O caso sucedeu numa destas noites, enquanto se dava o primeiro ciclo
de sono REM, ou movimento rápido dos olhos, quando os sonhos se tornam
mais fulgurantes. Formei a imagem idílica do meu bairro. Teria seis
cabeleireiros, dois hotéis e uma hospedaria – mais uma casa
semi-clandestina –, seis cafés, três restaurantes regionais (as tripas à
moda do Porto, ao sábado: chamar lhe íamos um figo), sete lojas
abandonadas com a placa “Vende-se”, em destaque, três frutarias à moda
antiga, dois quiosques (onde também se faria a raspadinha, teria payshop
e, numa delas, também se venderia geleia, tabaco e super-heróis), uma
loja de roupa para mulheres ousadas (a avaliar pelos tops rosa-fúcsia
que deixariam tudo ao léu), outra para aquelas mais conservadoras
(denunciar se ia pelos vestidos avózinha-beata na montra: nada contra),
trinta prédios de três e quatro andares (lascados, reabilitados,
modernos, do século passado), quinze deles teriam varandas, das quais
sete teriam vasos com sardinheiras vermelhas e oito com caninos (que
cumprimentariam os transeuntes com um ladrar ora esganiçado, ora grave,
dependendo da raça ou do complexo vira-lata); teria dezoito moradias
(cinco delas seriam devolutas e uma já teria sido casa de meninas), duas
casas fantasma (uhuhhhhh), uma mulher que passaria dia-e-noite, à
janela, fizesse chuva, fizesse sol; uma farmácia que faria promoções de
marcas de cosmética e de champôs para piolhos, no inverno; um padre que
dividiria a casa com estudantes, uma igreja católica e outra evangélica
(dica: costumaria estar sempre mais animada às quintas-feiras), cinco
passadeiras (duas novas com patadas de cães, marcadas, e três com cor de
burro quando foge), cinco semáforos, uma costureira (que estaria sempre
à conversa com a vizinha do segundo andar e atrasaria, em meses, a
entrega da roupa), uma loja de reparações de eletrodomésticos
(ficaríamos na dúvida se não seria uma loja bricabraque), dois andaimes e
um taipal, cem carros estacionados, oito caixotes do lixo comum, uma
loja de colchões ao lado de uma sex shop, um supermercado, uma ilha que
não se vê – mas eu veria –, uma escola, uma
ourivesaria-que-nem-se-perceberia-que-o-era. E uma mercearia que seria o
local mais internacional que conheceríamos: onde se venderia pêssegos
do Paraguai, cerejas do Fundão, maçãs de Setúbal, limões do senhor
Amílcar que moraria em Paredes, laranjas do Algarve, ovos da dona
Adelaide da rua transversal, amante do padeiro chileno, tomates da dona
Ivete da rua de baixo e que seria viúva, ameixas da casa 5, pêras do tal
Rocha, alheiras de Mirandela, broa de Avintes, pão da Bairrada e
morangos de proveniência incerta. Seria uma rua com cerca de 700 metros,
começaria (ou acabaria), num buraco, seria sempre a subir, e terminaria
(ou começaria) num jardim com uma estátua ao caixeiro viajante, onde os
cães costumariam fazer as suas necessidades.
E como se acordasse desta onírica contabilidade urbana, ocorreu-me ir
à janela. Pois qual não foi o meu espanto, cara leitora, caro leitor,
quando me apercebi que tudo isto era a verdade. Como o sei? A mulher da
janela-faça-chuva-ou-faça-sol acenou-me, lá do fundo, e posso jurar que
ainda ouvi dela aquele riso cinematográfico, terror série b. Isso ou é
melhor deixar de tomar sumos naturais à noite.
*Crónica publicada a 5 de Agosto, no Porto24 , com a chancela Bairro dos Livros.
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