Vou levar-vos a um lugar mágico. Por baixo de uma avelaneira,
esguelho-me pelas folhas rendilhadas e, nas negas dos céus, os olhos
conseguem entrever o infinito diluído em tintas celestes inverossímeis.
Uma metamorfose tão subtil, pincelada por um rasto de brisa, formando um
tecido incorpóreo que parece esfarrapar-se entre as folhas. Estou neste
embalo, deitada num lameiro, ouvindo a ópera das cigarras e o ânimo dos
chocalhos das vacas que, a esta hora, sob a luz dourada a rasar nos
vales, ainda mascam a refeição vegetariana. Estou neste aparente marasmo
telúrico, sentindo o hálito de terra molhada, cingida pelo murmúrio do
ribeiro e percebo tudo. Constato que sentir Trás-os-Montes é um
exercício de reconhecimento e familiaridade, como se fosse encontrar
todos os personagens e mais alguns a que me habituei, nos livros de
Ferreira de Castro, Bento da Cruz, Miguel Torga, Fernando Namora, Assis
Esperança e Aquilino Ribeiro, apenas para citar alguns. Estou neste
babujar profundo, nesta geórgica que exalta a vida nos campos e eis que
ele, Aquilino, pelo livro que na mão tenho, me responde aos pensamentos.
“O romancista vai de indivíduo em indivíduo, como a abelha quando
forrageia o pólen, e a um pede o físico, a outro a índole, a este uma
anedota, àquele um pormenor característico, e assim amassa por
aglutinação os seus figurantes. Feita a dosagem com inteligência e
obtido um bom ajustamento, ninguém dirá que não foram copiados do
natural e que não ’falam’. E o orgulho do criador estará em dar a ilusão
de que são cópias exactas do mundo em carne e osso”.
Perante este palavreado, como pêndulo que ora se esgueira para a
direita, ora para a esquerda, move-se a minha meditação, quase sonâmbula
pela dengosa serenidade do campo, e pelo sol que lambe a pele, perdida
nesta magia de prosa que atende às inquietações. Apetece-me, com soberba
e cobiça, roubar a esta terra todas as suas histórias, para costurar
personagens ou figurantes perfeitos. Personagens entre aranhas,
formigas, sardaniscas-bebé que se atrevem a deitar na liteira comigo,
trevos daninhos, leiras e lameiros, ameixoeiras de casca áspera e
gretada, toupeiras, vespeiros secos, varejeiras, bichas-cadelas, pulgões
transparentes, folhas caídas, moscas, cabras e aranhas chorudas, sapos
enfronhados em severidade, piscos, lavadeiras, rumorejar de vento,
caules nus, marias-café fossilizadas no parapeito das namoradeiras,
castanheiros, flores-de-maracujá e tantos outros. Predisponho-me, por
isso, a esquivar-me como borboleta, levando de indivíduo em indivíduo um
pouco deles para as estórias magistrais. A dos bebés que rolam em
altares, da cruz no pão no forno, do mito da fonte do Caílho, do filão
de ouro na aldeia do Parâmio, do episódio do caga-na-velha, das
lengalengas, ou canções de amor e guerra, na época do volfro, das
andanças de quem madrugava para as malhadeiras de milho, da ternura da
Maria das Cajatas, aventuras de saltos e contrabandos. A Fernanda, a
Emília, a Lurdes, a Catarina e a Inês contam-me tudo e eu anoto. Anoto
para, quem sabe, um dia agradecer à terra. Por agora, hei-de voltar para
o rebusco, pelo outono.
*Crónica publicada a 27 de Agosto, no Porto24, com a chancela Bairro dos Livros
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