassados, a condição tribal, exaltando a vida, a morte e o infinito. Celebra como se evocasse os janbacos, os feiticeiros, ou curandeiros tradicionais. E, neste embalo, vamos juntos, numa emoção forte, incontornável, porque, afinal, ela veio. É nesta erupção súbita, que redescobrimos poros por onde expelir toda uma tempestade tropical, quente e fria. É esta chuva no corpo. Ernesto nela e nós em Ernesto.

*Crónica publicada a 15 de Julho, no Porto24, com a chancela Bairro dos Livros. 

quarta-feira, junho 24, 2015

As letras no caminho

Depois da última crónica, nunca mais me dediquei à literatura de chão. Até porque, apercebi-me, esse efémero estilo literário, apenas cultivado pelas divagações de quem olha a cidade com o ímpeto ingénuo de achar que, ainda, lhe poderá descobrir interstícios, é exercício reservado a quem já esgotou todas as possibilidades de inventar charadas no regresso a casa.
Acho que a culpa, no fundo, é do varredor de ruas, esse ofício invisível e de ruidosa condição, sobre a qual as formigas, as baratas e as aranhas rogam pragas, com toda a certeza. Poderia ter sido apenas o poste, mas não. O varredor de ruas acabou de vez com essa minha experiência iniciática em olhar o chão, privando-me de querer resgatar o dia anterior, pela cartografia do solo. Ele liquida o que resta do dia, aniquila quaisquer vestígios de buliço humano. Se a civilização humana acabasse, no dia seguinte de manhã cedo, no vazio, e os extra-terrestres viessem indagar quem morou na minha rua, com certeza, não restaria qualquer fragmento que pudesse reunir provas para uma narrativa. É que só os restos da rua são capazes de contar a história de um dia numa cidade, ou sobre os seres que as habitam. São excertos fugazes, ao mesmo tempo que epicuristas.
Porém, no caminho para casa, tive uma ideia. Podem aniquiliar os fragmentos do chão, mas não podem fazer desaparecer as letras do caminho. Era isso, as letras do caminho. Foi então, caros leitores, que meti a mão à carteira, e como caderno não houvesse, saquei a conta do almoço e comecei a escrever nas costas nuas desse papel fino e frágil, toda a literatura que encontrava no percurso, olhando agora para o intervalo médio entre o chão e o telhado das casas. Mas acho que vou deixar isto para outra crónica, não me levem a mal, porque, enquanto anotava com dificuldade, e como a caneta começasse a falhar, lembrei-me da Márcia, personagem do meu primeiro documentário, em parceria com F. Gavioli, no contexto do curso da Academia Internacional de Cinema de São Paulo.
Márcia, uma moradora de rua, em Higienópolis, que escrevia em folhas A4 uma mescla de orações aos anjos e episódios soltos da sua vida de rua. Um bom coração a querer dizer que existe além das vicissitudes do funambulismo da vida.
Naquela altura, eu e Felipe voltamos para lhe mostrar o documentário de 20 minutos. Ela achou que ficara curto. Que ficara muita coisa para contar, que há sempre muita coisa para contar. Um ano depois, em 2008, ela enviou-me um e-mail a dizer que precisava falar comigo. Respondi que já não estava em São Paulo, mas perguntei como a poderia ajudar. Nunca mais me respondeu. O tempo, varredor de ruas da memória, tomou conta do esquecimento pendular. Porém, na segunda-feira, fiquei a saber que o F. mudou de bairro e mora perto dela, da Márcia. Depois destes anos todos, reencontrou-a. Está a ajudá-la.
“- Ela conseguiu um pequeno serviço que permite que durma em uma pensão, está fazendo um curso de costura que é seu sonho, além de receber essa pensão e ter uma conta em banco que lhe dá bastante dignidade. Outro dia fomos em uma pizzaria comemorar seu aniversário, fazia mais de 20 anos que não entrava em uma. Apesar de ainda divagar ferozmente sobre vários assuntos que são abordados em nosso documentário, ela diminuiu, consideravelmente, o número de papéis que cola nas ruas, sinto que está mais calma e mais centrada, já que tem mais perspetivas.”
Acho que a Márcia, agora, aos 66, já pode inventar charadas no regresso a uma casa. Podem ser letras no caminho?

*Crónica publicada a 24 de Junho, no Porto24, com a chancela Bairro dos Livros. 

sábado, junho 13, 2015

Manual para a Literatura de chão

Olhar para o chão pode não ser, necessariamente, condição melancólica, ou síndrome de bisonhice e muito menos infortúnio. Conheço personagens reais que se dedicam, diligentemente, no ofício da caminhada, à cogitação filosófica de investigar os interstícios do passeio, seus alinhamentos, ora geométricos, ora esburacados, driblando fezes de animais (campo minado e oleoso), invólucros de batatas fritas, folhas velhas, jornais estropiados e pastilhas elásticas com o ADN de alguém. Como se percebe, há todo um universo de indagação e infinito raciocínio, digno das teses mais doutas da academia. Outrora, eu própria já pude contemplar notas de cinco euros, anéis e pulseiras de prata, bugigangas, farrapos, fios, cascas de laranja e beatas. Tudo coabitando na mais serena harmonia, como se fossem o princípio do universo e estagiários da decomposição. Ultimamente tenho sido bastante afortunada em moedas de um cêntimo. Posso jurar que a lata de chá onde guardo as moedas de cor de cobre já deve dar para pagar dois cafés e meio no estaminé do senhor Manuel. Mais surpreendente, porém, será a descoberta que fiz recentemente.

Caros leitores, sim, o chão que pisamos é terreno fértil para parir aquilo que denomino de agora em diante por literatura de chão. Bem sei que poderia ter-me dedicado a encontrar um nome mais sexy, digno dos anais da literatura comercial e que criasse buzz na comunicação social, do que simplesmente ter resumido a coisa a literatura escatológica. Conquanto essa possibilidade fosse a saída mais escorreita, devo confessar que seria indigna designação para o zelo que merece.

A semana foi profícua nessa contabilidade literária. Não fosse este escrutínio detetivesco para as coisas do chão e eu não teria encontrado, cento e sessenta e nove passos depois de sair de casa, a-fotografia-tipo-passe-de-um-rapaz. Deveria ter, mais ou menos, dez anos, era ruivo, sardento à la Tom Sawyer, certamente fugitivo da carteira de uma avó babada, pusilânime e conservadora – a avaliar pelo desgaste –, provavelmente caída no momento em que guardava o troco dos docinhos húngaros acabados de comprar na confeitaria em frente. Não teria, da mesma forma, me deparado com o bilhete da Zulmira: “Deixei bacalhau à brás no frigorífico”; o resto de um exame de História da Sandra: “a II Guerra Mundial foi um momento de grande importância, porque…”; um andante rasgado; uma oração a santa rita de Cássia: “a santa dos casos impossíveis e desesperados”. Não fosse eu o mais próximo do CSI português, exímia dissecadora das palavras calcadas no chão e, claro, nada disto seria possível: “Sandrine, não me deixes, és a minha cena. Amu-te”. Bem sei, não é bonito, mas pode ser profundo, dependendo dos magotes contundentes que se dá na Língua Portuguesa.

Caros leitores, estava preparada para que tudo acontecesse, menos para isto: mil quatrocentos e setenta e oito passos depois, um bilhete que era pura poesia, uma ode a este texto: “Sem ti, fico no chão.” Estava quase a empreender um projeto especial diário, apenas dedicado à literatura de chão, mas temo que durante uns tempos terei de me recolher. Quando me levantei para recolher este último exemplar da mais excelsa literatura, o meu universo ficou, de facto, mais perto do solo, entrou em transe, vendo estrelas, luzes, seguido de uma dor aguda. É, meus caros, aquele poste de iluminação não estava nos meus planos.

*Crónica publicada a 5 de Junho, no Porto24, com a chancela Bairro dos Livros.

quarta-feira, junho 03, 2015

Arqueólogos descobrem destroços de navio negreiro português na África do Sul

>>> "Pela primeira vez foram encontrados vestígios de um naufrágio que terá ocorrido com escravos a bordo. Uma descoberta histórica que poderá avançar o conhecimento actual sobre o tráfico transatlântico, dizem os investigadores." Notícia no jornal Público. 

>>> "Underwater archaeologists believe they have achieved a milestone moment in the study of the slave trade after making what is thought to be the first ever discovery of a sunken slave ship.
Long-buried artifacts from the wreck of the Sao Jose-Paquete de Africa, a Portuguese vessel which sank off the South African coast on its way to Brazil in 1794, are due to be unveiled in Cape Town."


quinta-feira, maio 14, 2015

A vida num contentor

É fácil. Neste caso começa com um anúncio na internet: “Procura-se gestor de empresas para empresa internacional”. O candidato envia currículo, é selecionado de imediato, comemora com os amigos, não faz perguntas – até porque tem um percurso imaculado, só não encontra trabalho entre nós –, não participa em nenhuma entrevista, não considera isso estranho. Só sabe que vai ganhar um salário de sonho e, por isso, aluga a casa no país de origem, despede-se da família e parte, uma semana depois, com um bilhete que “será depois recompensado à chegada”.

Só que, “à chegada”, ele é raptado. Sim, raptado! A estrada para o inferno começou quando deixou de fazer perguntas, ou cegou com a luz de uma pequena esperança. Não é juízo de valor, é a função do narrador omnisciente a contar o final da história.
É, depois, obrigado a entrar num camião, com outros rostos tão perdidos e desesperados quanto o dele. Percebe que a estrada é sinuosa, galga-se quilómetros de buracos e lombas, a grande velocidade. Entranha-se, nas narinas secas, um cheiro a savana e suor em ebulição. Homens enclausurados.

Pensa no fim, porque cogitar no pior seria ter uma réstia de esperança, e a ilusão já não entra num coração aflito depois da primeira cegueira fatal. Horas depois, sob um calor tórrido, o motor para. Abre-se a porta, é noite cerrada, gélida, sepulcral. Ele pergunta o que está a acontecer e leva uma coronhada de metralhadora. O sangue que escorre desde a ferida exposta na cabeça até à boca sacia-lhe a sede, embora já nada disso importe. É enclausurado, novamente, num contentor com os mesmos rostos cansados, carcomidos pelas horas de agonia.

Tenta falar, mas sente que a voz falha. Será o medo a velar por ele? Ter medo pode ser uma réstia de esperança. Uma janela que se abre por dentro e sussurra: estou vivo! A camisa nova e nívea que comprou numa loja de marca, no país de origem, está maculada com espirros vermelhos.

Durante algum tempo é ele e aqueles outros homens, no meio do mato, sozinhos, encarcerados, desolados, imiscuídos de existência. Não sabe durante quanto tempo, mas dormiu muito, morto de cansaço, vencido pelo ar rarefeito, mas sobretudo no fio existencial de que essa réstia de esperança fosse um acordar de novo, percebendo que, afinal, tudo não passava de um sonho muito ruim.

Quando, enfim, abriram a porta, percebeu que, se fossem mais uns dias, talvez não voltasse a acordar. Pensou que seria o melhor. Chamam-no. Obrigam-no a ligar à família em Portugal. Pedem um resgate: 500 mil euros. Crime organizado. Extorsão. Rapto. Tráfico. Sabe-se lá mais o quê. Deixaram-no aos pontapés, com risos alarves. Esqueceram-se da porta aberta.

Durante a noite arriscou a vida. Com o coração a ensurdecer o pensamento correu até onde pôde. Aprendeu a rezar. Viu uma luz. Arriscou uma povoação. Acudiram-no. Voltou para casa com ajuda de um homem que não sabe o nome. Está entre nós, são e salvo, pelas ruas deste país. O tráfico de pessoas existe e pode estar à distância de um clique. Mais difícil e desconcertante: esta história foi-me testemunhada num balcão de atendimento; poderia ter sido qualquer um de nós, com a vontade de uma réstia de esperança.

*Crónica publicada a 14/o5/2015 no Porto24

sábado, abril 04, 2015

António Trovão, ou como fazer uma faísca

Este homem magro e de chapéu verde-musgo a condizer com a camisa, simpatia ancestral, viu-nos passar e chamou como quem ordena lei: – “Oh, não querem tomar um vinho?”. 
ilha de Santa Maria, Açores, Março 2015|@Vanessa Rodrigues

Conheci o Trovão, logo ao descer a reta do Desterro, depois de ter passado Brasil, pela manhã, Almagreira e Santa Bárbara, embora ele more na Graça. É a sua adega com vinho de cheiro e jaquês que o prende à baía de São Lourenço, nestes dias com mar calmo e vigília de lua cheia. Dizem que sustenta Impérios, todos os anos, esse pagamento de promessas religiosas à conta do Espírito Santo, alimentando as bocas da ilha de Santa Maria, nos Açores, que se reveza nas copas comunitárias. Há de ler-se n’”O Baluarte”, logo em janeiro, para ver se o nome dele não consta na lista anual de homens de sopas do Espírito Santo. Sopas com cozedura especial, pão e muita carne de vaca e uns segredos que apenas três a quatro famílias conhecem em toda esta ilha, espraiada nos seus 98 quilómetros quadrados.
Este homem magro e de chapéu verde-musgo a condizer com a camisa, simpatia ancestral, viu-nos passar e chamou como quem ordena lei: – “Oh, não querem tomar um vinho?“. Mal percebemos e já estamos na loja com olor a bagaço e mosto, entre barricas envelhecidas e conversas de água salgada, usada para preservar este vinho de cor cobre-salmão. Mal nos tenta sair resposta pensada na ousadia do não e já estamos encafuados, sabe-se lá como e por que magnetismo insular, na toca deste pai de duas filhas que são a fotocópia da mãe. E, afinal, como se chama este homem que não tem um pulmão, nem um rim, e que esteve de junho a outubro, para morrer, no ano em que fez meio século, naquela que foi a sua primeira viagem ao continente? Já lá vamos que ele mantém suspense no parlatório. – ”A receita que os médicos lá no continente [Lisboa] me passaram é que não tinha solução. Era para ter ido embora. Estive meses sem comer e agora é isto.” Este agora são nove anos depois e isto duas horas diárias de caminhadas a pé, desde então, na companhia da pequena égua, que isto de não ter alguns órgãos é uma revolução na anatomia. Talvez tenha sido a condição insular, para o homem que vive duas vezes: uma hora a menos nos Açores é a Portugalidade a viver em mundos paralelos, um hiato de uma hora que fica suspensa. Uma vida extra, como nos jogos. E lá se lembra, enfim, da pergunta anterior, lá em cima: – Eu não me chamo, os outros é que me chamam a mim.” Diga: como é que os outros lhe chamam? – ”Isso varia. Se mandar uma carta para António Moura Moreira, ela é bem capaz de não chegar até mim. Agora, se puser António da Margarida, que era minha mãe, há-de chegar-me às mãos.“ E são estas mãos calejadas, de mar, de terra, de vinho, de vento, de esperança. ”Há também quem me chame cachaneta, ou então António Trovão. O Trovão.” Um homem que é uma tempestade? – ”É coisa muito antiga. Andei um dia na pancadaria, com o Malaquias, que tem casa lá no continente, e levei uma pancada que parecia um trovão. E como não há Trovão sem Faísca, dei -lhe o troco. E, pronto, lá ficou ele conhecido como Faísca.

*Crónica publicada originalmente a 11 de Março de 2015, no Porto24, com a chancela Bairro dos Livros.

terça-feira, março 17, 2015

"Da ideia à estória: reportagens que funcionam" é já na próxima segunda-feira, dia 23, na sede BagaBaga Studios, Lisboa,na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Workshop de um dia. Já se inscreveram? Partilhem, por favor, esta vossa aia, agradece.


segunda-feira, março 16, 2015

Feeling inspired

Açores 2015|Vanessa Rodrigues

quinta-feira, março 05, 2015

Linha de Fronteira

Contrabando, tiros, tempestade, crime organizado, polícia militar, uma anfitriã raptada por presos foragidos e apagão em casa de um escritor-desconhecido. Se isto não era fruto da minha imaginação bem podia estar metida numa alhada.


Laura fez questão de me mostrar as perucas, os batons, a variedade de armações de óculos e os doces que comprara nessa tarde, em Ciudad del Este, no Paraguai, a meia hora de autocarro de casa dela, em Foz de Iguaçu, no Brasil. Também fez questão de me dizer que no mês anterior tinha sido mantida refém, na própria casa, quando dois foragidos de um estabelecimento prisional do estado do Mato Grosso, membros de um cartel, tomaram conta da residência. Ela alimentou-os e nem os vizinhos desconfiaram quando esta mulher de cabelo louro-garrido, voz grave e rouca, ar um pouco psicótico e vontade desenfreada de falar, “saía para ir às compras, dia sim, dia não” e deixou de receber visitas.
Caros leitores, foi nesta casa-hospedaria, onde, em 2010, fiquei durante três noites. Soube de tudo isto ainda nem sequer tinha tirado a mochila para me instalar. Se a hesitação me acometeu, outra hipótese não tive às dez e meia da noite deste lado da cidade-fantasma.
Para intensificar o cenário bizarro, eu não pregaria olho a noite inteira, atordoada com os tiros que a Polícia Militar brasileira disparara, para dispersar os contrabandistas do rio Paraná, que tentando enganar a vigilância na Ponte da Amizade, entre o Brasil e o Paraguai, esquivam às margens fluviais o mais que podem em produtos eletrónicos, armas, tabaco e bebidas.
A mim bastava-me o carimbo de saída do Brasil e de entrada no Paraguai ou na Argentina, para poder, posteriormente, permanecer por mais três meses em terras brasileiras.
Da primeira vez que saí para a linha de fronteira, o autocarro que saiu do Brasil nem sequer parou na fronteira brasileira. Afinal, a minha dor de cabeça começaria aqui, quando à noite tentasse voltar, parada para interrogatório. Nesta primeira viagem, ia encontrar um conceituado jornalista paraguaio. No final da conversa, A. passou por casa para me oferecer o livro dele “El ultimo vuelo del Pajaro Campana”. Mal chegamos, o céu desatou numa fúria, impondo pesadas gotas tempestivas, levantando a terra, criando de imediato um caudal que corria pelas ruas, trazendo lama e pedras e arrastando carros. Escureceu como se o mundo desistisse de tudo, não havia luz elétrica. Restava-nos ficar à mesa, a conversar, até que a parca vela ardesse até ao fim e a tempestade cessasse. Neste momento, pairaria a dúvida: estaria eu mergulhada na realidade ou na ficção? Já adivinhava que iria perder o meu último autocarro, para atravessar a fronteira. Tinha um passaporte por carimbar, um gravador, uma máquina fotográfica, e um rasto de suspeita num dia de tempestade. Contrabando, tiros, tempestade, crime organizado, polícia militar, uma anfitriã raptada por presos foragidos e o apagão em casa de um escritor-desconhecido. Se isto não era fruto da minha imaginação bem podia estar metida numa alhada. Horas depois, a tempestade deu tréguas e A. levou-me à fronteira, já noite cerrada. Depois do interrogatório, lá me deixaram passar a fronteira, a pé. Não me recordo como cheguei à hospedaria de Laura, quase meia-noite.
“– Oh portuguesa louca, estava preocupada com você. Até pensei que você teria sido raptada pelos meus amigos do cartel, li no jornal que, afinal, eles ainda andam por aqui. E, me conta, afinal o que você comprou lá na cidade?”.

*Crónica publicada originalmente no Porto24 a 18 Fev 2015, 17:11

quinta-feira, janeiro 29, 2015

A cidade e seus personagens I – Ilha da Bela Vista*

Será que há no mundo cidade com mais ilhas do que o Porto? Pedaços de terra intersticiais da anatomia citadina em terra, ligações insulares que provam que, afinal, o homem pode ser uma ilha? 

Por Vanessa Rodrigues



Não se sabe ao certo quantas centenas se escondem, isoladas, por trás de outras casas. São portões mistério de humanidade, aglomerado de habitações simples que brotaram da urgência em alojar a mão de obra no século XIX. Os herdeiros, que continuam a história, são parte do ADN da Invicta, um repositório de memória, de herança daquilo que somos. É o caso de Rosa, Ana, Luís e dos casais Maria Eugénia e Aloísio; Manuel e Júlia, moradores da ilha da Bela Vista, na rua Dom João IV.
Rosa, 69 anos, viúva e rebelde, voz grave, “foi feita” no quarto onde agora dorme. O pai foi afinador de teares numa fábrica portuense. Lembra-se do dia em que comprou um biquíni e como convenceu o marido a usá-lo. É “feliz, muito feliz”, na ilha, e tem saudades do barulho da “canalha”.
Já Ana Oliveira, a fadista de cabelo alvo e mãos de afagar gatos, 85 anos, saudosa do tempo em que cantava, nasceu na casa 10. Aos nove anos, já “andava a esfregar escadas e a acartar o balde da água”.“Cada caneco era um tostão, mas à vezes caía o caneco e ficava sem o caneco e sem o tostão”.
Escreveu muitas letras de música e poesia, só para ela. Começou a cantar na rádio Festival, antes de ser a rádio Festival, e foi a voz do Café Sanzala.
– “Todos os domingos de manhã, a comunidade juntava-se para me ouvir na rádio e cantarolava: “Vem está marcado/é o café que nos convém/não há outro no mercado/que ao tomar/saiba tão bem/mas que cheirinho/que perfume que exala/ café sempre fresquinho/que se vende na Sanzala/na sua mesa/tenha sempre um bom café/porque o acha com certeza/famoso como o Pelé.”
A vizinha insular de Ana, Maria Eugénia Moreira, tem sete décadas de vida, cabelo curto e grisalho, olhos de menina. Começou a trabalhar aos dez anos. Não podia sair de casa para brincar. Na “mocidade” foi a bailes com gira-discos e conheceu o marido, Aloísio. Nunca dançaram juntos. Aloísio foi depois para o ultramar e Maria Eugénia foi a sua “madrinha de guerra”. Ele rendeu-se e pediu-lhe namoro por carta. Ela até o achava “jeitoso”, “encanadinho”, mas “teso”. Zangaram-se, porém uma amiga juntou-os : “Vou-vos apresentar ao amparo da vossa velhice”.
Estão juntos há quatro décadas. Ele foi atleta, tipógrafo e, ao contrário da mulher, brincou até fazer asneiras: – “Arranjámos uma tábua dos andaimes, passávamos cascas de banana, laranja e pêra na madeira, para lubrificar e, do início da rua escura até à Ribeira, deslizávamos a alta velocidade. Eu parti a cabeça umas 15 vezes”.
Para Manuel e Júlia, a ilha é um “paraíso”. Ele trabalhou com artes gráficas, esteve fora do país, agora está reformado. Ela trabalhou num infantário. O Luís, 43 anos, o mais novo desta prosa, também se recorda do tempo dos tostões, das festas, da algazarra das crianças e do aconchego de ter uma casa, apesar de estar numa “ilha quase deserta”. Uma vez juntou o Cavaco Silva e o Mário Soares.
– “Fui segurança da Fundação de Serralves e, numa cerimónia pública, o quadro elétrico falhou. Eles estavam lá. Fui eu quem puxou a alavanca do quadro de eletricidade que estourou, numa grande confusão, por isso os seguranças tiveram de pôr os dois políticos no mesmo carro”.

P.S.: Testemunhos recolhidos por mim, pelo Daniel Brandão, Maria Camps, Wouter De Broeck, Ana Clara Roberti, Ricardo Coelho, Rita Costa, André Rocha, Ana Patrícia dos Santos, Daniel Rodrigues, Joana Costa, Maria João Pereira, Rute Febra, Priscilla Davanzo, Tiago Dias dos Santos, com apoio do arquiteto Nicolau Brandão e das assistentes sociais Inês Lima e Ana Vieira, no âmbito do Citizen Lab: Audio+Visual Storytelling, Future Places 2014. O lab deu origem ao projeto documental Citadocs (sobre, para, por cidadãos).

*Crónica publicada no Porto24 a 28 de Janeiro de 2015

quarta-feira, janeiro 07, 2015

Pescador, cor de cacau, artesão da roça

A escultura de madeira suave e perfeita em forma de peixe na estante dos livros de viagens relembra uma lição de vida: que há gente a gostar de gente, abnegadamente, só porque sim, com a vida real em perfeita harmonia.

Por Vanessa Rodrigues


7 de Maio de 2011

Do bananal vem o rumor do mar, misturado com o riso da manhã e os olhos dele, grandes, bem desenhados, ternos. Negritude é a pele grossa, sábia genética, que adensa o calor e suaviza a humidade tropical quando nela assenta. Tem uns dentes alvos, e um olhar manso. Alexandre dos Santos, 22 anos, morador na roça Agostinho Neto, na ilha de São Tomé.
Estou de passagem. Sou a branca turista a querer saber das gentes. É pescador em part-time, homem da roça, separado da mãe dos filhos, um arroubo juvenil. E ainda lhe sobra tempo, à noite, se restarem dobras, para dançar Funaná.

一 Vais comigo?, convida.

É filho de cabo-verdianos – ainda se lembra do crioulo, o dialeto de casa –, dos muitos que migraram para esta ilha africana tão vizinha da linha Equador, metáfora para um recomeço. Quer saber: onde moro, de onde sou, se tenho filhos, marido, logo assim, nos primeiros segundos. Não perde tempo. A sedução não é um jogo, é convicção.
Também já foi militar, motorista de uma política são-tomense. Tão novo, tanta vida a latejar. Despeço-me. Ele com a tristeza inconsolável da despedida. Eu, com um certo desconforto. Penso que deve ser charme da condição insular.
No dia seguinte, espera-me, de manhãzinha, à porta do hotel.

一 Desculpa ter vindo assim sem avisar. Queria ver-te uma última vez. Posso nunca mais te ver. Desculpa-me.
Homem garboso, ousado, todavia educado. Veio pedir autorização para, ao final do dia, “logo”, me entregar um presente. O desconforto mistura-se com gratidão: que numa cidade desconhecida me sinta em casa, que o meu ser-eu de passagem se resigne à simplicidade dos afetos.

一 Quero dar-te um presente da minha terra. Mereces. Para que não esqueças. Posso?
Mereço? E “logo” é agora. Estou já de saída e, de novo, ele aparece, transpirado, sincero. É a segunda vez no mesmo dia que ele vem à cidade por minha causa, mais de 30 minutos de estrada.

一 Vim da roça de propósito para te entregar. Desculpa ter-me atrasado, tive de pedir a mota emprestada. Não posso ficar muito tempo. Pedi ao meu puto para ir buscar cacau à roça, para ti. E esta escultura fui eu que a fiz. E desculpa, estou envergonhado. Pedi à minha irmã uma saca para a embrulhar e ela pôs o cacau nesta de peixe.

一 Vieste de propósito entregar-me isto, de longe, sem me conheceres. Já te disse e agradeço: não se pede desculpa por genuínos gestos de generosidade e afeto. Eu não sei como te retribuir, sinceramente. Muito Obrigada.

Foram menos de cinco minutos. Despedimo-nos, um beijo no rosto, um olhar grato. Esfumou-se na noite já cerrada. Nunca mais nos vimos. Às vezes, ainda ouço o rumor do mar entre o bananal, quando olho para a escultura de madeira suave e perfeita em forma de peixe na estante dos livros de viagens, como quem relembra uma lição de vida: que há gente a gostar de gente, abnegadamente, só porque sim, com a vida real em perfeita harmonia.

*Crónica publicada no Porto24 a 6 de Janeiro de 2015